Narciso

Ovídio, poeta romano e autor das Metamorfoses, (século I) narra a trágica e bem conhecida história de Narciso, concebido por uma união forçada entre a ninfa Liríope e Céfiso. O oráculo, de modo bem ambíguo, sentenciou que Narciso, poderia viver na condição de jamais se conhecer. Amoroso de si próprio, sucumbe na perseguição da ilusão do seu duplo. O seu corpo jamais foi encontrado, surgindo dessa ausência uma flor com o seu nome. A tragédia de Narciso é não se reconhecer. O reflexo conta-lhe uma fábula de amor. A sua imagem é espelho da impossibilidade de viver sem nunca se conhecer a si próprio. Curiosamente, o vaticínio é o oposto do que o oráculo deDelfos proclamou a Sócrates, como princípio da sabedoria de vida.

Há várias descrições do mito de Narciso. Para além da história descrita por Ovídio, Pausânias no século II, registou duas versões. Segundo uma delas, Narciso sabe que vê o seu próprio reflexo, acabando por morrer junto à fonte; a outra adianta que Narciso tem uma irmã gémea e morta esta, ele inconsolável, vai à fonte. Quando olha para a água, vê a irmã e recebe algum consolo para a sua dor. No hino homérico a Deméter, Pausânias apresenta outra versão do mito de Narciso: Deméter, deusa sagrada, tinha uma filha de nome Perséfone, que foi conquistada por Hades. A história narra que Perséfone colhia flores com as filhas de Oceano: rosas, açafrões, violetas, íris, jacintos e o narciso. A Terra tinha gerado o narciso propositadamente para a bela Perséfone ficar estupefacta de acordo com o plano de Zeus, destinado a agradar a Hades. Ao admirar a flor, Perséfone é raptada por Hades, que a leva para o reino inferior, caracterizado pela invisibilidade, representando deste modo um lado feminino e oculto do carácter de Narciso.

Sabendo que alguns mitos retractam Perséfone como mãe de Dionísio, sendo este considerado com frequência hermafrodita, um deus efeminado, podemos considerar a dupla sexualidade de Narciso. Deste modo, o Narciso másculo ama o Narciso feminino. A oposição entre duas formas de conhecimento é a sua fatalidade, pois Narciso dificilmente se pode possuir a si próprio. A sua imagem reflectida nas águas é, a um tempo, trágica e cómica. Estando defronte do espelho, luta constantemente consigo. Essa luta gera a sua morte.

Gaston Bachelard, no trecho que se segue, enfatiza claramente a dualidade sexual entre Narciso e Eco, a ninfa apaixonada:

“Narciso vai, pois, à fonte secreta, no fundo dos bosques. Só ali ele sente que é naturalmente duplo; estende os braços, mergulha as mãos na direcção da sua própria imagem, fala à sua própria voz. Eco não é uma ninfa distante. Ela vive na cavidade da fonte. Eco está incessantemente com Narciso. Ela é ele. Tem a voz dele. Tem o seu rosto. Ele não a ouve num grande grito. Ouve-a num murmúrio, como murmúrio de sua voz sedutora, de sua voz de sedutor. Diante das águas, Narciso tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade, a revelação de seus duplos poderes viris e femininos, a revelação, sobretudo, de sua realidade e de sua idealidade.”[1]


[1] GASTON BACHELARD – A Água e os Sonhos, Ensaio sobre a imaginação da matéria