Condição Humana

Introdução

Shangai, 1927. O terrível horror do esmagamento da revolução, levada a cabo por Chiang Kai-shek, é retratado por Malraux, na sua obra A Condição Humana. A poderosa imagem de uma das personagens (Kyo) e de duzentos compatriotas comunistas à espera de serem atirados para a fornalha do comboio, que apita sempre que faz mais uma vítima, parece, de algum modo, retratar a nossa condição. Malraux dá conta das possibilidades que a revolução oferece ao indivíduo, como ser único, contra a angústia da existência e a certeza da morte, num universo incompreensível. Coloca como pano de fundo o coração da revolução, para mostrar o ponto de vista do indivíduo. A atitude de Kyo, que permanece em Shangai apesar do ataque iminente, revela a aceitação das limitações do mundo humano e das dimensões do drama: fica com os restantes camaradas, apesar do preço que tem de pagar, assumindo a sua Condição Humana num mundo negro, em que todos os homens são vítimas, estando constantemente a viver a morte. No mundo da acção permanente, manter-se humano representa a opção de Kyo. As humanas fraquezas e qualidades emergem no mundo da experiência concreta, no mundo dos eventos revolucionários de que Kyo faz parte. Não escapando, aceitando a morte, permanece na vida humana e nas suas possibilidades de sentido.

A Condição Humana, segundo Malraux, é a vivência em condições extremas, em que a morte e a vida representam o destino de qualquer ser humano, no meio do sacrifício, da esperança, da fraternidade e do amor, e em que cada uma das personagens se debate e vai conhecendo o seu fim. São figuras impotentes e frágeis que, pelos sentimentos e lutas que travam na vida diária, se tornam testemunhas da grandeza humana que os ultrapassa. Na proximidade do momento em que cada ser humano descobre a dignidade, a fragilidade e a violência vivenciadas no meio do caos, parece apontar apenas saídas de pura perda. Num mundo que se trai a si próprio, cumpre-se o destino: odo homem e o da civilização.

A condição humana é mais do que a existência do ser humano na Terra, segundo a ordem natural da vida: nascimento-crescimento-morte. O mundo real onde vivemos é condicionante da nossa existência humana. “Os homens são “os mortais”, os únicos mortais que existem porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação. A mortalidade dos homens reside no facto de a vida individual, com uma história vital identificável desde o nascimento até à morte, provir da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras pelo curso rectilíneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha recta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico.”[1] O tema central da proposta de Hannah Arendt é abordar as manifestações elementares da condição humana, as actividades que estão ao alcance do ser humano.

A Condição Humana de Hannah Arendt retrata a nossa conexão à terra e à necessidade de trabalhar. O labor é estabelecido como central para a compreensão da vida. Mas o progresso tecnológico reduz a sua necessidade. O problema é a habilidade de explicar os desenvolvimentos científicos e tecnológicos, pois as suas linguagens específicas tornam-se complexas. Como temas políticos, necessitam de soluções políticas e a questão é encontrar um caminho para pensarmos estas questões.

O termo vita activa é a expressão clássica latina, que decorre de bios politikos, a política da vida, segundo Aristóteles. Originalmente, o centro da vida activa era a procura da imortalidade, à semelhança dos deuses do Olimpo: a imortalidade vista como a capacidade de o homem realizar feitos notáveis e deixar vestígios atrás de si. Os homens, apesar da sua mortalidade, alcançam em certo sentido a imortalidade, mas esta glória está em contraste com uma vida de trabalho e labor, que não escolheram livremente.

Santo Agostinho, na esteira de Platão, definia a vita activa como o oposto à vida contemplativa. No entanto, Arendt tenta reconhecer a presença da contemplação na vita activa. Uma via a seguir entre vita activa e vita contemplativa é compreender a relação de imortalidade e eternidade: a imortalidade refere-se a todo o tempo, enquanto a eternidade está fora do tempo. A produção tende para a imortalidade, enquanto a filosofia dedica os seus esforços à eternidade.

Assim, a autora estabelece, com a expressão vida activa, três actividades fundamentais para o ser humano: labor, trabalho e acção. O labor corresponde ao processo da vida: “a condição humana do labor é a própria vida”; “o trabalho é a actividade correspondente ao artificialismo da existência humana”; “a acção corresponde à condição humana da pluralidade, ao facto de os homens, e não o Homem, viverem na Terra e habitarem o mundo.” [2] As três estão conectadas à Condição Humana, ao ciclo da vida (labor, trabalho e acção) e à própria vida, com os seus artefactos e memórias.

A actividade laboral chega ao fim quando a vida termina. O trabalho é o que o homo faber faz. As mãos humanas produzem o ambiente artificial a que chamam casa. Esta acção faz com que a organização das pessoas contribua para assegurar a paz, que garante a condição de contemplação.

Hannah Arendt reflecte sobre as capacidades humanas decorrentes da condição humana, que são permanentes. Seguindo uma análise histórica, pesquisa as origens da alienação do mundo moderno e a sua fuga, da terra para o universo e do mundo para dentro do homem. Os filósofos gregos viam o corpo do homem como a prisão da mente e da alma; a terra seria a prisão para o corpo dos homens. O desejo de alcançar as estrelas constitui a sua força motriz, e, segundo a autora, “a terra é a própria quinta-essência da condição humana e ao que sabemos, a sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício.”[3]

A ciência esforça-se por tornar artificial a vida e cortar o último laço com a natureza. O homem do futuro seria, assim, motivado por uma rebelião contra a existência humana, tal como foi concebida. Na antevisão de que a humanidade escapará um dia à atracção gravitacional da terra.


[1] HANNAH ARENDT (1906-1975) – A Condição Humana, (1958)[2] HANNAH ARENDT – A Condição Humana, (1958)[3] Idem

Condição Humana, Teoria e prática de bolso.

2000 | 2004