DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE - Primeira parte

Jean-Jacques Rousseau

DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE

—Ridendo Castigat Mores—

PRIMEIRA PARTE

Por mais importantes que seja, para bem julgar do estado natural do homem, considerá-lo desde a sua origem e o examinar, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não seguirei sua organização através dos seus desenvolvimentos sucessivos: não me deterei a rebuscar no sistema animal o que teria podido ser no começo para se tornar enfim o que é. Não examinarei, como o supõe Aristóteles, se suas unhas alongadas não foram primeiro garras aduncas; se não era peludo como um urso; e se, ao andar de quatro patas(3), o seu olhar dirigido para a terra e limitado a um horizonte de alguns passos não marcaria ao mesmo tempo o caráter e o limite de suas idéias. Eu só poderia formar sobre isso conjecturas vagas e quase imaginárias. A anatomia comparada fez ainda muito poucos progressos, e as observações dos naturalistas são ainda muito incertas, para que se possa estabelecer sobre tais fundamentos a base de um raciocínio sólido: assim, sem recorrer aos conhecimentos sobrenaturais que temos sobre esse ponto, e sem considerar as mudanças que deveriam sobrevir na conformação tanto interior como exterior do homem, à medida que ele aplicava seus membros em novos misteres e que se nutria de novos alimentos, hei de supô-lo sempre tal como o vejo hoje, andando com dois pés, servindo-se de suas mãos como fazemos com as nossas, dirigindo o olhar para toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu.

Despindo esse ser assim constituído de todos os dons sobrenaturais que pode receber e de todas as faculdades artificiais que pode adquirir somente por longos progressos; considerando-o, em uma palavra, tal como deveria ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, afinal de contas, organizado mais vantajosamente do que todos: vejo-o saciando-se debaixo de um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas necessidades.

A terra, abandonada à sua fertilidade natural(4) e coberta de florestas imensas que o machado jamais mutilou, oferece a cada passo celeiros e abrigos aos animais de toda espécie. Os homens, dispersos entre eles, observam, imitam sua indústria e se elevam, assim, até ao instinto das feras; com a vantagem de que cada espécie só tem o seu próprio, e o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença, se apropria de todos, nutre-se ele igualmente da maior parte dos alimentos diversos(5) partilhado entre os outros animais e encontra por conseguinte sua subsistência mais facilmente do que qualquer dos outros.

Acostumados desde a infância às intempéries do ar e ao rigor das estações, exercitados no trabalho e forçados a defender nus e sem armas a sua vida e a sua presa contra os outros animais ferozes, ou a escapar da sua perseguição, os homens adquirem um temperamento robusto e quase inalterável: os filhos, trazendo ao mundo a excelente constituição dos pais e fortificando-a com os mesmos exercícios que a produziram, adquirem assim todo o vigor de que a espécie humana é capaz. A natureza faz precisamente com eles o que a lei de Esparta fazia com os filhos dos cidadãos: torna forte e robustos os que são bem constituídos e faz morrer todos os outros, divergindo nisso das nossas sociedades, em que o Estado, tornando os filhos onerosos aos pais, os mata indistintamente antes do nascimento.

