António Rego Chaves
Dizia o «velho» Cândido de Figueiredo: «Niilismo: Aniquilamento, redução a nada; descrença absoluta. Seita russa que tem por objecto a destruição da ordem social estabelecida». Nada de novo em relação aos seus respeitáveis antecessores Moraes e Caldas Aulete, pelo menos nas versões oitocentistas. Consulte-se a Academia das Ciências de Lisboa, na sua controvertida lição de 2001: «Doutrina que nega a existência da verdade absoluta e de qualquer realidade substancial; doutrina que nega a possibilidade da verdade; ideologia política difundida particularmente na Rússia, na segunda metade do século XIX, que recusa toda e qualquer coerção sobre o indivíduo e nega a necessidade do Estado.» Atravesse-se o Atlântico, recorra-se ao Aurélio: «Redução a nada; aniquilamento; descrença absoluta; doutrina segundo a qual nada existe de absoluto; doutrina segundo a qual não há verdade moral nem hierarquia de valores; doutrina segundo a qual só será possível o progresso da sociedade após a destruição do que socialmente existe.» Mergulhe-se no Houaiss: impossível transcrever neste espaço tudo o que nos ensina nas suas 38 doutas linhas. Quanto aos dicionários de Filosofia, posto de lado o debilitado Lallande, escreve um dos melhores, o Ferrater Mora, que há um niilismo epistemológico, outro moral, outro metafísico. Menciona, depois, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, Bataille, Cioran, Sartre. Salienta que o niilismo russo teve raízes psicológicas, sociais e religiosas, evoca Bakunine e Pisarev, distingue «budismo niilista» de «niilismo budista». E basta.
Ao consagrar um segundo número ao niilismo, «Le Magazine Littéraire» decerto também tomou em linha de conta o interesse que o tema poderia despertar em jovens leitores, talvez sensíveis ao pensamento de figuras agora tão «badaladas» como o polémico romancista Michel Houellebecq, autor de «La Possibilité d’une ille» (2005), «Plateforme» (2001), «Les Particules élémentaires»(1998) e «Extension du domaine de la lutte» (1994). Alguém que se atreve a escrever: «De repente tomei consciência, embaraçado, que considerava a sociedade onde vivia quase como um meio natural – digamos, uma savana, uma selva – às leis do qual teria de me adaptar.» Que há de novo? Nada que não seja já lugar comum, bastava ter folheado Darwin ou «O Macaco Nu» de Desmond Morris. Mas é um escritor francês quem o diz, um escritor que vende às centenas de milhares e talvez consiga «épater» (que burguês?) com frases de gosto duvidoso como a que se segue: «No dia em que o meu filho se suicidou, fiz para mim ovos com tomate.» Isto, envolvido em sentenças como «este calvário ininterrupto que é a vida dos homens», passará por canhestro esboço de «humor negro», mas nunca por «pensamento», no sentido em que aplicamos o termo aos niilistas russos (Bakunine, Kropotkine, Netchaiev), aos grandes escritores austríacos (Hugo von Hofmannsthal, Hermann Broch, Robert Musil), a Schopenhauer, a Feuerbach, a Max Stirner, a Nietzsche ou a Cioran. Esses, honra lhes seja feita, sempre souberam pensar, mesmo.
«Com Nietzsche – salienta François Ewald – o niilismo deixa de designar uma corrente filosófica, um movimento literário, uma atitude política determinados; passa a caracterizar a própria civilização ocidental ou um momento da sua história, o da morte de Deus e da desvalorização dos valores.» Mas o norte-americano Richard Rorty desencoraja os aventureiros sem passaporte válido: «O pensamento do niilismo é algo de demasiado filosófico, que só é acessível aos professores de filosofia.» Verdadeiro, falso? Roland Jaccard encarrega-se de lhe responder em certeiras palavras na página seguinte do dossier: «O homem nasce só, vive só, morre só.» Apetece perguntar: Será necessário ser catedrático para compreender tão pesada condenação? Será necessário ser catedrático para saber que boa parte dos humanos deixou de acreditar nas apaziguadoras ficções criadas pela espécie ao longo dos séculos, incluindo aquela a que chamou «Deus de Misericórdia»? Será necessário ser catedrático para concordar ou discordar de Cioran quando este afirma que «seria melhor não ter nascido?» Tomar conhecimento do «nihil» (nada, em latim) do niilismo, levar a sério «o nada do nosso próprio ser», como dizia Pascal, talvez implique não renunciar a reflectir seriamente sobre a nossa origem, sobre o nosso fim e sobre Deus, ainda que abdicando do «divertissement» que, para o frívolo «dandy», é a forma mais cómoda de escapar ao solene acto de pensar. Segundo Schopenhauer, estamos condenados ao sofrimento e ao tédio, «sentimos a dor, mas não a ausência de dor, a preocupação, mas não a ausência de preocupação, o temor, mas não a segurança». O autor de «O Mundo como Vontade e como Representação» sustenta, contrariando Leibniz, que este não é o «melhor dos mundos possíveis»; resta-nos ter consciência de que a nossa existência é inexplicável e injustificável, renunciar ao desejo e aprender a abandonar a vida. Como Nietzsche sintetizou de forma lapidar, «o mundo tal como ele é não devia existir e o mundo tal como ele deveria ser não existe», opondo aos Evangelhos «a boa nova» da «morte de Deus» e da derrocada da metafísica ocidental e considerando, por isso, serem na sua época imperativas a superação do niilismo e a «transmutação de todos os valores».
«A vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio» – dizia Schopenhauer. Sofrimento físico e sofrimento moral, todos julgamos saber o que são. Mas que é o tédio «fundamental»? Eis as palavras de Cioran, bem próximas do Sartre de «A Náusea»: «Mais ou menos bruscamente, em nossa casa ou na casa dos outros, ou perante uma paisagem muito bela, tudo se esvazia de conteúdo e de sentido. O vazio está em nós e fora de nós. Todo o universo é atingido pela nulidade. E nada nos interessa, nada merece a nossa atenção. O tédio é uma vertigem, mas uma vertigem tranquila, monótona; é a revelação da insignificância universal». Utilizando as sábias palavras do Eclesiastes: «Vanidade das vanidades, tudo é vanidade»…
Le Magazine Littéraire, «Le Nihilisme», Outubro-Novembro de 2006, 98 páginas