Rousseau, um homem acossado

António Rego Chaves

Sublinhava François Mauriac, numa introdução às «Confissões» de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que «o grande escândalo» provocado pelo ilustre cidadão genebrino «foi a sua paixão pela solidão». Acrescentava: «A verdade é que ele teve a infelicidade de desagradar ao mesmo tempo às gentes piedosas e aos Enciclopedistas: irredutíveis inimigos reconciliaram-se nas suas costas. E ainda hoje tem contra ele – além dos devotos – os filósofos, os humanistas. Assim como os Enciclopedistas o desprezavam porque, em vez de o julgarem pelos seus desejos, pela sua boa vontade, pelos impulsos do seu coração, o julgavam pelas suas acções.»

Aquele intelectual católico sustentava que, «num tempo em que o indigente (sic) pensamento voltairiano tinha estatuto de filosofia, era justo que o sobrenatural fosse defendido por este maníaco, por este doido.» E que, «se procurarmos no século XVIII o herdeiro de Bossuet, não encontramos nenhum outro além do caminhante solitário.» (…) «O antepassado Jean-Jacques é mais jovem do que o seu filho Chateaubriand e do que os seus netos, os Românticos. Eles dormem, embalsamados pela sua glória. Quanto a ele, é um de nós, (…) chama-se Romain Rolland, Marcel Proust, André Gide. Páginas inteiras das ‘Confissões’ ou dos ‘Devaneios’ poderiam ser inseridas em ‘Do lado de Swann’, sem que fosse fácil descobrir a fraude.»

O historiador suíço da literatura Bernard Gagnebin relevava, por seu turno, que «pode dizer-se hoje que a imensa tradição autobiográfica dos séculos XIX e XX que, através de Senancour e Benjamin Constant, Stendhal e Chateaubriand, em França, Goethe, Kleist, Hölderlin, na Alemanha, Hazlitt e Carlyle em Inglaterra, Kierkegaard e Tolstoi, conduz até aos nossos dias, nasceu das ‘Confissões’ e d’ ‘Os Devaneios do Caminhante Solitário’.»

Talvez melhor do que quaisquer outras, as seguintes palavras do preâmbulo das «Confissões» descrevem a sua autobiografia: «Este é o único retrato de homem, pintado exactamente segundo o natural e em toda a sua verdade, que existe e que provavelmente existirá jamais. Quem quer que sejais, vós a quem o meu destino ou a minha confiança fizeram árbitro deste caderno, pelos meus infortúnios, pelas vossas entranhas, e em nome de toda a espécie humana, conjuro-vos a não destruir uma obra útil e única, que pode servir de primeira peça de comparação no estudo dos homens, certamente ainda por começar, e a não furtar à honra da minha memória o único monumento seguro do meu carácter não desfigurado pelos meus inimigos.»

No texto de 1967 publicado nesta edição portuguesa, Jorge de Sena, depois de exprimir a opinião segundo a qual «as ‘Confissões’ de Rousseau são uma obra indecisa entre o documento [humano] e a arte», coloca o «problema fundamental» da sinceridade de Rousseau, para notar: «Todos sabemos que a sinceridade humana é relativa – ou devíamos saber – e que o importante não é a impossível sinceridade, mas a honestidade de propósitos (afinal, até certo ponto, o que os antigos pediam a uma obra escrita). A psicanálise ensinou-nos, como também outras disciplinas da psicologia moderna, a ver além das confissões aquilo que um homem não confessa ou nem tem consciência de que lhe condiciona a sinceridade. Estas disciplinas não partem do princípio de que o ser humano é naturalmente mentiroso – mas sim de que a chamada ‘verdade’ nem sempre é a que se supõe, ou não é fácil de encontrar, nem, quando encontrada, de dizer.» No entanto, o português pretendia, ao contrário de François Mauriac, que Diderot e Voltaire «ainda hoje nos falam como se estivessem vivos», afirmando que «Rousseau não tem, como eles, a isenção de espírito para sobrepor-se como escritor, como criador de estilo, à proposição didáctica das suas ideias, à imposição da sua personalidade, aos devaneios da sua sensibilidade, às raivas e fraquezas da sua pessoa humana.» Sem entrar no terreno das tricas, o mínimo que se poderia retorquir é que Jorge de Sena desconhecia tudo acerca da pertinaz mesquinhez de Diderot e Voltaire para com Rousseau…

É claro que se pode falar do «delírio paranóico» do autor das «Confissões», dos «Diálogos» e dos «Devaneios». Mas certo, certo, é que Rousseau não inventou as malfeitorias de que foi alvo. O pensador que escreveu o «Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens», «A Nova Heloísa», «O Contrato Social», o «Emílio» e as «Cartas da Montanha», textos que provocaram intervenções, por vezes brutais, quer das autoridades políticas, quer das instâncias eclesiásticas, em França e na sua pátria, não podia deixar de se sentir perseguido. Tornou-se, de facto, num homem tão acossado pelos seus inimigos – entre os quais Voltaire e Diderot –, bem como pela «populaça» por eles açulada, que se viu obrigado a fugir de Paris para a Suíça e da Suíça para Londres, em busca de um lugar onde pudesse conviver em paz com a sua solidão.

Nas «Considerações sobre o Governação da Polónia», deixou-nos o filósofo estes prolegómenos às suas concepções políticas: «Vós amais a liberdade, sois dignos dela; defendeste-la contra um agressor poderoso e ardiloso que, simulando preservar os laços da amizade, vos impôs os ferros da servidão. Agora, cansados das agitações da vossa pátria, ansiais pela tranquilidade. Creio que é muito fácil obtê-la; mas conservá-la juntamente com a liberdade, eis o que me parece difícil. Foi no seio dessa anarquia, que vos é odiosa, que se formaram estas almas patrióticas que vos livraram do jugo. Elas adormeciam num repouso letárgico; a tempestade despertou-as. Depois de terem quebrado os ferros que lhes destinavam, sentem o peso da fadiga. Queriam aliar a paz do despotismo às doçuras da liberdade. Temo que queiram coisas contraditórias. O repouso e a liberdade parecem-me incompatíveis; é preciso optar.» Ao escolher publicar postumamente as «Confissões», Rousseau optou por repousar, mas escrevendo em liberdade.

Jean-Jacques Rousseau, «Confissões», Relógio d’Água, 1988, dois volumes, 267+373 páginas