Colecções

Em as Vinte mil léguas submarinas (1870), de Júlio Verne, o personagem Aronnax, para além de descrever a biblioteca cheia de obras de grandes mestres antigos e modernos, apresenta o museu que o Capitão Nemo albergava no submarino “Nautilus”:

“Era um vasto quadrilátero, tendo dez metros de comprimento, seis de largura e cinco de altura. O tecto luminoso, enfeitado por ligeiros arabescos, distribuía uma luz clara e branda sobre todas as maravilhas amontoadas naquele museu. Era realmente um museu, em que mão inteligente e pródiga havia reunido todos os tesouros da natureza e da arte, nessa adorável confusão artística que distingue o atelier do pintor. Cerca de trinta quadros de mestres, com caixilhos uniformes, separados por panóplias resplandecentes, ornavam as paredes, cobertas de tapeçarias de um desenho severo. Entre outros, vi telas do mais alto valor e, na sua maior parte, por mim já admiradas nas colecções particulares da Europa e nas exposições de pintura. As diversas escolas dos antigos mestres eram representadas por uma madona de Rafael, uma virgem de Leonardo da Vinci, uma ninfa de Correggio, uma mulher de Ticiano, uma adoração de Veronese, uma assunção de Murillo, um retrato de Holbein, um monge de Velázquez, um mártir de Ribera, uma Kermesse de Rubens, duas paisagens flamengas de Teniers, três pequenos quadros de Gerard Dow, de Metsu e de Paulo Potter, duas telas de Gericault e de Proudhon, algumas marinhas de Backuysen e de Vernet. Entre as obras de pintura moderna apareciam alguns quadros assinados por Delacroix, Ingres, Decamps, Troyon, Meissonnier, Daubigny,...”[1]

André Malraux, em O Museu Imaginário, (1945-46) escreve:

“O Museu impõe uma discussão de cada uma das representações do mundo nele reunidas, uma interrogação sobre o que, precisamente, as reúne. Ao “prazer do olhar”, a sucessão e a aparente contradição das escolas vieram acrescentar a consciência de uma busca apaixonada, de uma recriação do universo frente à Criação. Afinal, o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada ideia do homem. Mas, os nossos conhecimentos são mais extensos do que os nossos museus; o visitante do Louvre sabe que não encontra ali significativamente nem Goya, nem os grandes ingleses, nem a pintura de Miguel Ângelo, nem Pierro della Francesca, nem Grunewald; dificilmente Vermeer. A obra de arte não tem outra função senão a de ser obra de arte, numa época em que a exploração artística do mundo prossegue, a reunião de tantas obras-primas e a ausência de tantas outras obras-primas, convoca, em imaginação, todas as obras-primas. Como poderia este possível mutilado não apelar para todo o possível?” [2]

Podemos dizer que cada pessoa tem o seu “Museu Imaginário” , no qual estabelece uma rede de referências artísticas.

Donald Judd, a partir de instalações militares abandonadas, em Mafra, Texas, cria o seu próprio Museu, alterando os espaços e aí instalando, permanentemente, as suas peças, bem como trabalhos de artistas convidados.

Em 1990, o Museu Guggenheim adquiriu grande parte da colecção Panza, obtendo com esta transacção uma enorme quantidade de trabalhos de diversos artistas de renome. Com a reabertura do Museu de Frank Lloyd Wright, em 1992, foi decidido não exibir toda a colecção mas, apenas, uma selecção limitada dos considerados melhores trabalhos de seis artistas, estabelecendo relações entre as suas obras.

Mais recentemente, o museu privado Insel Hombroich, criado por Karl Heinz, em Neuss, na Alemanha, organizou complexas exposições de arte contemporânea e de peças de culturas ancestrais.

O Museu für Moderne Kunst, em Frankfurt, também na Alemanha, prepara exposições com diversos trabalhos, numa organização que suscita novas interpretações. As peças agrupadas funcionam, entre elas, como grupos definidos por “climatic zones”, ou zonas de influência, isto é, juntam artistas da mesma geração ou de sensibilidades próximas. Algumas instalações são permanentes e outras são mudadas periodicamente, criando novas confrontações com os trabalhos expostos.

“... Alexander Doner, o visionário director do Museu de Hanover, em 1920. Dorner definiu o museu como um “kraftwerk”. Convidou artistas como El Lissitzky para realizar uma exposição dinâmica de um Museu. Nos seus escritos, Uberwindung der Kunst ( Indo para além da arte), Dorner enfatiza a sua intenção de transformar o white cube neutral, de modo a assumir um espaço mais heterogéneo. (...) A importância de Dorner reside no facto de ter antecipado a urgência de questões como: o museu em permanente transformação dentro de parâmetros dinâmicos, o museu oscilando entre o objecto e o processo, (...) o museu como um arriscar pioneiro para agir e não para esperar! O museu como um “locus” de cruzamento de arte e vida.”[3]

Outrora o Museu albergava as grandes obras-primas da pintura europeia, os antigos mestres determinavam a colecção. A inovação da fotografia e a reprodução vieram alterar o nosso modo de ver a colecção que, agora, convoca o Museu Imaginário de cada um de nós.

A arte contemporânea congrega uma grande variedade de estilos e de processos artísticos. Os museus são também instituições onde existem dinâmicas culturais, tornaram-se flexíveis, na medida em que põem em confronto as obras de arte, tentando estabelecer links. Realizando exposições que estão em perpétuo movimento, num contínuo processo dinâmico, como a vida.


[1] JÚLIO VERNE - Vinte mil léguas submarinas (1870)[2] ANDRÉ MALRAUX – O Museu Imaginário,[3] GAVIN WADE – Curating in the 21st Century: …Alexander Dorner, the visionary director of the Hanover Museum in the 1920s. Dorner defined the museum as a “Kraftwerk”: he invited artists such as El Lissitzky to realise a contemporary dynamic display of a museum on the move. Dorner emphasises in his writings “Uberwindung der Kunst” (going beyond art) as intended to transform the neutral white cube in order to assume a more heterogeneous space. (…) The importance of Dorner lies in the fact that he anticipated very early the urgency of issues such as: the museum in permanent transformation within dynamic parameters, the museum in a oscillation between object and process, (…) the museum as a risk-taking pioneer to act and not to wait! The museum as a locus of crossing of art and life…