António José Saraiva/Luísa Dacosta («Correspondência»)

Os anos 60 do salazarismo

António Rego Chaves

Se outro interesse não tivessem – e certamente o têm – estas cartas enviadas do seu exílio em Paris, entre 1961 e 1965, por António José Saraiva (1917-1993) à escritora Luísa Dacosta (n.1927) a verdade é que constituem uma excelente ilustração dos complexos problemas políticos que se colocavam aos intelectuais antifascistas nos anos 60 do salazarismo.

Meio século passado, podemos perguntar-nos em que medida tais textos poderão ser assimilados na íntegra por gerações que não viveram anos já tão distantes, apesar do cuidado prefácio e das pertinentes notas de Ernesto Rodrigues, responsável pela edição da «Correspondência». É que, na época, as opções eram de tal forma pouco semelhantes às enfrentadas pelo Portugal de hoje que, por vezes, decerto será penoso a leitores de 30 ou 40 anos entendê-las e avaliarem com conhecimento de causa a sua relevância.

Não se tratava, como agora, de escolher entre a dependência em relação ao FMI e à UE dirigida por Berlim, de um lado, e a independência tendo por preço a bancarrota, do outro: estava em jogo a ditadura, não esta mitigada democracia a que chegámos. E Salazar, desafiado no início de 62 em Beja por Varela Gomes e seus companheiros, só começara a estremecer nas «eleições» de 58, porque forçado a tolerar o general Humberto Delgado.

Ao afastar-se do PCP, António José Saraiva passou a sentir-se de alguma forma «isolado» em Paris (tal como, em Lisboa, Vergílio Ferreira e, em Penalva, o seu anti-herói de «Estrela Polar»), apesar da presença de centenas de exilados políticos portugueses («não pertenço a igreja nenhuma e isso cria complicações», «um dos meus ex-amigos, a cuja igrejinha deixei de pertencer, quase deixou de me falar»). Enquanto historiador da cultura e da literatura, o seu conflito é, então, com o marxismo e o neo-realismo. Dirá em 1981, falando de tempos longínquos, porventura aqueles em que começara a escrever a sua renegada «História da Cultura em Portugal»: «O marxismo aparecia-me como a esperança; ele acabava com a possibilidade de a mais-valia dos trabalhadores ser apropriada pelo capitalismo.» Mas passara a recusar «o sistema», qualquer que ele fosse. Deixa-se no entanto seduzir pelo estruturalismo ou pela fenomenologia, por Tagore e por Lanza del Vasto, ao mesmo tempo que, voltando-se para Portugal, ataca «o historiador Dias» (Augusto das Costa Dias, «A Crise da Consciência Pequeno-Burguesa»), referindo com sobranceria «o Alves» (Alves Redol).

Confessa, porém, em Dezembro de 1963: «Não fiz a síntese; não sei se alguma vez a farei, das coisas que tenho pensado e sentido intensamente, violentamente, umas a seguir às outras. Talvez, no fundo, em cada momento, tenha tido razão; simplesmente, nenhuma abordagem, nenhuma armação consegue captar a realidade. A noção de que há verdade em coisas diferentes, e até absolutamente contrárias, impõe-se-me cada vez mais.»

Em Janeiro de 1964, volta ao ataque: «Em Portugal estamos habituados ao conforto maternal das ideias feitas e optimistas. Os intelectuais portugueses, todos, precisavam de ser desmamados.» E, dois meses depois, conclui, arrependido do seu passado: «Descubro, agora, que durante os meus anos de crença (sic) [comunista] deixei de ler imensas coisas por as considerar ‘metafísicas’, decadentes e não sei que mais, a tal ponto que descubro que, há vinte anos, a minha cultura filosófica era maior do que agora. Nesses tempos lia o [António] Sérgio, o [Léon] Bruschwicg (sic, por Brunschwicg), o [Oswald] Spengler, etc., autores que, depois, resolvi considerar ‘ultrapassados’. É preciso evitar a tentação da automutilação.»

Quanto ao neo-realismo, António José Saraiva é radical em Junho de 1964: «Na sua origem, o neo-realismo correspondia a um movimento forte de pensar. Era um coração que batia ao ritmo do mundo. Era um vento sadio que varria miasmas. Era a consciência adequada de uma mesma situação. Receio, todavia, que, hoje, se tenha tornado uma capelinha, destinada a justificar a mediocridade de umas tantas pessoas, a manter carreiras e posições.» (…) «Talvez o dever mais urgente do intelectual português seja o de pensar seriamente a nova realidade, pensar asceticamente, sem concessões de oportunidade, sem considerações que não sejam a do próprio vigor do pensamento. A época é de transformação e desintegração, e, por isso, também de consciencialização de uma situação nova.»

Apesar de muito enredado nas suas contradições ideológicas, não deixará de reconhecer, em Janeiro de 1965, «que diferença há entre mundos como aquele em que vivo e aquele em que vivem os nossos amigos de Portugal. E esta diferença explica muitas diferenças de apreciação e perspectiva». Talvez o cerne da questão estivesse, precisamente, na «diferença» entre uma França democrática e um Portugal salazarista onde intelectuais antifascistas, bem ou mal, consideravam ser seu dever cívico contribuir com o que escreviam e faziam, ainda que modestamente, para o derrube do execrável regime ditatorial em que todos vivíamos – tal como, anos antes, quisera o também intelectual antifascista António José Saraiva.

Historiadores do futuro poderão talvez determinar sem paixão, mesmo com «objectividade científica», quem na realidade esteve «certo» ou «errado» nesses conturbados anos sessenta do salazarismo, quando muitos homens de cultura portugueses pensaram que a alternativa era escolher entre a dependência directa ou indirecta em relação aos Estados Unidos e a ligação a um «bloco» mundial sob a égide da União Soviética. Neo-realistas como Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes ou Manuel da Fonseca acreditaram nesta possibilidade e agiram em consequência: a História julgá-los-á, sem dúvida, como também não deixará de julgar os intelectuais fascistas ou os alienígenas que se instalaram numa pretensa neutralidade, pairando «super partes», demarcando-se de uns e outros e recusando participar na generosa epopeia cujo termo provisório se viria a verificar em 25 de Abril de 1974.

António José Saraiva e Luísa Dacosta, «Correspondência», Gradiva, 2011, 141 páginas