Sendo o corpo do homem selvagem o único instrumento que conhece, emprega-o em diversos usos, para os quais, por falta de exercício, os nossos são incapazes; e é nossa indústria que nos tira a força e a agilidade que a necessidade o obriga a adquirir. Se tivesse um machado, seu pulso quebraria tão fortes galhos? se tivesse uma funda, lançaria com a mão uma pedra com tanta força? se tivesse uma escada, treparia tão ligeiro numa árvore? se tivesse um cavalo, seria tão rápido na carreira? Deixai ao homem civilizado tempo para reunir todas essas máquinas em torno de si, e não se pode duvidar que ultrapasse facilmente o homem selvagem mas quereis ver um combate ainda mais desigual, ponde-os nus e desarmados um diante do outro, e reconhecereis logo, qual é a vantagem de ter sempre todas as suas forças à disposição, de estar sempre pronto para toda eventualidade e de se trazer sempre, por assim dizer, todo consigo(6). Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e combater. Um filósofo ilustre pensa, ao contrário, e Cumberland e Pufendorf também o afirmam, que nada é tão tímido como o homem em estado de natureza, sempre trêmulo e prestes a fugir ao menor ruído que o impressione, ao menor movimento que perceba. Pode ser assim em relação aos objetos que não conhece; e não duvido que ele não se impressione com todos os novos espetáculos que se lhe ofereçam, todas as vezes que não pode distinguir o bem do mal físicos que deve esperar, nem comparar suas forças com os perigos que deve correr, circunstâncias raras no estado de natureza, em que todas as coisas marcham de maneira tão uniforme, e em que a face da terra não está sujeita a essas mudanças bruscas e contínuas que causam as paixões e a inconstância dos povos reunidos. Mas, o homem selvagem, vivendo disperso entre os animais e encontrando-se desde cedo na contingência de se medir com eles, estabelece logo a comparação; é sentindo que os supera mais em agilidade do que eles o superam em força, aprende a não os temer. Ponde um urso ou um lobo em luta com um selvagem robusto, ágil, corajoso, como são todos, armado de pedras e de um pau, e vereis que o perigo será pelo menos recíproco e que, depois de muitas experiências semelhantes, os animais ferozes, que não gostam de se atacar entre si, atacarão de má vontade o homem, no qual encontraram tanta ferocidade como em si mesmos. Quanto aos animais que têm realmente mais força do que o homem agilidade, ele está, em relação a eles, no caso das outras espécies mais fracas, que não deixam de subsistir; com a vantagem, para o homem, de que, não menos disposto a correr do que eles e encontrando nas árvores um refúgio quase seguro por toda parte, pode ele optar entre aceitar ou abandonar a luta, tendo a escolha da fuga ou do combate. Acrescentemos que não parece que, naturalmente, algum animal faça guerra ao homem fora do caso da sua própria defesa ou de fome extrema, nem testemunhe contra ele essas violentas antipatias que parece anunciarem que uma espécie está destinada pela natureza a servir de pasto à outra.

Eis sem dúvida, as razões por que os negros e os selvagens fazem tão pouco caso dos animais ferozes que podem encontrar nas selvas. Os caraibas, da Venezuela, vivem, entre outros, a esse respeito, na mais profunda segurança e sem o menor inconveniente. Embora quase nus, diz François Corréal, não deixam de se expor ousadamente nos bosques, armados somente de flecha e arco; mas, nunca se ouviu dizer que algum deles fosse devorado pelas feras.

Outros inimigos mais perigosos, dos quais o homem não tem meios para se defender, são as debilidades naturais, a infância, a velhice, e as moléstias de toda espécie, tristes sinais de nossa fraqueza, sendo que os dois primeiros são comuns a todos os animais e que o último pertence principalmente ao homem que vive em sociedade. Observo mesmo, em relação à infância, que a mãe, levando o filho consigo por toda parte, encontra muito mais facilidade em o nutrir do que as fêmeas de muitos animais, as quais são forçadas a ir e vir sem cessar com muita fadiga, de um lado, para procurar o seu próprio alimento, e, do outro, para aleitar ou nutrir os filhos. É verdade que, se a mulher vem a morrer, a criança corre o risco de morrer com ela; mas, esse perigo é comum a cem outras espécies cujos filhos ainda estão longe de poderem procurar por si mesmos a própria nutrição. E, se a infância é mais longa entre nós, a vida também o é, de modo que tudo é mais ou menos igual nesse ponto(7), embora haja, sobre a duração da primeira idade e sobre o número dos filhos(8), outras regras que não fazem parte do meu tema. Entre os velhos, que se movimentam pouco e pouco transpiram, a necessidade de alimentos diminui com a faculdade de os prover; e, como sua a vida selvagem afaste deles a gota e o reumatismo, sendo a velhice de todos os males o que menos os socorros humanos podem atenuar, extinguem-se enfim, sem se perceber que cessam de existir, e quase sem que eles mesmos o percebam.

