António Rego Chaves
Ao lermos esta biografia de Fontes Pereira de Melo (que «não é, no sentido estrito do termo uma biografia», pois «foi sobretudo através da obra realizada» que se procurou «traçar o retrato de um homem», como adverte a autora) fica-nos a certeza do duro labor que ela exigiu. Os inúmeros escolhos que é necessário superar, em Portugal, para fazer investigação e redigir um texto historiográfico solidamente alicerçado já desencorajaram muitos – e constituem, mesmo, por vezes, razões de sobra para desistir.
Assim não sucedeu com Maria Filomena Mónica – e por isso este ensaio nos oferece com uma visão amplamente documentada da governação de alguém que, como o Marquês de Pombal ou Mouzinho da Silveira, marcou de forma decisiva a história da época em que viveu. Se tomarmos em linha de conta que, como lembrou Joel Serrão, «por volta de 1840, os caminhos-de-ferro e o comboio surgiam ainda aos olhos de um Castilho, de um Garrett ou de um conde de Lavradio como uma miragem, inviável em Portugal», a orientação iniciada por Costa Cabral e prosseguida pela Regeneração alcança todo o seu significado: à data da morte de Fontes, anota a historiadora, «Portugal era atravessado por 6500 quilómetros de estradas, 1500 quilómetros de caminhos-de-ferro e 6000 quilómetros de linhas telegráficas». (…) «Durante os governos a que ele presidiu ou em que teve assento (…) planearam-se 1775,7 km de vias-férreas. Durante os governos Histórico-Progressistas (…) apenas 377,6 km. A percentagem de vias ferroviárias projectadas por Fontes corresponde, por conseguinte, a 82,5 % dos 2153 km construídos ou traçados entre 1856 e 1886.» Foi obra: passámos assim a poder escoar o trigo, a carne e o azeite que produzíamos.
Mas não só de trigo, carne e azeite viviam os portugueses. Sublinhava um dos mais ilustres representantes da Geração de 70, Eça de Queiroz: «Pelos caminhos-de-ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França), torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários… Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet tornado profeta e justiceiro de reis; e Balzac com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o Universo, e Poe, e Heine, e creio que já Darwin e quantos outros.» Não exportávamos cultura, mas a sua importação era indispensável à desejada «europeização» do País.
O legado de Fontes Pereira de Melo no sentido de modernizar Portugal não se cingiu, pois, às obras públicas que levou a cabo. Releva a investigadora: «Fontes não se limitou a mandar construir vias-férreas, pontes e estradas. O seu papel na estabilização do regime foi, se alguma coisa, mais importante. A partir da década de 1870, o país passou a dispor de um partido de governo e, na década de 1880, de uma oposição credível. É verdade que, enquanto viveu, a «rotação» [entre o Partido Regenerador e o Partido Histórico] foi desviada a seu favor, mas o sistema consolidou-se. Em vez de grupelhos, dando origem a governos instáveis, apareceram famílias políticas. As suas reformas, nomeadamente as respeitantes às leis eleitorais e à revisão constitucional, deram ao país a necessária estabilidade.»
É altura de evocarmos Alexandre Herculano: «Temos a liberdade e a paz», reconhecia o insigne exilado em Vale de Lobos, dois anos antes de morrer. Comentou Joel Serrão: «Sem dúvida, a paz acabara por chegar, enfim, após a longa e apaixonada busca (1820-1851) da contemporaneidade possível. E, quanto à liberdade, como o burguês a concebera e, sobretudo, como a praticava, aí estava ela – nos barões e sua agiotagem, na criação de um mercado nacional, no surto industrial e no desenvolvimento urbano, no Código Civil (1867), na extinção definitiva da escravatura (1858-78) e, até, na abolição do real beija-mão (1858) e da pena de morte nos crimes civis (1867).» (…) «A hora, conquanto tardia, era do capitalismo – e a palavra pertencia a Fontes Pereira de Melo, obreiro do ‘progresso’ material do país, não a partir das suas mesmas possibilidades, mas dos balões de oxigénio fornecidos, agora, pela agiotagem europeia de Londres e Paris.»
Maria Filomena Mónica levanta uma ponta do enganador manto da prosperidade macroeconómica e dá-nos azo a tematizar, por momentos, as razões da insuportável penúria dos que trabalhavam 12 a 16 horas por dia, no caso do operariado, ou de sol a sol, tratando-se de camponeses: «Apesar do que, por vezes, se pensa, Fontes não era um intervencionista. Admirava mais o liberalismo à anglo-saxónica do que o cesarismo de Napoleão III ou o Estado Social do príncipe prussiano. Quando, entusiasmados com a obra de Bismarck, alguns dos seus compatriotas começaram a enaltecer o papel do Estado na protecção dos pobres, Fontes argumentou não competir a assistência social ao poder político, mas aos montepios.» E a ensaísta conclui, entre a suficiência e a zombaria: «O problema residia em que o regime pouco tinha a oferecer às novas camadas urbanas. O que se tornou evidente após o Ultimatum, quando os operários começaram a sonhar com regicídios, a pequena burguesia a planear uma República de onde os ricos seriam excluídos, os ‘Vencidos da Vida’ a reunirem-se em jantares conspirativos, António Nobre a inebriar os jovens com os seus poemas à terra estrumada, Mouzinho de Albuquerque a entusiasmar as multidões com a prisão de um régulo negro. Na versão liberal, a Monarquia desapareceu com Fontes.» Pena que a riqueza gerada não tenha suscitado na classe política portuguesa da segunda metade do século XIX a vontade de abrir os alicerces de um «Estado Social». Para usar os condoídos termos da autora, talvez as camadas urbanas «desenraizadas e desorientadas» não se tivessem tornado num «terreno fértil para a demagogia republicana»…
Maria Filomena Mónica, «Fontes Pereira de Melo», Alêtheia, 2009, 260 páginas