Viriato entre os tecnocratas
António Rego Chaves
Este ensaio de Miguel Real – interessantíssimo, embora negligentemente estruturado, redigido e corrigido, como demonstram a existência ao longo da obra de dispensáveis repetições das suas teses, uma escrita nem sempre cuidada e nada menos do que seis vezes os factos de Garcia de Orta ser tratado por «Garcia da Horta» ou a lenda da aparição de Cristo a Afonso Henriques se encontrar uma vez associada, não à Batalha de Ourique, mas à de S. Mamede – é ambicioso nos seus propósitos. Procura o autor, «em diálogo cruzado» com Teixeira de Pascoais, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, o Padre Manuel Antunes, Boaventura Sousa Santos, José Gil e Guilherme d’Oliveira Martins, «demonstrar que a constelação por que emergiu a realidade histórica designada por ‘Portugal’ atingiu o seu limite de esgotamento». Motivos? Sobretudo «um fenómeno de aceleradíssima descristianização e desumanização ética da sociedade e uma rapidíssima submersão social numa tecnocracia científica anónima que nivela as nações, metamorfoseando-as em regiões singulares de uma futura supranacionalidade europeia».
Quatro etapas teria percorrido o País para chegar ao (triste) estado a que chegou: 1) a da «origem exemplar», protagonizada pela guerrilha conduzida por Viriato, símbolo da revolta contra o ocupante estrangeiro, que nos guiou de Ourique a Aljubarrota, orientou a conduta de Egas Moniz, Nuno Álvares Pereira, Afonso de Albuquerque e D. João de Castro e «moveu fundo a política nacional de Oliveira Salazar»; 2) a da «nação superior» que, arrancando da derrota de Alcácer Quibir, irá conduzir à concepção do Quinto Império pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa; 3) a da «nação inferior», onde se agiganta o vulto de Pombal reagindo à catastrófica magreza de Portugal perante o «gordérrimo» Estado de D. João V e a «gordérrima» Igreja Católica, revolucionando tudo, tesouro régio, educação, economia, urbanismo e política regalista, certo de que as nossas elites precisavam de um bom «banho de Europa»; 4) a do «canibalismo cultural», entre 1580, ano da perda da independência, e 1980, data do acordo de pré-adesão à CEE. Detenhamo-nos aqui.
Em pleno «canibalismo cultural», os portugueses foram-se devorando uns aos outros: católicos e erasmistas, papistas e protestantes, jesuítas e iluministas, religiosos e maçónicos, carbonários-jacobinos e eclesiásticos, tradicionalistas e modernistas, espiritualistas e racionalistas, sendo que «cada corrente só se entendia como una e independente quando via o seu reflexo ‘puro’ nos olhos aterrorizados do adversário, quando o desapossava de bens, lhe subtraía o recurso para a sobrevivência e, em última instância, quando o prendia ou matava...» (…) Daí assassínios individuais e colectivos (perseguição dos judeus pela Inquisição; perseguição dos «hereges» pela Igreja; perseguição da alta nobreza, dos jesuítas, do Cavaleiro de Oliveira e de pensadores e poetas pré-românticos pelo Marquês de Pombal; perseguição de sacerdotes pelos jacobinos positivistas e republicanos; perseguição de anarco-sindicalistas, comunistas e socialistas pelo Estado Novo de Salazar e pela Igreja Católica de Gonçalves Cerejeira; prisões individuais e colectivas; perseguição a funcionários públicos rebeldes pelos poderes partidários instituídos pelo governo de José Sócrates/Cavaco Silva. E as ilusões perdidas ou «desistências» de Sá de Miranda, Herculano, Torga; os exílios de Francisco Sanches, Ribeiro Sanches, Verney, Aurélio Quintanilha, Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, Barradas de Carvalho, Fernando Gil, Armando e Jaime Cortesão, Eduardo Lourenço, Oliveira Marques, Magalhães Godinho, Jorge de Sena, José-Augusto França; os suicídios de Antero, Camilo, Manuel Laranjeira.
«Submerso pela avalanche de costumes liberais europeus e americanos, totalmente descristianizados e desumanizados», será que Portugal, como sustenta o autor, se encontra «moribundo»? Uma sua asserção é quase indiscutível: a de que o aparelho de Estado, privilegiando apenas um sector da sociedade, a economia, nos está a conduzir para uma hipervalorização do individualismo assente na fórmula «amoral» [nós diríamos «imoral»] do «salve-se quem puder». Não podemos senão aplaudi-lo quando escreve: «Recentemente, o Estado português, imitando a Europa durante escassos trinta anos, garantia saúde, educação, reforma e esforço de empregabilidade aos portugueses pobres. Sabem-se agora os portugueses conhecedores de uma outra Europa, a hidra decadentista que lhes corta maternidades e escolas e lhes suga a reforma. Esta é hoje a real ideia de Europa na mente dos portugueses, com excepção da elite de cinco mil dirigentes do Estado que continuam a visionar a Europa como terra do ouro e do mel, ambicionando fazer carreira numa das mordomias europeias.» (…) «Não existe democracia quando não existe uma ‘consciência e uma moral comuns’, isto é, valores comunitários de partilha e solidariedade como âmago da vivência social.» Mas alguma vez se terá produzido tal «milagre» em Portugal?
A terminar, Miguel Real, ao falar-nos dos quatro vectores da cultura nacional dos últimos dois séculos – o espiritualista, o providencialista, o racionalista e o modernista – desvenda, talvez sem essa intenção, uma réstia de esperança que nos permite afastar a ideia segundo a qual tudo, por cá, se encontra em estádio terminal. Na verdade, alvitramos, um país que conta entre os seus filhos pensadores como Eduardo Lourenço, prosadores como José Saramago, poetas como Herberto Helder, pintores como Paula Rego, cineastas como Manoel de Oliveira, ainda que só dois deles o queiram habitar, não pode estar moribundo. Talvez seja apenas vítima de uma Europa selvaticamente tomada de assalto e ocupada por bandos de mafiosos economistas indiferentes à solidariedade devida aos seus concidadãos, semi-analfabetos e estranhos a tudo o que seja filosofia, letras, artes – e uma concepção humanista da política. Mas o reinado de tal gente – dirão os indomáveis netos do indomável Viriato – não será, decerto, a derradeira página da História de Portugal.
Miguel Real, «A Morte de Portugal», Campo das Letras, 2007, 125 páginas