Em relação às moléstias, não repetirei as vãs e falsas declamações feitas contra a medicina pela maior parte das pessoas de saúde; perguntarei, porém, se há alguma observação sólida da qual se possa concluir que, nos países em que essa arte é mais descurada, a vida média do homem é mais curta do que naqueles em que é cultivada com mais cuidado. E como poderia ser assim, se os remédios que a medicina nos fornece são insuficientes para os males que temos? A extrema desigualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade de uns, o excesso de trabalho de outros, a facilidade de irritar e satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade, os alimentos muito requintados dos ricos, que os nutrem com sucos excitantes e os afligem com indigestões, a má nutrição dos pobres, que chega muitas vezes a faltar-lhes, obrigando-os a sobrecarregar avidamente o estômago quando podem, as vigílias, os excessos de toda espécie, os transportes imoderados de todas as paixões, as fadigas e o esgotamento de espírito, os pesares e as penas sem número que se experimentam em todos os estados e que perpetuamente arruinam as almas: eis os funestos fiadores de que a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que poderíamos evitá-los quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária, que nos foi prescrita pela natureza. Se esta nos destinou a ser sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contra a natureza, e que o homem que medita é um animal depravado. Quando se pensa na boa constituição dos selvagens, pelo menos dos que não perdemos com os nossos licores fortes; quando se sabe que quase não conhecem outras moléstias além dos ferimentos e da velhice, é-se obrigado a crer que facilmente se faria a história das moléstias humanas seguindo a história das sociedades civis. É essa, pelo menos, a opinião de Platão, que julga, por causa de certos remédios empregados por Podalirio e Macaão no cerco de Tróia, que diversas moléstias que esses remédios deviam excitar não eram então conhecidas entre os homens; e Celso lembra que a dieta, hoje tão necessária, só foi inventada por Hipócrates.

Com tão poucas fontes de males, o homem no estado de natureza não tem, pois, necessidade de remédios, e ainda menos de médicos; a espécie humana, a esse respeito, não está em piores condições do que todas as outras, e é fácil saber dos caçadores se nas suas caçadas encontram muitos animais enfermos. Encontram vários com feridas consideráveis muito bem cicatrizadas, com ossos e até membros quebrados que se regeneraram sem outro cirurgião a não ser o tempo, sem outro regime a não ser a vida de todos os dias, e que não se curaram com menor perfeição por não terem sido atormentados com incisões, envenenados com drogas, ou extenuados com jejuns. Enfim, por útil que possa ser entre nós a medicina bem administrada, é sempre certo que, se o selvagem doente, abandonado a si mesmo, nada tem que esperar senão da natureza, em compensação nada tem que temer senão de seu mal, o que muitas vezes torna a sua situação preferível à nossa.

Tenhamos, pois, cuidado em não confundir o homem selvagem com os homens que temos sob os olhos. A natureza trata todos os animais abandonados aos seus cuidados com uma predileção que parece mostrar quanto é ciosa desse direito. O cavalo, o gato, o touro, o próprio burro, têm, em geral, um talhe mais alto, todos uma constituição mais robusta, mais vigor, força e coragem nas florestas do que nas nossas casas: perdem a metade dessas vantagens ao se tornarem domésticos, e dir-se-ia que todos os nossos cuidados em tratar bem e nutrir esses animais só conseguem abastardá-los. O mesmo acontece com o homem: tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco, medroso, submisso; e sua maneira de viver mole e efeminada acaba de debilitar, ao mesmo tempo, a sua força e a sua coragem. Acrescentemos que, entre as condições selvagem e doméstica, a diferença de homem para homem deve ser maior ainda que de animal para animal: porque, tendo o animal e o homem sido tratados igualmente pela natureza, todas as comodidades que o homem se proporciona mais do que aos animais por ele amansados são outras tantas causas particulares que o fazem degenerar mais sensivelmente.

