Borges e Eu

Neste texto, Borges utiliza a voz de uma outra pessoa que se refere a Borges, a figura pública, o famoso autor. Esta voz que fala na primeira pessoa, cria a distância necessária entre ele e o próprio Borges. Num contínuo humor e autoparódia o narrador sugere que Borges, o autor, tem tendência para falsificar as coisas, mas o escritor sabe que estas formas são próprias da representação da escrita, incluindo a própria autobiografia, que contém o seu suposto testemunho.

“Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. (...) Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que consegui certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição, Além do mais, estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vão-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso costume de falsificar e magnificar. (...) Assim a minha vida é uma fuga, e tudo perco, e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página. ” [1]

O narrador refere-se a Borges, separando-o da personalidade e da sua identidade objectiva que a verdadeira pessoa carrega na sua relação com os outros, diferencia-se do Borges, usando o Eu como primeira pessoa da narração. O escritor constrói diversas camadas de discurso, segundo a convenção literária: pessoa, narrador, autor, o Eu por de trás do escritor, a verdadeira pessoa da vida real por de trás do autor como identidade social.

Às vezes, a personagem identifica-se com Borges o autor, mas como o Eu pode referir-se a si próprio e ao nome de Borges, no mesmo contexto, as identidades mantêm-se distintas. Negando a ideia humanista de perpetuar a existência através da fama, a verdadeira pessoa por trás do escritor morrerá certamente, e só uma pequena parte dessa pessoa, poder-se-á dizer, sobrevive nos escritos de Borges. O escritor separa a vida da escrita, o narrador argumenta que o que escreveu não é validado por nada da própria pessoa, no seu Eu por trás da personagem, mas sim pela sua participação na tradição da literatura.

A vida nunca faz mais do que imitar o livro, e esse livro não é ele próprio senão um tecido infinito.

[1] JORGE LUÍS BORGES – O Fazedor