Humanidade

Introdução

“Os Últimos dias da humanidade”[1], foi escrito e revisto ao longo da I Guerra Mundial, chegando à versão final em 1922, com a publicação integral de uma “tragédia em cinco actos”. Sátira ao mundo nas suas mais vis cenas quotidianas e apocalípticas, transmite o horror e a corrosão humana. A humanidade é culpada, perante o seu colapso, só se vislumbra a repetição da miséria, sem qualquer perspectiva de alcançar a grandeza. Esta é uma perspectiva de um mundo de terror do princípio do século XX, mas podia bem ser do princípio do século XXI. Diz-nos o autor: “O estado em que vivemos é o verdadeiro Apocalipse: o Apocalipse estável”. A lógica da sociedade é a guerra, e este é o estado normal da humanidade. Assiste-se à banalização da violência e à indiferença do valor da vida humana. E continua: “Eu escrevi uma tragédia cujo herói condenado a sucumbir é a humanidade; cujo conflito trágico, o conflito do mundo com a natureza, termina com a morte. Ai, como este drama não tem outro herói senão a humanidade, também não tem ouvintes!”

Karl Kraus estava convencido de que cada pequeno horror, ainda que de uma importância aparentemente limitada no tempo e no espaço, mostra os grandes males do nosso mundo e da nossa era. Assim, exageradamente, podia dizer que a falta de uma vírgula, era um sintoma do Estado do Mundo, que permitia uma guerra mundial. A linguagem era da mais alta importância, pois via nos seus contemporâneos, o tratamento descuidado que davam à língua como um sinal para o descuido do mundo como um todo. A linguagem não é um meio para distribuir opiniões feitas, mas sim um médium do próprio pensamento. É preciso reflexão crítica. No tempo em que os jornais é que faziam a opinião. A obra “Os Últimos dias da humanidade” é uma encenação da banalidade, um documento da época, uma via de intervenção demolidora em tempo de crise e de guerra, uma vertiginosa acumulação de citações da imprensa, pois esta era um alvo a abater. As suas observações sobre assuntos sociais, culturais e políticos mudavam constantemente, a sua crítica era, antes de mais moral e a sua ênfase era dada na precisão. As vozes do tempo estão nas páginas desta “tragédia” que tem uma figura ímpar, o eterno descontente, o mestre da indagação, porta-voz do autor. Os seus textos são marcados pela intransigência e pela ética inalienável perante a catástrofe diária de um estado de coisas “normal”. Esta peça é pioneira e a sua montagem documental é inesgotável, é o teatro do absurdo, o mundo de opereta, o discurso burguês, o documento parlamentar, a crítica da cultura austríaca, este é um drama épico da humanidade e das suas pulsões mais básicas. Assiste-se ao fim dos impérios e a uma guerra até agora nunca vista, pela sua mortandade e atrocidade feroz. Também nos nossos dias, podemos observar a aberração da dita “normalidade”, esta pode ser presenciada hoje em dia. O que se passou há um século não mudou muito desde então, a insanidade humana persiste.” Esta é uma obra auto-reflexiva, tem um olhar impiedoso sobre a sociedade, obra satírica, mas também de denúncia da estupidez humana, é uma acusação contra os mecanismos sociais que permitem a guerra.

“Citações sobre uma cidade em ruínas” é a última peça de teatro dirigida por Reza Abdoh[2]. Numa cidade, depois de um cataclismo, sobrevive-se. Carrega-se a cidade ruinosa por baixo da nossa pele. São as ruínas que nos preenchem, fazem-nos acreditar, indicam o caminho a percorrer. O arame farpado separa a audiência do palco, as sequências das danças maníacas cruzadas com as imagens, vídeo, seguem-se as cenas lúgubres com diálogos crípticos. Esta peça, situa-se no continuum do teatro experimental Americano. No final do século XX, o teatro de vanguarda acabou por criar a sua própria tradição, este teatro de performance alcançou a sua estabilidade estrutural, possui agora a sua própria linguagem.

A sua construção é em fragmentos. Não está confinada ao pós-modernismo e à vanguarda modernista, também pode ser encontrada na tradição Europeia do Barroco, como Walter Benjamin refere em ”Origem do Drama Trágico Alemão”: “O drama trágico é apresentado na forma de ruína como última herança da antiguidade. O fragmento significativo, o resto é de facto o material base da criação do barroco. Na prática, comum da literatura usavam constantemente fragmentos, sem nenhum critério ou ideia, na procura e na expectação de um milagre, na qual acontecesse a repetição dos estereótipos num processo de intensificação. Os escritores barrocos olhavam de algum modo o facto de escrever como um milagre, mas resultava num processo de acumulação.“ Este legado dá ao autor uma nova visão, ao contemplar o sentido da ruína.

O tema da SIDA é subjacente em “Citações sobre uma cidade em ruínas”, mas este tema não está só, também os abusos dos patriarcas e familiares, a autoridade social, a identidade homossexual e o seu papel inserido numa sociedade normativa, os conflitos da nova ordem mundial capitalista que se materializam na América urbana, os perigos do fundamentalismo religioso, a cultura popular especialmente em contraste com a desconstrução da cultura de massas, tem espaço para criar uma crítica radical. A SIDA introduz no trabalho uma metáfora, a ruína. A ruína do corpo perante as ruínas da sociedade moderna, o HIV que o próprio Reza Abdoh carrega consigo. Os corpos de todos aqueles que enfrentam a morte. Este teatro funciona simultaneamente em diferentes níveis de realidade. Esta peça é um theatrum mundi é o resultado da história, da economia e da política Americana, uma imagem do poder decadente.

Reza Abdoh era um manipulador de imagens, objectos e sons. Para criar diversos níveis de sentido, utilizou a estrutura da poesia persa e do teatro ritual islâmico, foi beber às suas raízes culturais, ao poeta Hāfez (1325 -1390), influenciado pela teologia mística Sufi. O seu trabalho tem diferentes níveis de significação, a escrita é descontínua e faz associações psicológicas sem ter um desenvolvimento linear. Foi buscar ao teatro dramático tradicional “Ta'zieh”, que era inspirado em eventos religiosos que simbolizam o espírito e a resistência contra o mal. Este que é predominantemente musical. À tradição muçulmana da “Recordação de Muharram”, um ritual de luto que ocorre no primeiro mês do calendário islâmico e dura dez dias. Marca o aniversário da Batalha de Karbala e a morte do Imã Hussein ibn Ali, neto do profeta Maomé. É uma tradição de procissões e mártires. Reza Abdoh também procura persuadir a audiência a participar num processo ritual transformativo e místico. A procura para atingir a divindade, para alcançar a purificação e assim a redenção, através do acto do sacrifício, do pensamento e do acto da performance. “Citações sobre uma cidade em ruínas” foca a natureza da decadência e morte. O martírio, torna-se significante num plano mais vasto, inserido num contexto de uma sociedade em transformação.

No fim da peça, na última cena iluminada fica uma imagem gigantesca de carne dependurada: carne morta. A Humanidade é a nossa ruína.

[1] KARL KRAUS (1874-1936)[2] REZA ABDOH (1963-1995)

HUMANIDADE, Citações sobre uma civilização em ruínas.

2005 | 2013