Assim, não constituem tão grande desgraça para esses primeiros homens, nem principalmente tão grande obstáculo à sua conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação de todas essas inutilidades que julgamos tão necessárias. Se não têm a pele cabeluda, disso não têm nenhuma necessidade nos países quentes; e sabem logo apropriar-se, nos países frios; das peles dos animais por eles subjugados: se têm somente dois pés para correr, possuem dois braços para prover à sua defesa e às suas necessidades. Seus filhos andam, talvez, tarde e com dificuldade, mas suas mães os conduzem com facilidade; vantagem que falta às outras espécies, nas quais a mãe, sendo perseguida, se vê constrangida a abandonar os filhos ou a regular seus passos pelos deles. Enfim, a menos que se suponham os concursos singulares e fortuitos de circunstâncias de que falarei em seguida, e que poderiam muito bem não ocorrer nunca, é claro, em todo estado de causa, que o primeiro que fez roupas ou uma habitação criou para si coisas desnecessárias, pois que passara sem isso até então, não se vendo a razão pela qual, já homem feito, não poderia suportar um gênero de vida que suportava desde a infância.

Só, ocioso, e sempre vizinho do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir, e ter o sono leve, como os animais, que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, durante todo o tempo que não pensam. Constituindo a própria conservação quase, o seu único cuidado, as suas faculdades mais exercitadas devem ser as que têm por objeto principal o ataque e a defesa, seja para subjugar a presa, seja para se preservarem de ser a de outro animal; ao contrário, os órgãos que não se aperfeiçoam senão pela moleza e a sensualidade devem ficar em um estado de grosseria que exclui em si toda espécie de delicadeza; e como os sentidos participam disso, terá o tato e o gosto extremamente rudes, a vista, o ouvido e o olfato mais sensíveis. Tal é o estado animal em geral, e é também, segundo as narrativas dos viajantes, o estado da maior parte dos povos selvagens. Assim, não é de admirar que os hotentotes do Cabo da Boa Esperança descubram a olho nu navios em alto mar de tão longe quanto os holandeses com binóculos; nem que os selvagens da América sintam os espanhóis na sua pista como o sentiriam os melhores cães; nem que todas essas nações bárbaras suportem facilmente a nudez, agucem seu gosto à força de pimenta e bebam licores europeus como água.

Até aqui, só considerei o homem físico; tratemos de o examinar agora pelo lado metafísico e moral.

Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala.

Todo animal tem idéias, pois tem sentidos; combina mesmo as idéias até certo ponto: e, sob esse aspecto, o homem só difere do animal do mais ao menos; alguns filósofos chegaram a avançar que há mais diferença entre um homem e outro do que entre um homem e um animal. Não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre. A natureza manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica.

Mas, quando as dificuldades que envolvem todas essas questões deixassem algum motivo de discutir sobre essa diferença do homem e do animal, há uma outra qualidade muito específica que os distingue, sobre a qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, a qual, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside, entre nós, tanto na espécie como no indivíduo, ao passo que um animal é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. Porque só o homem está sujeito a se tornar imbecil? Não será porque volta assim ao seu estado primitivo e, enquanto o animal, que nada adquiriu e nada tão pouco tem que perder, fica sempre com o seu instinto, ele, perdendo de novo, com a velhice ou outros acidentes, tudo o que a sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, torna a cair assim mais baixo do que a própria besta? Tristes de nós se fossemos forçados a convir que essa faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todas as desgraças do homem; que é ela que o tira à força de tempo dessa condição originária na qual ele passaria dias tranqüilos e inocentes: que é ela que, fazendo desabrochar com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, o torna, com o tempo, o tirano de si mesmo e da natureza(9). Seria horrível ser obrigado a louvar como um ser benfeitor aquele que primeiro sugeriu ao habitante das margens do Orenoco o uso dessas tábuas que ele adapta às fontes de seus filhos e que lhes asseguram pelo menos uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original.

O homem selvagem, entregue pela natureza exclusivamente ao seu instinto, ou antes, indenizado do que talvez lhe falte por faculdades capazes, primeiro, de o suprir, e, em seguida, de o elevar muito acima dela, começará, pois, pelas funções puramente animais(10). Perceber e sentir será seu primeiro estado, que lhe será comum com todos os animais; querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias lhe causem novos desenvolvimentos.

