Uma hagiografia de Salazar
António Rego Chaves
O romeno Mircea Eliade (1907-1986) não se tornou conhecido apenas enquanto romancista e autor de obras de referência como o «Tratado de História das Religiões», «O Sagrado e o Profano» ou «O Mito do Eterno Retorno». Foi também diplomata e desempenhou funções em Lisboa na qualidade de adido de Imprensa, primeiro, e de adido cultural, depois, na Embaixada da Roménia, entre 1941e 1945. Escreveu então um «Diário Português» – que já aqui recenseámos – bem como este «Salazar e a Revolução em Portugal», onde deu largas à sua admiração pelo ditador.
Como faz notar Sorin Alexandrescu na «apresentação» da obra, «Eliade não escreve uma palavra que seja sobre a repressão da oposição por parte de Salazar, mas como bom diplomata menciona a situação real de Portugal nos relatórios secretos que envia para o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Bucareste, a 14 de Abril e a 21 de Junho de 1942. O primeiro menciona as conspirações de Janeiro e Março contra Salazar que conduziram a ‘um grande número de presos’ e a ‘deportações para as Ilhas Atlânticas’. O segundo relatório fala do arrefecimento das relações de amizade entre Salazar e o Bispo Cerejeira, que ‘personificava a resistência espiritual da nação portuguesa contra o totalitarismo fascista’.»
Ao lermos este panegírico, porém, dir-se-ia que, a partir do momento em que tomara pela segunda vez posse da pasta das Finanças, a 27 de Abril de 1928, com direito de voto e de veto sobre tudo quanto o Estado poderia despender, Salazar governava com o quase unânime aplauso da nação. Claro que haveria democratas inconformados, integralistas desiludidos, intelectuais «do contra»; mas constituiriam casos isolados, esporádicos, sem autêntico «peso» social e político. No entanto, a 3 de Outubro de 1943, anotaria no «Diário Português»: «Não sei porquê, Portugal parece-me cada vez mais triste. Prestes a morrer. É um passado sem glória.»
Verdade seja dita, como o próprio déspota se encarregou de apregoar em 28 de Maio de 1936, «foram restaurados as finanças, a moeda e o crédito, reparadas as estradas, os edifícios e os monumentos, remodelados os portos, e os rios canalizados, foram reconstruídos os diques, as muralhas, os cais, melhoradas as linhas férreas, telegráficas e telefónicas, foram encomendados ou construídos novos barcos.» Ninguém lhe regateará tais proezas, tal como ninguém pretenderá que não pôs um desastroso freio à necessária industrialização de Portugal, dando a primazia à agricultura.
No «estudo introdutório» que redigiram para o livro, Carlos Leone, José Eduardo Franco e Rosa Fina consideram que Mircea Eliade «pode ser considerado aquele que melhor inaugura um processo consistente de mitificação de Salazar inscrito numa proposta de releitura da História de Portugal. Conhecedor dos mitos e das suas tecituras como ninguém, acaba por utilizar, consciente ou inconscientemente, um esquema subjacente de mitificação para apresentar a assunção e afirmação política de Salazar na vida portuguesa como solução exemplar para as crises e impasses que experimentavam então outros países europeus, em particular a Roménia…»
A tese reaccionária do autor era muito antiga: consistia em atribuir tudo ou quase tudo o que de maléfico se passou no Portugal do século XIX e nos primeiros decénios do século XX à «herança» do Marquês de Pombal, do Iluminismo e do Liberalismo, em prejuízo de um país enraizado em valores medievais, católicos, absolutistas – e, talvez, ainda mais, em prejuízo de um país que se queria manter alheado de «novidades» vindas da Europa, nomeadamente da França. Daí que Eliade, durante mais de metade da sua obra, nunca se ocupe de Salazar, mas que se detenha longamente no século XIX, na implantação da República, na ditadura de Sidónio Pais. Trata-se de demonstrar que Salazar era absolutamente imprescindível – um «homem providencial» – para pôr termo a uma alegada «balbúrdia sanguinolenta».
Grandes «culpados» da «desorientação» de Portugal teriam sido, então, alguns indivíduos permeáveis a ideias nada lusitanas, tais como Antero, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Teófilo Braga, pois seriam eles quem teria lançado as sementes da República, abalando as instituições tradicionais – Pátria, Igreja, Família. O papel de Salazar torna-se, então, sobrenatural: ele vem fazer uma «revolução espiritual», edificar um Estado alicerçado no… «amor»! Nem João Ameal, nem Alfredo Pimenta («o homem mais sábio de Portugal», como escreveu no «Diário Português»), nem António Ferro – peças essenciais na bibliografia consultada – ousaram alguma vez ir tão longe na senda da impudência: «O Estado salazarista, estado cristão e totalitário, fundamenta-se, em primeiro lugar, no amor.»
Pouco importará, neste contexto, que Mircea Eliade tenha sido um «anti-semita» e militante de extrema-direita – mas é preciso não esquecer que o foi, tendo aderido à tristemente célebre Guarda de Ferro, embora nunca tenha admitido em vida a sua escolha e reservado a «revelação» para «Memórias» póstumas; importará mais que a tentativa de apresentar Salazar como um «filósofo cristão», um «messias», um precursor de uma nova ordem mundial, é um intento condenado ao ridículo entre todos os que viveram e (ou) estudaram o salazarismo. O ditador teria posto termo a «uma evolução política violentamente antitradicionalista, anticristã e apaixonadamente europeizante», como sustenta o ensaísta? Se retirarmos os advérbios de modo, a tese poderá ser discutida. Outra coisa, porém, é escrever uma hagiografia onde nos surgem frases dignas de uma antologia do grotesco, como estas: «Todas as informações biográficas disponíveis falam de Oliveira Salazar como uma criança exemplar, dotada de virtudes precoces: meiguice, moderação, filho exemplar, amigo exemplar. O pequeno Oliveira, segundo alguns biógrafos, esconde nos bolsos o pão a que tem direito, para o distribuir pelos pobres da aldeia. Nunca briga com outras crianças. Não falta a nenhuma missa na Igreja de Nossa Senhora.»
Mircea Eliade, «Salazar e a Revolução em Portugal», Esfera do Caos, 2011, 253 páginas