ANTÓNIO REGO CHAVES
VINTE E QUATRO
DIÁLOGOS BÍBLICOS
A
- Que tens?
- Estou triste.
- Mas eu amo-te.
- Eu também Te amo.
- Então porque estás triste?
- Porque é triste o mundo que criaste.
B
- Aonde vais?
- Ao aeroporto.
- Fazer o quê?
- Ver partir os aviões.
- E então?
- Talvez me levem mais perto de Ti.
C
- Bebes?
- Sim.
- Muito?
- O bastante para que Tu existas.
D
- Dominar-te-ei durante toda a vida.
- Porquê?
- Porque tu Me amas.
- E depois da vida?
- Neófito, não há morte.
E
- Partes?
- Para sempre.
- Abandonas-me?
- Sim.
- Mas eu morro.
- Não morres. Condeno-te a viver a
Minha ausência.
F
- Queres Deus?
- Quero.
- Então afasta-te de Mim.
- Mas eu procuro viver em Ti.
- Não podes. Eu sou Cristo, meu Pai abandonou-me no Gólgota.
G
- Nome?
- Maria.
- Profissão?
- Mãe de Deus.
- Mãe de quem?
- Mãe de Ninguém.
H
- Rezas?
- Rezo.
- Crês?
- Não creio. Rezo para crer.
I
- Caim ou Abel?
- Não sei.
- Tens de escolher um.
- Então prefiro Abel. Mas Tu deste a Caim razão para se irar.
- Eu apenas existo. Desde sempre e para sempre.
J
- Amas-Me?
- Sim.
- Desde quando?
- Desde que Te encontrei.
- Chegaste tarde. Eu sou infinito, não tive começo.
K de Kafka
- Procuraste?
- Procuro sempre.
- Encontraste?
- Nunca encontrei.
- E não encontrarás. Mas Eu só morro quando deixares de Me procurar.
L
- Deus de quem?
- Deus meu.
- É pouco.
- Então que Deus?
- Deus de todos.
- Mas eu creio.
- Só os que não crêem infinitamente Me amam.
M
- Amas?
- Sim.
- A quem?
- A uma mulher. Única.
- Em verdade te digo: tu amas a Deus.
N
- Quantas vidas querias ter, João Baptista?
- Esta, apenas esta, sempre pura.
- Então não és ainda o Filho. Para o Filho, só o Pai é Vida.
O
- És Cristo?
- Sou.
- Então morrerás.
- Não posso. Fui condenado à Vida Eterna.
- Quem te amaldiçoou?
- Meu Pai.
P
- Dou-te a rosa e a vida. A rosa da vida e a vida da rosa.
- Então é verdade que me odeias?
Q
- E se Deus não existisse?
- Procurava-O.
- E se Deus existisse?
- Procurava-O também. Mas sem nunca O encontrar.
- Mas porque O procuras?
- Porque O mereço.
R
- A morte é o fim da vida. A vida é o princípio da morte.
- Não. A morte é o princípio da Vida. A Vida é o fim da morte.
S
- Que preferes? A Bondade ou a Inteligência?
- A Bondade.
- Porquê?
- Porque só Ele, sumamente bom, é inteligente. Porque só Ele, sumamente inteligente, pôde escolher ser bom.
T (Tu)
O velho sentou-se na cadeira, recostou-se, disse:
- Agora deixa-me morrer.
Era um homem ainda sólido e belo, sabedor das coisas do mundo. Vivera a sua vida, tivera mulheres, moedas, saúde, pequenas glórias. Sabia que nunca mais poderia voltar a ser o que fora. Repetiu:
- Deixa-me morrer. Não durar mais. Só quero morrer.
Ela olhava-o, atónita. Depois veio-lhe um assomo de firmeza:
- Pára com isso. E eu?
- Tu?
- Sim, eu. Que fico cá a fazer?
O velho olhou-a, como se vindo de muito longe.
- Não sei, não sei. Só te digo que quero morrer. Não chores, não comeces a chorar. Peço-te, deixa-me morrer.
- E eu?
- Tu, tu... Não sei. Quero pensar em mim, chegou a minha vez de não pensar em mais nada.
- Eu nunca pensei só em mim...
Era uma queixa. Um murmúrio de solidão. Uma revolta longamente silenciada.
- Sei, eu sei isso. Mas ouve, não te desprezo, não te ignoro. Só quero morrer.
- Mas porquê, porquê?
- Porque sei que, faça o que fizer, morrerei. Porque já não posso esperar nada da vida senão estar aqui sentado ou não estar, mover-me ou não me mover, sair de casa ou não sair de casa de vez em quando.
- Tens os teus livros. As tuas ideias. Tens-me a mim.
- Os meus livros não me ensinaram a morrer. Ideias? Já não tenho ideias, isso é coisa para gente que vai continuar a viver.
- E eu?
- Tu és a minha testemunha, a minha única e querida testemunha. Testemunha do que fui e do que sou. Assim como a minha mão, os meus olhos. Mas eu quero partir.