Mau grado o que dizem os moralistas, o entendimento humano deve muito às paixões, que, de comum acordo, também lhe devem muito: é pela sua atividade que a nossa razão se aperfeiçoa; só procuramos conhecer porque desejamos gozar; e não é possível conceber porque aquele que não tivesse desejos nem temores se desse ao trabalho de raciocinar. As paixões, por sua vez, se originam das nossas necessidades, e o seu progresso dos nossos conhecimentos; porque só podemos desejar ou temer coisas segundo as idéias que temos delas, ou pelo simples impulso da natureza; e o homem selvagem, privado de toda sorte de luzes, só experimenta as paixões dessa última espécie; seus desejos não passam pelas suas necessidades físicas(11); os únicos bens que conhece no universo são a sua nutrição, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome. Digo a dor, e não a morte; porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal.

Ser-me-ia fácil, se me fosse necessário, apoiar esse sentimento em fatos, e fazer ver que em todas as nações do mundo os progressos do espírito são precisamente proporcionais às necessidades que os povos receberam da natureza, ou às quais as circunstâncias os sujeitaram e, por conseguinte, às paixões que os obrigavam a prover às suas necessidades. Eu mostraria, no Egito, as artes nascendo e se estendendo com o desdobramento do Nilo; seguiria o seu progresso entre os gregos, onde as vimos germinar, crescer e se elevar até aos céus por entre as areias e os rochedos da Ática, sem poder criar raízes nas margens férteis do Eurotas; notaria que, em geral, os povos do Norte são mais industriosos que os do meio-dia; porque podem menos deixar de o ser; como se a natureza, assim, quisesse igualar as coisas dando aos espíritos a fertilidade que recusa à terra.

Mas, sem recorrer aos testemunhos incertos da história, quem não vê que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de cessar de o ser? Sua imaginação nada lhe pinta; seu coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente à mão, e ele está tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar adquirir maiores, que não pode ter nem previdência nem curiosidade. O espetáculo da natureza torna-se-lhe indiferente à força de se lhe tornar familiar: é sempre a mesma ordem, são sempre as mesmas revoluções; não tem o espírito de se admirar das maiores maravilhas; e não é nele que se deve procurar a filosofia de que o homem tem necessidade para saber observar, uma vez, o que viu todos os dias. Sua alma, que coisa alguma agita, entrega-se ao sentimento único de sua existência atual sem nenhuma idéia do futuro, por mais próximo que possa estar; e seus projetos, limitados como suas vistas, estendem-se apenas até ao fim do dia. Tal é, ainda hoje, o grau de previdência do caraiba: vende de manhã sua cama de algodão, e vem chorar, à noite, para comprá-la novamente, por não ter previsto que precisaria dela na noite próxima.

Quanto mais meditamos sobre esse assunto, tanto mais a distância das puras sensações aos mais simples conhecimentos aumenta aos nossos olhos; e é impossível conceber como um homem teria podido exclusivamente com suas forças, sem o socorro da comunicação e sem o aguilhão da necessidade, transpor tão grande intervalo. Quantos séculos, talvez, se escoaram antes que os homens chegassem a poder ver outro fogo além do fogo do céu! quantos e diferentes riscos não lhes foram precisos para aprender os usos mais comuns desse elemento! quantas vezes não o deixaram apagar antes de ter adquirido a arte de o reproduzir! e quantas vezes, talvez, cada um desses segredos não morreu com o seu descobridor! Que diremos da agricultura, arte que exige tanto trabalho e previdência, que se relaciona com tantas outras artes, que muito evidentemente só é praticável em uma sociedade pelo menos começada, e que não nos serve tanto para tirar da terra os alimentos que ela forneceria sem isso, como para forçá-la às preferências que são mais do nosso gosto? Mas, suponhamos que os homens se tivessem de tal modo multiplicado que as produções naturais não fossem suficientes para os nutrir, suposição que, digamo-lo de passagem, mostraria grande vantagem para a espécie humana nessa maneira de viver; suponhamos que, sem oficinas e sem forjas, os instrumentos de lavoura caíssem do céu nas mãos dos selvagens; que esses homens tivessem vencido o ódio mortal que têm todos eles por um trabalho contínuo; que tivessem aprendido a prever de tão longe as suas necessidades; que tivessem adivinhado como é preciso cultivar a terra, semear os grãos e plantar as árvores; que tivessem encontrado a arte de moer o trigo e de pôr a uva a fermentar; todas as coisas que foi preciso que os deuses lhes ensinassem, por não conceberem como as teriam aprendido por si mesmos: depois disso, qual seria o homem insensato que se atormentasse na cultura de um campo que seria despojado pelo primeiro que aparecesse, homem ou animal indiferentemente, ao qual essa colheita conviesse? e como poderá cada um resolver-se a passar a vida em um trabalho penoso cujo prêmio está tanto mais seguro de não obter quanto mais lhe fosse este necessário? Em uma palavra como poderá essa situação levar os homens a cultivar a terra enquanto não for partilhada entre eles, isto é, enquanto o estado de natureza não for aniquilado?

