Wittgenstein e o silêncio da fé
Ernest Gellner «explica» quem foi o autor do «Tratado Lógico-Filosófico». Mas nem sempre nos convence das suas teses…
António Rego Chaves
O título deste livro – Linguagem e Solidão – Uma interpretação do pensamento de Wittgenstein e Malinowski – surpreenderá muitos estudiosos da filosofia e da antropologia. Destes, não serão poucos os que nunca se terão preocupado com o autor do Tractatus; quanto aos leitores do pensador vienense, escasso interesse terão manifestado pelas teorias do «pai» do funcionalismo.
Ernest Gellner – nascido em Paris, educado em Praga, mas cujas referências ideológicas académicas terão de ser procuradas em Cambridge ou Oxford – intenta, nesta sua obra póstuma, mostrar-nos o que une e separa os dois intelectuais modelados por um império implantado no vale do Danúbio e que, nos inícios do século XX, «controlava extensas áreas fora dele: os Alpes, a Boémia, a Galícia, vastas extensões dos Balcãs e até mesmo (ainda que grande parte desta região tenha sido perdida no decurso do século XIX) o Norte de Itália.»
A tese do autor talvez possa ser assim formulada: o Império dos Habsburgos terá «condenado» Wittgenstein e Malinowski a ser espartilhados pelo dilema da escolha entre «uma visão individualista-universalista-atomista» e «uma visão cultural-comunal» do conhecimento e da vida humana. A opção de Gellner de alguma forma vai para uma «terceira via» que, segundo considera, nem o filósofo do Tractatus nem o antropólogo de Liberdade e Civilização estavam aptos a trilhar em plena liberdade, devido aos condicionalismos do ambiente intelectual da Kakania onde nasceram, magistralmente explanados por Robert Musil na sua obra-prima O Homem sem Qualidades.
Individualismo ou comunalismo? Wittgenstein – diz-nos Ernest Gellner – começará por escolher o primeiro termo da alternativa (no Tractatus), para depois (nas Investigações Filosóficas) tomar o partido pelo segundo. Quanto a Malinowski, embora seja detectável uma evolução no seu pensamento – no sentido inverso à seguida por Wittgenstein –, nunca chegou a negar liminarmente a possibilidade de os homens alcançarem uma «verdade» racional que não fosse relativizada pelo contexto histórico em que decorre a sua existência.
A questão residiria, pois, em escolher entre o individualismo racionalista e o comunalismo romântico. A lição de Descartes, Hume e Kant, aliada ao ambiente intelectual da Kakania, teria conduzido Wittgenstein ao Tractatus Logico-Philosophicus, «um poema sobre a solidão», que «transmite o desespero de um indivíduo solitário e alienado, bem dentro da tradição do romantismo pessimista». Depois – e com idêntico radicalismo – as Investigações Filosóficas seriam dominadas pelo «populismo epistemológico», pela «tradição cultural», pelas «formas de vida» étnicas, pondo fim a qualquer possibilidade de universalismo, até no campo da matemática. Quer dizer: não existiria conhecimento abstracto «puro», apenas ideias inseparáveis do sangue que nos corre nas veias e do contexto concreto da comunidade que nos transmite as coordenadas das nossas «certezas» científicas e das nossas dúvidas éticas, estéticas ou religiosas. Nesta última fase do seu pensamento, o filósofo austríaco teria repudiado para sempre qualquer possibilidade de encontrar verdades que superassem os nossos parâmetros culturais, relativizando sem apelo todos os «saberes».
Fica dito o essencial? Ainda não. Sublinhe-se que, em todo o texto, é manifesto o contraste entre a antipatia – ou o desdém – por Wittgenstein e a simpatia – ou o respeito – em relação a Malinowski. Assim sendo, esta obra não será a mais recomendável introdução ao pensamento do filósofo.
Por último, mas também elemento não negligenciável para a apreciação do conteúdo do livro: Ernest Gellner reconhece que existe um Wittgenstein místico nas passagens finais do Tractatus. Usando as suas palavras: «O que pode ser dito não esgota a nossa vida mental. Pelo contrário, a monotonia do que pode ser dito é realçada pela qualidade luminosa do que não pode ser dito.» Ora a mística de Ludwig Wittgenstein – como o autor também faz notar – nunca foi experiência partilhada, mas vivência profundamente solitária. Lamentavelmente, vários textos fundamentais para conhecer esta vertente do seu pensamento, como os Diários Secretos (1914-1916), os Cadernos de Cambridge e de Skjolden (1930-1932 e 1936-1937) ou Cultura e Valor (1914-1951) foram ignorados sem qualquer justificação pelo autor de Linguagem e Solidão, que não se deu ao trabalho de os tomar em linha de conta para demonstrar as suas teses.
Nas referidas obras, o místico Wittgenstein, com a humildade própria dos verdadeiros filósofos, torna bem patente a influência que tiveram na sua visão do mundo e da vida o cristianismo de Santo Agostinho, Kierkegaard e Tolstoi, ao mesmo tempo que nos dá conta da sua «fé sem palavras». Foi assim possível falar das raízes religiosas deste silêncio, que alguém classificou como «o mais eloquente» do século XX. Silêncio que, no entanto, nos diz quanto o seu responsável procurou Deus e que «o ser humano só precisa de Deus». Mais: que a única certeza pessoal é mesmo a fé, ou seja, o amor que acredita na Ressurreição.
Ernest Gellner, «Linguagem e Solidão», Edições 70, 2001, 215 páginas
Publicado no «Diário de Notícias» em 7.05.2002