VALORES - Ética e Condição Humana

Conhecer alguns pontos fundamentais sobre a ética não é apenas uma - questão acadêmica ou restrita a alguns momentos em que a sociedade discute mais acaloradamente - por exemplo, os problemas éticos na política - mas é também uma necessidade para a convivência social.

Para entendermos melhor isso devemos começar a nossa análise com o próprio ato de se fazer a pergunta: "Que devo fazer?" Esta pergunta mostra que os seres humanos não nascem geneticamente pré-programados. O fato de não saber como agir numa determinada situação nos mostra que, diferentemente de outros animais, os seres humanos são seres Inacabados, Isto é, não são determinados pela natureza. Tampouco somos seres predestinados, isto é, determinados pelo destino ou por Deus(es). Se o fôssemos, agiríamos Instintivamente e não faríamos este tipo de pergunta. Por isso é que cada um, ou cada grupo social, cria respostas e soluções diferentes para perguntas e problemas semelhantes.

O ser humano deve, portanto, construir ou conquistar o seu ser. Ele não nasce pronto, se faz ser humano, se torna pessoa. O grande desafio de nossas vidas é este processo de construção do nosso ser.

O fato de sermos diferentes de outros animais não quer dizer que não tenhamos nada em comum com eles. Nós também partilhamos de certas determinações da natureza, certas "necessidades naturais" que não podemos Ignorar. Ninguém pode deixar de comer, respirar, beber, dormir, sonhar etc. sem correr o risco de morrer. Mas, ao mesmo tempo, nós temos um espaço de liberdade em nossas vidas. Os nossos sonhos, os desejos, as soluções para essas necessidades e outros aspectos da vida não são determinados pela natureza ou pelo destino.

O fato de sermos livres, mesmo que não o sejamos de uma forma absoluta, levanta o problema da responsabilidade. Se a nossa vida não está pré-programada pela natureza ou destino/Deus, a forma como a organizamos. o sentido que damos à nossa existência e o modo como solucionamos os problemas que surgem na relação com outras pessoas e com a natureza é de nossa responsabilidade. Devemos ser responsáveis pelas consequências das nossas ações e atitudes. Pois delas dependem a convivência humana e a realização do "ser humano" de cada um.

Esta responsabilidade, que nasce de nosso espaço de que pode parecer assustador. Pensar que o nosso futuro e da própria humanidade está nas mãos de cada um de nós - pelo menos no que toca à nossa responsabilidade - nos traz insegurança. Por isso é muito tentador acreditar que as nossas vidas já foram predestinadas pela vontade divina ou pelo destino. Ou então simplesmente não pensar nestas coisas e imitar o que outros fazem, reproduzindo os valores e normas morais vigentes na sociedade. Sem se preocupar muito com a conquista do nosso ser e com as conseqüências futuras das nossas ações individuais e coletivas.

Indignação ética

Um segundo ponto é a pergunta sobre o que "devo fazer" ou sobre o que "deveria ser". Ela nos mostra uma importante diferença entre o ser e o dever-ser. Só quando superamos a visão da realidade existente como algo inquestionável e absoluto é que podemos imaginar sonhar e pensar sobre outra realidade diferente e melhor.

Na época da escravidão, por exemplo, as pessoas acreditavam que os escravos eram seres inferiores por natureza (como dizia Aristóteles) ou pela vontade divina (como diziam muitos na América colonial). Elas não se sentiam eticamente questionadas diante da Injustiça cometida contra os escravos. Isso porque o termo "injustiça" já é fruto de juízo ético de alguém que percebe que a realidade não é o que deveria ser. A experiência existencial de se rebelar diante de uma situação desumana ou injusta é chamada também de indignação ética.

Tal indignação é uma das experiências humanas fundamentais, pois é a experiência de liberdade frente às normas Injustas e petrificadas aceitas com "normalidade". É a experiência que nos permite também desmascarar o mal travestido de normalidade e descobrir, mesmo que parcial e superficialmente, o bem e a justiça. Leva-nos também a vislumbrar um futuro que não seja uma mera repetição do presente, e nos impulsiona a construirmos um futuro diferente e melhor do que o presente.

Intenções e efeitos

Um terceiro ponto. Quando assumimos a nossa condição humana - com necessidades e liberdade, limites e potencialidades - e buscamos realizar o nosso ser, tornamo-nos responsáveis pelas nossas atitudes e atos. Isto é, somos responsáveis não somente pelas intenções das nossas ações, mas também pelas suas conseqüências.

As nossas ações têm por trás de si motivações. Essas podem ser conscientes ou inconscientes. Quando são conscientes, isto é, quando temos a consciência do fim almejado e dos meio utilizados, nós temos um ato voluntário. Ao contrário do que muitos podem pensar somente uma pequena parte das nossas ações tem motivações conscientes e são voluntárias. A maioria delas tem motivações inconscientes e é "automática". Estas ações "automatizadas" são frutos da internalização de valores e regras morais e sociais. Internalização essa que se dá no processo de socialização de todos os indivíduos numa sociedade.