Quando quiséssemos supor um homem selvagem tão hábil na arte de pensar quanto no-lo fazem os nossos filósofos; quando fizéssemos dele, a seu exemplo, também um filósofo, descobrindo sozinho as mais sublimes verdades, deduzindo de raciocínios muito abstratos máximas de justiça e de razão tiradas do amor da ordem em geral, ou da vontade conhecida do seu Criador; em uma palavra, quando supuséssemos no seu espírito tanta inteligência e luzes quanto ele deve ter e de fato nele achamos de pesado e de estúpido, que utilidade tiraria a espécie de toda essa metafísica, que não poderia se comunicar e que pereceria com o indivíduo que a tivesse inventado? que progresso poderia fazer o gênero humano esparso nas florestas, entre os animais? e até que ponto poderiam aperfeiçoar-se e esclarecer-se mutuamente homens que, não tendo domicílio fixo, nem nenhuma necessidade um do outro, se encontrariam, talvez, apenas duas vezes na vida, sem se conhecerem e sem se falarem?

Que se pense de quantas idéias somos devedores ao uso da palavra; quanto a gramática exerce e facilita as operações do espírito; e que se pense nas penas inconcebíveis e no tempo infinito que teve de custar a primeira invenção das línguas; que se juntem essas reflexões às precedentes, e então se julgará quantos milhares de séculos foram precisos para desenvolver sucessivamente no espírito humano as operações de que é capaz.

Que me seja permitido considerar, por um instante, os embaraços da origem das línguas. Poderia contentar-me em citar ou repetir aqui as pesquisas que o sr. abade de Condillac fez sobre essa matéria, as quais confirmam plenamente o meu sentimento e talvez me tenham dado a respeito a primeira idéia. Mas, a maneira pela qual esse filósofo resolve as dificuldades que cria para si mesmo sobre a origem dos sinais instituídos, mostrando que supôs o que proponho, a saber, uma espécie de sociedade já estabelecida entre os inventores da linguagem, creio, voltando às suas reflexões, dever acrescentar as minhas, para expor as mesmas dificuldades no dia que convier ao meu tema. A primeira que se apresenta é imaginar como puderam tornar-se necessárias; porque, não tendo os homens nenhuma correspondência entre si, nem nenhuma necessidade de a ter, não se concebe nem a necessidade dessa invenção, nem a sua possibilidade, se não fosse indispensável. Direi bem, como muitos outros, que as línguas nasceram da convivência doméstica dos pais, das mães e dos filhos; mas, além disso não resolver as objeções, seria cometer o erro dos que, raciocinando sobre o estado de natureza, para aí transportam as idéias tomadas na sociedade, vêem sempre a família reunida em uma mesma habitação e as seus membros guardando entre si uma união tão íntima e tão permanente como entre nós, onde tantos interesses comuns os reúnem; ao passo que, nesse estado primitivo, não tendo casas, nem cabanas, nem propriedades de nenhuma espécie, cada qual se alojava ao acaso e muitas vezes por uma só noite; os machos e as fêmeas se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e o desejo, sem que a palavra fosse intérprete muito necessário das coisas que se deviam dizer: e se abandonavam com a mesma facilidade(12). A mãe aleitava primeiro os filhos por sua própria necessidade; depois, tendo o hábito os tornado caros, nutria-os pela necessidade deles; logo que tiveram força para procurar o próprio alimento, eles não tardaram em deixar a própria mãe; e, como não houvesse quase outro meio de se encontrarem senão o de não se perderem de vista, logo chegaram ao ponto de não se reconhecerem uns aos outros. Notai ainda que, tendo o filho todas as suas necessidades que explicar, e por conseguinte mais coisas que dizer à mãe do que a mãe ao filho, é ele que deve ter feito os maiores esforços de invenção, devendo a língua que emprega ser em grande parte sua própria obra; isso multiplica tanto as línguas quantos indivíduos há para as falar; para isso contribui ainda a vida errante e vagabunda, que não deixa a nenhum idioma o tempo de tomar consistência; porque dizer que a mãe dita ao filho as palavras das quais deverá servir-se para lhe pedir tal ou tal coisa, é o que mostra bem como se ensinam as línguas já formadas, mas não explica como se formam.

