Cultura Narcótica

Narciso, de raiz etimológica (narké), narcose, é o conjunto de efeitos patológicos que causa uma paralisia nas funções do cérebro. Este fenómeno narcótico manifesta-se em concomitância com o surto de alienação que vai pelo mundo. A sociedade de consumo capitalista necessita de homens que tenham o desejo de consumir, cujos gostos sejam nivelados e se revelem influenciáveis e previsíveis. Isto significa que o homem contemporâneo está alienado de si mesmo, dos seus semelhantes e da própria natureza de que faz parte. Aldous Huxley, em O Admirável Mundo Novo, propõe uma humanidade muito próxima do homem contemporâneo: pessoas bem alimentadas, bem vestidas, sexualmente satisfeitas, mas sem qualquer identidade, mantendo apenas um contacto superficial umas com as outras, guiadas pelos slogans publicitários.

O mundo contemporâneo pode ser definido como a sociedade do narcisismo, porque fornece a interpretação da cultura visual em relação ao próprio homem. Para além da essência do vídeo que se torna um espelho da realidade, a sociedade capitalista promove, através da televisão, anúncios e jogos de computador, um caleidoscópio de ídolos de que o público se apropria.

“No mundo de hoje, a questão da identidade cruza-se paradoxalmente com a da alteridade. Numa sociedade onde a consciência crítica de si mesmo e dos outros se encontra longe de ser estimulada, o “eu” parece resultar muitas vezes do cruzamento das imagens mediatizadas de um “Outro” no qual se projecta, num processo de histeria cultural em que a assimilação e a apropriação da imagem desse Outro resultam constitutivas de papéis sociais pré-determinados.” [1]

Freud refere-se ao narcisista, como aquele que “tende a ser auto-suficiente e busca as suas manifestações principais nos seus processos mentais internos” [2], sendo então o narciso contemporâneo um caleidoscópio reflexivo da sociedade actual. Na esteira dos sociólogos americanos como nos diz Margarida Medeiros: “a designação de “cultura do narcisismo”, para caracterizar a época contemporânea, tem vindo a tornar-se num lugar comum..” [3]

Ou segundo Gilles Lipovetsky, que escreve:

“ O narcisismo não se identifica com o descomprometimento político do momento, mas corresponde mais amplamente à descrispação dos temas políticos e ideológicos e ao sobre investimento concomitante das questões subjectivas. windsurf, skate, asa delta, a sociedade pós-moderna é a época do deslizar, imagem desportiva que ilustra de perto um tempo em que a respublica já não tem qualquer elo sólido, qualquer ponto de ancoragem emocional estável.” [4]

A cultura do narcisismo reflecte então a negação da própria identidade, num tempo que é sempre o presente, desde o primeiro até ao último minuto de vida. O mundo é agora recordado pelo formato de pequenos espelhos de imagens narcisistas.


[1] JOÃO FERNANDES – “Cindy Sherman e a Teoria das Semelhanças: Os meus Sonhos são os Sonhos que me Ensinaram”, in O Impulso Alegórico,[2] SIGMUND FREUD – O Mal-Estar da Civilização,[3] MARGARIDA MEDEIROS, op. cit.[4] GILLES LIPOVETSKY – A Era do Vazio