Além das Intenções devemos levar também em consideração as conseqüências das ações. É importante destacar que as ações humanas produzem efeitos intencionais, mas também efeitos não-intencionais. Isto é, consequências que não estavam previstas na intenção do ato e que, muitas vezes, vão à direção oposta da intenção. Um exemplo disso pode ser alguém que tendo problema de estômago toma sal de fruta e vê a situação agravada porque o "remédio" piorou a sua úlcera. Ou então alguém que na Intenção de melhorar a qualidade de vida usa produtos que aumentam o efeito estufa, que pode tornar inviável a vida humana sobre a terra.

Os efeitos não-intencionais mostram que há algo entre a intenção da minha ação e o resultado que não foi previsto e controlado. A primeira possibilidade é que a minha ação teve um problema operacional, isto é, não foi capaz de materializar a minha Intenção. Nesse caso, eu devo aperfeiçoar a minha capacidade de ação. No caso de não ser verdadeira a hipótese anterior, aparece a possibilidade de que entre a minha ação e o resultado final exista uma estrutura ou sistema (social, econômico, cultural, político, biológico etc.) que processe as minhas ações de uma forma diferente daquela que eu tinha previsto originalmente.

O conhecimento da possibilidade dos efeitos não-intencionais nos levanta a necessidade de não reduzirmos as questões éticas às intenções das pessoas e também a de entendermos melhor estas estruturas ou sistemas que Interferem nas nossas ações e vidas.

Conflitos Inevitáveis

O questionamento ético revela algumas contradições que fazem parte de nossas vidas. A primeira é o conflito que pode existir entre meu interesse em curto prazo e meus objetivos a médio ou a longos prazos. Podemos tomar como exemplo uma experiência comum na nossa infância: a vontade de brincar sem- parar e o objetivo de passar de ano na escola. São dois objetivos bons "em si", mas que, na maioria dos casos, são contraditórios se colocados dentro da linha do tempo. Infelizmente ou felizmente a nossa vida não é linear e os nossos interesses e objetivos não são necessariamente acumulativos. Existem opções e interesses imediatos ou menores que se chocam com os objetivos maiores e em longo prazo.

É claro que neste exemplo não há uma resposta a priori que sirva para todos. Cada um que se vê neste tipo de situação deve pesar as vantagens e desvantagens de cada opção e fazer, se não forem absolutamente excludentes, uma escolha que permita atingir o bem maior sem negar totalmente os interesses imediatos.

O que nos Interessa aqui é mostrar que existe este tipo de conflito de interesses e que no discernimento concreto deve prevalecer o bem (objetivo) maior do Indivíduo ou do grupo. Mas como existem motivos e objetivos Inconscientes, multas vezes não é tão simples saber qual é o objetivo maior que deve servir de critério para definir o que se deve fazer. Principalmente quando se trata de conflito entre interesses imediatos e de longo prazo de um grupo social. Pois nesses casos os interesses inconscientes ou não confessos têm um peso ainda maior.

Além desse conflito existe também o conflito entre Interesse pessoal e coletivo. Se não houvesse esse tipo de conflito, ou se não fosse Importante, as pessoas não se perguntariam sobre o que deve ou não fazer em relação às outras pessoas ou outros grupos. Simplesmente buscariam os seus interesses próprios, ignorando os interesses e direitos dos outros e os da coletividade como tal.

Mas a vida nos ensina que ninguém, ou quase ninguém, pode viver totalmente isolado, não somente por causa das necessidades afetivas, mas também por causa das necessidades materiais. E multo difícil para uma só pessoa produzir todas as coisas de que necessita para sobreviver dignamente. A necessidade de conviver com outros nos leva à necessidade de estabelecermos relações que permitam a sobrevivência de todos os que compõem a coletividade. Isso significa na prática que os meus direitos e interesses não podem ser absolutizados na medida em que entram em conflito com interesses e direitos de outros com os quais necessito conviver. A absolutização dos meus interesses seria a negação dos direitos de outros e a declaração de que eu não necessito deles para viver. Se cada um toma este tipo de atitude, torna-se impossível a vida em um grupo social.

Além disso, existem interesses da coletividade que não são somente diferentes, mas também conflitantes com interesses Individuais dos seus membros. Se pegarmos como exemplo a cobrança de Impostos, com certeza chegaremos à conclusão de que ninguém gosta de pagá-los e que não os pagaria se pudesse e se tivesse a certeza de que não iria sofrer sanções. É exatamente por isso que se chama "imposto" (particípio passado do verbo impor). Mas as pessoas que têm consciência do conflito entre os interesses individuais e os da coletividade sabem que os impostos são uma necessidade de todas as sociedades para a realização de serviços públicos.

Por trás de normas e valores morais que regulam este tipo de conflito está uma experiência humana secular: um membro de uma coletividade não sobrevive se esta mesma coletividade vier a se extinguir. É claro que existem exceções para membros que conseguem encontrar novos grupos em substituição daquele que acabou. Mas quando a coletividade que acaba é a própria humanidade, com a inviabilização da vida humana na terra, nenhum indivíduo poderá se tornar esta exceção.

Autores: Jung Mo Sung e Josué Cândido da Silva

Livro: Conversando Sobre ética.

Ed.: Vozes.