Artista Receptor

No início do filme JLG/JLG, uma câmara percorre o interior escurecido da casa de Godard, alguns raios de luz entram pela janela e a câmara leva-nos até um seu retrato, enquanto jovem. Em voz off, ouve-se Godard: “Eu já estava de luto por mim próprio”. Godard vive depois da morte da sua marca autoral, tal como é descrito na obra Le Brussement de la Langue, de Roland Barthes. Este escreve que, após a morte biográfica, Mallarmé renasce como escritor, pois depara-se com o facto de só poder imitar os gestos que são sempre anteriores.

Esta noção de escritor é aquela a que Godard se refere no filme JLG/JLG em que faz presentes várias alusões a Mallarmé. Deste modo, no filme, Godard é não um autor mas, sim, um receptor. Recebe a própria linguagem de que emerge como agente. Assim a escrita e linguagem expandem o seu sentido linguístico e o significado cinematográfico, e dão azo a percepções sensoriais de todo o tipo.

O filme de Godard não é um estudo autobiográfico. É uma investigação dele próprio como autor. Godard descreve-se como sofrendo de uma perda de si, e, ao longo do filme, observamos imagens fixas de paisagens, representando, de algum modo, o seu fim iminente como autor. O filme JLG/JLG leva-nos numa viagem à carreira do realizador, assim como à vida e à natureza do cinema e da cultura. Godard refere-se à cultura como um negócio e à arte, como algo muito diferente. JLG/JLG levanta, questões de auto-exame e identidade e aborda continuamente a problemática da natureza reflexiva do cinema. Tendo por subtítulo A Self-portrait in Winter, o filme é visto pelo cineasta como um auto-retrato e não como um documentário ou uma autobiografia. A sua cinematografia recorre à pintura, às artes visuais, à literatura, e também a páginas brancas: Godard abre o filme JLG/JLG com os nomes das principais figuras da Revolução Francesa, escritos à mão no calendário. Estas marcas significam um recomeçar.

Godard apresenta-se como estando de luto, especificando que a pessoa que já morreu não é um familiar ou um amigo, mas sim ele próprio. Aludindo ao seu luto como prematuro, de alguma forma imaginou o seu julgamento final. O evento mortal de que fala é a sequência do filme em que declara a sua morte como autor, embora a sua marca autoral permaneça no filme. Godard é um artista receptor que permanentemente interage num tecido de mil focos de cultura.