Doce, agridoce França…
António Rego Chaves
Modesto, este autor de dezenas de obras históricas de indiscutível mérito, de uma humildade intelectual que só valorosos logram alcançar. Disse de si próprio: «Não se deve pôr o fato que nos agrada, mas o que nos fica bem». Ou seja, vestindo camisa de académico: «Não sou um teórico da história, ‘apenas’ um historiador.» Foi injusto, ao minimizar-se, e publicou, logo no início deste nosso século XXI, o que mais nenhum francês ousara ainda publicar, uma «História de França» que nos apresenta tanto as grandezas como as misérias do seu país, uma França que não é apenas «A Doce» de Charles Trenet, mas agridoce. É caso para dizer: «Chapeau, Marc Ferro!»
Tendo na memória a obra homónima do colaborador da «Action Française» Jacques Bainville, um dos responsáveis pela idealização fraudulenta da França, talvez o que de mais importante surja ao longo destas páginas seja, para leitores estrangeiros que somos – e sabe-se lá se, também, para muitos da cepa de Marc Ferro – a sua desmitificação da França. Um país que se perfilava, em meados do século XX, para tantos portugueses da geração que cantou «A Marselhesa» quando ela era, a par d’ «A Internacional», hino considerado revolucionário, e por isso proibido em público, como uma pátria de eleição, à falta de outra que fossem capazes de sentir como a sua.
Dizem-nos agora: «A França é o passado, mas o presente e o futuro são a Alemanha, os Estados Unidos, o Japão, a China, sei lá quê…» Não, não é verdade. Aprendemos com a França essa utopia hoje tão vilipendiada pelos chantres do neoliberalismo triunfante, «liberdade, igualdade, fraternidade». Seria bom que nunca a esquecêssemos. Caso contrário, poderemos assistir à beatificação sem entraves do desolador reino do «salve-se quem puder».
Leiamos este livro. Ele não nos ensina apenas o que se passou em França desde Clóvis ou Vercingétorix até Mitterrand ou Chirac – Jacques Chirac, «o primeiro presidente desde 1945 a reconhecer publicamente a culpa do Estado na época de Vichy e a romper o silêncio da desonra», como diz Marc Ferro. O texto vai mais longe, sem nunca pôr de lado o amor pela França: «desce» – talvez melhor, ascende – até à verdade nua e crua, concebendo o conhecimento do passado como uma questão política: Joana d’Arc, a Revolução de 1789, o caso Dreyfus, o fascismo francês («L’idéologie française», segundo Bernard-Henri Lévy), o negacionismo, a tardia entrada de comunistas na Resistência, o colonialismo no Vietname e na Argélia, a tortura dos colonizados, «os silêncios da desonra» (refugiados republicanos espanhóis, «harkis» e outras vítimas da FLN argelina).
Dividida em duas partes («Economia e sociedade» e «As características originais da sociedade francesa»), a obra de Marc Ferro dedica um espaço moderado, que sabe a pouco mas não chega a decepcionar, às ideias políticas e aos homens que as protagonizaram, sobretudo nos séculos XVIII, XIX e XX (o leitor interessado nos dois últimos tem ao seu dispor os belos ensaios de Michel Winock, «Les Voix de la liberté» e «Le Siècle des intellectuels», este já traduzido para português): Montesquieu, Voltaire, Rousseau, d’Alembert, Diderot, Condorcet, André Chénier, Camille Desmoulins, Destutt de Tracy, Cabanis, Volney, Stendhal, Balzac, Chateaubriand, Tocqueville, Lamartine, Benjamin Constant, Victor Hugo, Lamennais, Saint-Simon, Proudhon, Étienne Cabet, Charles Fourier – Zola, enfim, e a sua célebre intervenção no caso Dreyfus. No século XX, Charles Maurras, Robert Brasillach, Drieu La Rochelle, Lucien Rebatet, Henri Barbusse, André Gide, Daniel-Rops, Emmanuel Mounier, Lucien Febvre, Marc Bloch, Sartre, Aron, Camus – tantos, tantos mais. Muitos eram os intelectuais que recusavam o silêncio, assumindo a sua plena cidadania.
Outros fechar-se-iam em «casulos», como que recusando deveres para com a sociedade: «Se compararmos a composição da Assembleia Nacional em 1789 com a sua composição de 1945 ou de hoje, verificamos um contraste flagrante. Na altura da Revolução Francesa, os maiores espíritos do tempo participavam activamente no movimento, para o impulsionarem ou para o combaterem.» (…) «É em vão que procuramos equivalentes na IV ou V República: nem os melhores doutorados, nem os maiores escritores, nem os prémios Nobel participam na vida política.» (…) «Após a Guerra da Argélia os intelectuais deixam de participar directamente na política e afastam-se do marxismo e do existencialismo. A ‘intelligentsia’ procura novas abordagens para explicar o mundo: Lévi-Strauss, Barthes, Braudel, Lacan e Foucault transformam-se nos novos mestres do pensamento.»
As páginas consagradas por Marc Ferro à reconstrução da economia francesa após a Segunda Guerra Mundial parecem hoje, no clima de crise em que a Europa vive, mais pertinentes do que nunca, na ausência de um novo Plano Marshall – que, aliás, talvez tivesse visado, acima de tudo, salvar a economia norte-americana. A França parecia então forçada a sacrificar o crescimento económico à estabilização financeira, mas os seus dirigentes escolheram o desenvolvimento: iniciaram «os trinta [anos] gloriosos», que se estenderam de 1946 a 1975, aumentando de forma muito significativa e consistente a qualidade de vida da população até à altura em que deixou de ser possível atenuar os efeitos negativos da crise petrolífera.
Nos anos 80, «les jeux sont faits», os dados estão, tanto quanto podemos ajuizar à luz dos tempos que vivemos, todos lançados. A crítica do Estado-Providência e das suas despesas (outros dirão, esmagando à passagem sabe-se lá quantos seres humanos, «despesismo») faz o seu (ir)resistível percurso triturador: «o enaltecimento do empresário depressa evolui para a limitação do papel do Estado, para a liberdade cada vez maior concedida ao mercado e para o questionamento das nacionalizações. Para algumas indústrias antigas, até há pouco vigorosas, é o princípio do fim, e, para os trabalhadores, é o declínio que se anuncia…» Teremos já batido no fundo?
Marc Ferro, «História de França», Edições 70, 2011, 843 páginas