Suponhamos vencida essa primeira dificuldade; transponhamos, por um momento, o espaço imenso que deve encontrar-se entre o puro estado de natureza e a necessidade das línguas; e procuremos, supondo-as necessárias(13), como puderam começar a se estabelecer. Nova dificuldade ainda pior do que a precedente: porque, se os homens tiveram necessidade da palavra para aprender a pensar, tiveram muito mais necessidade ainda de saber pensar para encontrar a arte da palavra; e, quando se compreendesse como os sons da voz foram tomados por intérpretes convencionais de nossas idéias, restaria sempre saber quais puderam ser os intérpretes mesmos dessa convenção para as idéias que, não tendo um objeto sensível, não podiam indicar-se nem pelo gesto nem pela voz; de sorte que mal podemos formar conjecturas suportáveis sobre o nascimento dessa arte de comunicar os pensamentos e estabelecer um comércio entre os espíritos; arte sublime, que já está tão longe de sua origem, mas que o filósofo vê ainda a tão prodigiosa distância de sua perfeição, que não há homem bastante ousado para assegurar que ai chegaria, quando as revoluções, que o tempo necessariamente conduz fossem suspensas em seu favor, os preconceitos saíssem das academias ou se calassem diante delas, e elas pudessem ocupar-se desse objeto espinhoso durante séculos inteiros sem interrupção.

A primeira linguagem do homem, a linguagem mais universal, mais enérgica e a única de que teve necessidade antes que fosse preciso persuadir homens reunidos, foi o grito da natureza. Como esse grito não tivesse sido arrancado senão por uma espécie de instinto nas ocasiões prementes, para implorar socorro nos grandes perigos ou alívio nos males violentos, não era de grande uso no curso ordinário da vida, em que reinam sentimentos mais moderados. Quando as idéias dos homens começaram a se estender e a se multiplicar, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais estreita, procuraram sinais mais numerosos e uma linguagem mais extensa; multiplicaram as inflexões da voz e lhe juntaram os gestos, que, por natureza, são mais expressivos, dependendo menos o seu sentido de uma determinação interior. Assim, exprimiam os objetos visíveis e móveis por meio de gestos, e os que impressionam o ouvido por meio de sons imitativos: mas, como o gesto só indica os objetos presentes ou fáceis de descrever e as ações visíveis, não sendo de uso universal, de vez que a obscuridade ou a interposição de um corpo o torna inútil, e exigindo a atenção mais do que a excita, foi ele substituído pelas articulações da voz, que, sem terem a mesma relação com certas idéias, são mais próprias para representá-las todas como sinais instituídos. Essa substituição só ponde ser feita por um consenso geral e de maneira bem difícil de praticar por homens cujos órgãos grosseiros não tinham ainda nenhum exercício, e mais difícil ainda de conceber em si mesma, pois que esse acordo unânime teve de ser motivado, parecendo a palavra ter sido muito necessária para estabelecer o uso da palavra.

