Carta 20

O perigo fatal a uma vida factual

é vivê-la ficticiamente.

Carta Filosófica Nº 20

Engane-se quem pensa que há um ser humano sequer, que viva toda vida de forma factual. Não é possível. Se fosse, a imaginação, as fantasias, as ilusões, os sonhos, as divagações, não o seriam.

Penso que estas saídas nos são imprescindíveis e por isso, necessárias para que suportemos a facticidade da vida. Creio que estes retiros da razão e dos sentimentos funcionam como calma e descanso ao espírito e à alma, assim como o sono para o corpo fatigado e para mente atormentada pelos mistérios e angústias do porvir.

Dito de como entendo estas formas dos devaneios, digo que assim também equivale a ficção para a vida factual.

A vida fictícia, é como se criássemos uma vida alternativa para recorrermos a ela toda vez que a vida factual atingisse o limite da suportabilidade, é como se criássemos um lugar para visitarmos e renovarmos nossas forças para após o retorno, continuar nossa errante itinerância, agora com os pés aliviados das dores da caminhada de até então.

Ocorre, que o perigo fatal à vida factual é justo a inversão desta vivência, é passarmos a viver ficticiamente a vida factual, - que não se confunde com viver factualmente a vida fictícia – pois, isso não nos causaria mal algum, uma vez que não pode haver nenhum mal em viver verdadeiramente nossos sonhos.

Porém o contrário não tem o mesmo valor de juízo, pois viver ficticiamente a vida factual é, em essência, negá-la e, portanto, é estar morto ainda que em vida – este é o caráter de fatalidade da vida fictícia, o perigo fatal à vida factual – e isso é ainda pior que morrer, porque a morte traz em si algo de bom; a complementaridade da vida, a finitude de uma existência. Já o perigo fatal de uma vida ficcional é a antivida, a negação da existência, do ser-no-mundo.

Outubro, de 2002

Westerley