A «zona cinzenta» de Auschwitz (Primo Levi)

António Rego Chaves

Um dos aspectos mais intrigantes dos universos concentracionários (entre os quais as os chamados «totalitarismos» são apenas uma pequena parcela) é, sem dúvida, o da «zona cinzenta» sem a qual nenhum abuso sistemático de poder seria possível. Esta constitui uma das mais perenes lições transmitidas pelo último volume da trilogia de Primo Levi que a Teorema acaba de publicar, depois de «Se Isto é um Homem» e «A Trégua». «Os que Sucumbem e os que se Salvam» (título original, «I Sommersi e i Salvati») recapitula muito do que sabemos sobre o Holocausto, seus «submersos» e seus sobreviventes, além de se debruçar sobre o que julgamos ser o cerne da abjecção nazi, que é a culpa colectiva do povo alemão e a cumplicidade activa de milhões de súbditos de Hitler no genocídio anunciado desde 1925/26 pelo «Mein Kampf».

Primo Levi (1919-1987), químico e resistente italiano antifascista de origem judaica, mas não-crente, foi entregue à Gestapo em Fevereiro de 1944, ao abrigo das leis raciais de Mussolini. A sua detenção em Auschwitz proporcionou-lhe a oportunidade de viver e dissecar, com olhar lúcido e tanto quanto possível «científico», não apenas o comportamento dos seus carrascos alemães, como os das suas vítimas, muitas das quais inseridas na «zona cinzenta» da colaboração activa com o inimigo. Em toda a sua obra, nunca resvala para o moralismo, o sentimentalismo, a jeremiada. O olhar que lança sobre si, sobre os seus companheiros de martírio e sobre os algozes do campo de extermínio em que quase o enterraram é o do entomologista movido pela curiosidade de decifrar, compreender e isolar perante os leitores os múltiplos matizes da realidade observada, do preto ao branco, passando pelo execrável cinzento do colaboracionismo.

Em Auschwitz, escreveu Myriam Anissimov, a «zona cinzenta» é aquela «onde o bem e o mal não estão nitidamente delimitados, onde as vítimas e os seus perseguidores se encontram por vezes do mesmo lado, o dos prisioneiros». Primo Levi pormenoriza: «O interior dos campos era um microcosmos intricado e estratificado; a ‘zona cinzenta’, a dos prisioneiros que, em qualquer medida, se calhar mesmo por bem, colaboraram com a autoridade, não era estreita, pelo contrário, constituía um fenómeno de importância fundamental para o historiador, o psicólogo e o sociólogo. Não há prisioneiro que não se lembre disso, e que não se lembre do seu espanto na altura: as primeiras ameaças, os primeiros insultos, as primeiras pancadas não provinham dos SS, mas sim de outros prisioneiros, de ‘colegas’ daquelas misteriosas personagens que no entanto vestiam a mesma túnica às riscas que eles, os recém-chegados, acabavam de envergar.» E o escritor interroga-nos, neste ensaio de 1986, publicado pouco antes de escolher o suicídio: «Que pode fazer cada um de nós para que, neste mundo prenhe de ameaças, pelo menos esta ameaça seja eliminada?»

A estafada lengalenga da grande maioria dos alemães é bem conhecida. Quando lhes perguntavam por que razão tinham participado nos crimes do nazismo, respondiam: «Fi-lo porque me mandaram; outros (os meus superiores) cometeram acções piores que as minhas; dada a educação que recebi, e o ambiente em que vivia, não podia fazer outra coisa; se não o fizesse fá-lo-ia com mais dureza qualquer outro no meu lugar.» Até aqui, nada de surpreendente para quem tenha vivido no Portugal do Estado Novo e da PIDE. Mesmo um alto responsável nazi – por convicção, por oportunismo? – como Adolf Eichmann não utilizou uma linguagem muito diferente em Jerusalém. Mas mais perturbador ainda é que o estudo da espécie humana em Auschwitz nos levará muito longe «se quisermos saber defender as nossas almas quando se devesse novamente perspectivar uma prova semelhante, ou mesmo se apenas quisermos dar-nos conta do que sucede num grande estabelecimento industrial». Ou seja, em Auschwitz como «num grande estabelecimento industrial» – e, acrescentamos nós, em qualquer empresa, ou mesmo numa caserna, num hospital, numa escola – o «inferno» poderá não ser representado sobretudo pelos mais altos poderes instituídos, sendo a sua face mais visível a do ‘colega’. Por exemplo, e cingindo-nos ao caso do estabelecimento industrial, um obediente e bem pago trabalhador por conta de outrem encarregado de programar a «flexibilização dos despedimentos» (dos outros), ou a dilatação ilegítima do período de trabalho (dos outros), ou os congelamentos dos vencimentos (dos outros). Primo Levi é bem claro: «A ascensão dos privilegiados, não só nos ‘Lager’ mas em todas as convivências humanas, é um fenómeno angustiante mas infalível: é só nas utopias que eles estão ausentes. É dever do homem justo fazer guerra a todos os privilégios não merecidos, mas não se pode esquecer que esta é uma guerra sem fim. Onde existir um poder exercido por poucos, ou por um só, contra os muitos, o privilégio nasce e prolifera, mesmo até contra a vontade do próprio poder; mas é normal que o poder, pelo contrário, o tolere e encoraje.» Em qualquer caso, no campo de extermínio ou fora dele, a casta híbrida que constitui a «zona cinzenta» estabelece a ponte entre servos e senhores, sendo a sua colaboração recompensada por privilégios – em Auschwitz, mais meio litro de sopa bastava para quem se dispunha a desempenhar certas tarefas então consideradas indignas por qualquer ser humano digno desse nome.

Primo Levi, porém, não se arvora em juiz daqueles com quem lhe foi dado coexistir em Auschwitz. Humanista e solidário, assume-se como parcela indiferenciada da espécie a que pertencemos: «Ficamos tão encadeados com o poder e com o prestígio que esquecemos a nossa fragilidade essencial: com o poder negociamos, de boa vontade ou não, esquecendo que no gueto estamos todos, que o gueto está vedado.»

Concluindo: «Os que se salvaram do ‘Lager’ não foram os melhores, os predestinados ao bem, os portadores de uma mensagem: tudo o que vi e vivi demonstrava o exacto contrário. Sobrevieram de preferência os piores, os egoístas, os violentos, os insensíveis, os colaboradores da ‘zona cinzenta’, os bufos.» Não só em Auschwitz…

Primo Levi, «Os que Sucumbem e os que se Salvam», Teorema, 2008, 205 páginas