- Partir para onde?
- Partir para o fim. Estou cansado de esperar o fim. O fim de tudo. O meu fim.
A voz dele era firme, lenta. Ele amara e amava aquela mulher. Mas queria partir, agora, para sempre.
Ela não desistia de lutar por ele, por eles. Amara-o e amava-o. Como a um pai.
- Ouve, vamos sair. Devagarinho. Passeamos, está sol, hás-de pensar noutra coisa.
- Não vês que já não posso, que estou cansado, exausto?
- Eu estou tão cansada como tu, e luto. Tu não queres lutar. Luta.
- Não posso. Já não posso.
- E queres deixar-me sozinha?
- Não é isso. Mas não percebes que quase já não sei andar?
- Tens-me a mim. E a Deus.
- Tenho-te a ti, está bem. Mas não me podes valer. E Deus...
- E Deus?
- Olha, já não sei se existe.
- Não, isso não...
- Sim, já não sei se existe. Já soube, agora deixei de saber. E, se existe, quero partir depressa. Se não existe, também. Não quero é esperar. Esperar pelo Desconhecido. Deixa-me morrer, sim?
- Não deixo. Dei-te a minha vida. Quero-te sempre comigo. Não sei viver sem ti.
- Tens de aprender. Aprenderás. Eu lutei sempre por sobreviver e sobrevivi. Mas agora queria mesmo viver. E já não vivo.
O velho sofria. Dormitava pelas tardes fora, entre ruídos familiares vindos da rua a fugitivas aparições dos seus fantasmas. Por vezes folheava com esforço o jornal, indignava-se, depois serenava e deixava-o escorregar das mãos, mergulhado numa letargia morna e macia. Chacinas e catástrofes já só recordava as de que fora vítima. E tinham sido muitas e de todos os géneros, pensava.
Chacinas e catástrofes. Conhecemos as dos jornais, quando os lemos. Mas, muitos anos passados, quem sabe se poderemos ir além daquelas que nos tocaram por dentro – ainda que nos tivéssemos esforçado por fingir que não nos afectaram –, quem sabe se, das catástrofes colectivas, não nos fica apenas o nosso pequeno medo pessoal de ficar sós?
A vida, o velho já a odiava. Não sabia por que motivo tinha chegado, não sabia para onde iria. Sobretudo, desconhecia o que o esperava. Fechava-se em si, num rugido contido de impotência. Sabia que, ao fundo do longo túnel que percorria, passo a passo, dor a dor, transigência a transigência, Ela, implacável, se preparava para o receber. Disse:
- Ouve, ouve bem. Ouve com atenção. De uma vez para sempre. Ouve.
- Oiço o quê?
- Ouve o que penso. As minhas palavras, a única verdade que aprendi.
- Mas que aprendeste tu, agora?
- Não aprendi agora. Aprendi no horror que me obrigaram a suportar: humilhações, esperança em não sei que mentiras, medo, ansiedade, angústia. Ouve, ouve agora, de uma vez.
- Mas que sabes tu?
- Sei, é Ela.
- Ela, quem?
- É Ela, a Morte. É Ela quem nos acolhe, nos abençoa, infinita de complacência e de sabedoria.
- Mas que dizes tu?
- Que Ela, a Morte, é o Deus Único. O teu Deus, o nosso Deus.
- Não, não é possível, blasfemas.
- Meu amor, meu único amor, não blasfemo. Estou a transmitir-te a única verdade que tenho o dever de te transmitir.
- Não, não foi isso que sempre disseste, não era nisso que acreditávamos.
- Escuta, imploro-te. Vou partir, não posso pronunciar senão estas palavras. Vive como se não soubesses disso. Eu amo-te, tu amas-me. Esquece que Deus é a Morte, que a Morte é Deus, o Único Deus verdadeiro. Recorda-me.
A Mulher ajoelhou-se junto dele, deixou que as suas lágrimas lhe escorressem pelas faces, cobrindo com elas a mão pendente e rígida do Homem. Amava-o em Deus, que já não distinguia da Morte.
U
- Deixa-me rezar-Te.
- Para quê?
- Para Te pedir paz.
- Paz, mas que paz? Não sabes que Eu vim para semear, dentro de ti, a guerra?
- Mas que fiz eu?
- Tu? Tu só pediste que Eu viesse. E Eu estou aqui para que creias em Mim - e Me negues. Para que não creias - e Me implores que exista. Estou aqui porque não sabes viver senão com a consciência da iminência do teu fim.
- Mas eu terei um fim?
- Digo-te: não terás um fim. Estaremos juntos no Abismo.
- E viverei para sempre?
- Não haverá sempre. Só o Abismo.
- E Tu?
- Eu sou o único Abismo.
- Mas teu Pai?
- Meu Pai é o único Abismo.
V
- Jeová. Cristo. Alá.
- Santíssima Trindade. A da esperança do Homem desta aldeia onde nasci.
X
Z
- Pai
Nosso
Que
Estais
No
Céu.
- Assim seja!