Duplo

Plínio refere-se ao primeiro auto-retrato como correspondendo ao reflexo de um homem nos olhos do seu semelhante. Relativamente à origem da pintura e da escultura, Plínio faz alusão ao dia em que alguém desenhou o contorno da sombra de um homem projectada numa parede. “A sombra é, por um lado, o que se opõe à luz; por outro, é a própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutáveis.”[1]

Em O Terceiro Instruído, Michel Serres, relata a história de Ulisses e de Ciclope, na qual Ciclope é o duplo de Ulisses. Ulisses é o grande viajante e conhecedor profundo do mundo, (pois já o havia percorrido com os seus companheiros de aventuras), mas Ulisses também é Ciclope. Também ele é Enciclopedista, como Ciclope, também ele está sempre rodeado de admiradores. Ulisses ao cegar o Ciclope, cega-se a si próprio. O Ciclope, Polifemo pergunta quem o cegou; a qual Ulisses responde que ninguém o cegou.

“Polifemo tornado Ninguém, eis o verdadeiro autor, espaço ausente de uma bela obra. Nada mais conta.

Cravou o seu olho mesmo no meio.

E Ulisses chega então para assinar a Odisseia.

Diz-se que Homero não via. Mas que lança queimou ou que ponta afiada cravou nos seus olhos?

Dito isso, quem pode reconhecer que a cor-de-rosa da aurora é acariciada com os dedos, senão por um cego clarividente.” [2]

William Wilson, de Edgar Allan Poe (1839), é a história de um personagem que ao longo da sua vida se depara constantemente consigo próprio. Ele, William Wilson é agressivo e intempestivo, o seu duplo é calmo e gentil. Ao longo da história, quando o primeiro Wilson está prestes a realizar uma artimanha maléfica, o anti-Wilson aparece para destruir os seus planos. Desconhecendo que o anti-Wilson que encontra é ele próprio, acaba por matar o seu duplo, para descobrir que tinha esfaqueado um espelho, cuja imagem a definhar sussura que Wilson se tinha morto a si próprio. Ao matar a sua consciência, Wilson não alcança a sua libertação. Torna-se um morto-vivo.

O Duplo: As Aventuras do Sr. Golyadkin, de Dostoievsky (1846), narra a história de um homem de negócios, o Sr. Galyadkin, e a aventura que o leva a S. Petersburgo, a visitar os seus amigos que o não quer receber. Na sua viagem, o Sr. Golyadkin não percebe por que é tão mal tratado. Encontra um homem que se parece com ele, tem o seu nome e nasceu na mesma vila. O Sr. Galyadkin recebe de braços abertos o novo Galyadkin, que entra na sua vida. Mas este novo Sr. Galyadkin age escandalosamente e as consequências caem sobre o velho Sr. Galyadkin que é levado para o asilo.

Em O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde, (1886) Robert Louis Stevenson (1886), conta a estranha história do Dr. Jekyll, que pratica medicina não convencional. Advertidamente bebe uma poção que lhe provoca uma divisão de personalidade, surgindo o Sr. Hyde, o seu lado negro. O Dr. Jekyll ao deparar-se com este dilema, cria uma poção para separar os seus dois seres, desligando-se deste modo do seu lado maléfico. Mas o Sr. Hyde emerge do Dr. Jekyll, sempre que lhe apetece. A única saída que resta ao médico é a morte do seu corpo que põe fim aos seus dois seres.

A história (1818) em que Mary Shelley narra as aventuras do Dr. Victor Frankenstein e da sua criação, refere-se a um estudante de medicina, obcecado em encontrar o segredo da vida, objectivo que um dia, concretiza com sucesso. O monstro, que não tem nome, irá perseguir o sábio louco toda a sua vida, porque foi abandonado por ele.

A interligação destas histórias é inevitável: sem se reconhecer, Ulisses cega-se a si próprio, William Wilson mata a sua própria consciência, o Sr. Galyadkin sofre de uma progressiva deterioração mental, o Dr. Jekyll suicida-se e o Dr. Frankenstein é perseguido pelo monstro que criou.

O homem, ao questionar-se a si próprio, não se reconhece na sua sombra.


[1] JEAN CHEVALIER, ALAIN GHEERBRANT – Dicionário dos Símbolos[2] MICHEL SERRES – O Terceiro Instruído