Deve julgar-se que os primeiros vocábulos de que os homens fizeram uso tiveram no seu espírito uma significação muito mais extensa do que as que se empregam nas línguas já formadas, e que, ignorando a divisão do discurso em suas partes constitutivas, deram eles primeiro a cada palavra o sentido de uma proposição inteira. Quando começaram a distinguir o sujeito do atributo e o verbo do nome, o que não foi um medíocre esforço de gênio, os substantivos não passavam, a princípio, de outros tantos nomes próprios, sendo o presente do infinitivo o único tempo dos verbos; e, em relação aos adjetivos, a noção não devia ter sido desenvolvida senão muito dificilmente, porque todo adjetivo é uma palavra abstrata, e as abstrações são operações penosas e pouco naturais. Cada objeto recebeu primeiro um nome particular, sem relação com os gêneros e as espécies, que esses primeiros professores não estavam em condições de distinguir; e todos os indivíduos se apresentaram isoladamente ao seu espírito como no quadro da natureza. Se um carvalho se chamava A, outro carvalho se chamava B; porque a primeira idéia que se deduz de duas coisas é que não são a mesma; e, em geral, é preciso muito tempo para observar o que têm de comum; de sorte que, quanto mais limitados eram os conhecimentos, tanto mais extenso se tornava o dicionário. O embaraço de toda essa nomenclatura não pode ser suprimido facilmente: porque, para colocar em ordem os seres sob denominações genéricas e comuns, era preciso conhecer-lhes as propriedades e as diferenças; eram necessárias observações e definições, isto é, história natural e metafísica, muito mais do que os homens daquele tempo podiam ter.

Aliás, as idéias gerais só podem introduzir-se na espécie com o auxílio das palavras, e o entendimento não as apreende senão por meio das proposições. É uma das razões por que os animais não poderiam formar tais idéias, nem jamais adquirir a perfectibilidade que delas depende. Quando um macaco vai, sem hesitar, de uma noz a outra, julga-se que tenha a idéia geral dessa espécie de fruta e que compare o seu arquétipo a esses dois indivíduos? Não, sem dúvida; mas, a vista de uma dessas nozes lembra à sua memória as sensações que recebeu da outra, e seus olhos, modificados de certa maneira, anunciam ao seu gosto a modificação que vai receber. Toda idéia geral é puramente intelectual; por pouco que a imaginação tome parte nela, a idéia se torna, logo particular. Procurai traçar a imagem de uma árvore em geral, e jamais o conseguireis; contra a vossa vontade, é preciso vê-la grande ou pequena, desgalhada ou copada, clara ou escura; e, se dependesse de vós não ver senão o que se acha em toda árvore, essa imagem não se pareceria mais com uma árvore. Os seres puramente abstratos se vêem do mesmo modo, ou não se concebem senão por meio do discurso. Só a definição do triângulo vos dá a verdadeira idéia: logo que o figurais em vosso espírito, é um certo triângulo e não outro, e não podeis deixar de tornar as suas linhas sensíveis ou o plano colorido. É preciso, pois, enunciar proposições, é preciso falar para ter idéias gerais: porque, logo que a imaginação para, o espírito só marcha com o auxílio do discurso. Se, pois, os primeiros inventores só puderam dar nomes às idéias que já tinham, resulta que os primeiros substantivos só poderiam ter sido nomes próprios.

Mas quando, não posso conceber por que meios, os nossos novos gramáticos começaram a estender suas idéias e a generalizar suas palavras, a ignorância dos inventores teve de sujeitar esse método a limites muito estreitos; e como, primeiro, tinham multiplicado muito os nomes dos indivíduos, por não conhecerem os gêneros e as espécies, em seguida fizeram muito poucas espécies e gêneros, por não terem considerado os seres em todas as suas diferenças. Para levar as divisões bastante longe, eram necessárias mais experiência e luzes do que podiam ter, e mais pesquisas e trabalho do que queriam empregar. Ora, se, ainda hoje, se descobrem cada dia novas espécies que até aqui tinham escapado a todas as nossas observações, que se imagine quantas escapariam a homens que julgavam as coisas pelo primeiro aspecto. Quanto às classes primitivas e às noções mais gerais, é supérfluo acrescentar que deviam escapar-lhes também. Como, por exemplo, teriam eles imaginado ou entendido as palavras matéria, espírito, substância, modo, figura, movimento, quando até os nossos filósofos, que delas se servem há tanto tempo, custam tanto a entendê-las, e quando as idéias ligadas a essas palavras, sendo puramente metafísicas, não encontravam para elas nenhum modelo na natureza?

Paro nesses primeiros passos e suplico aos meus juizes que suspendam aqui a leitura para considerar, sobre a invenção dos únicos substantivos físicos, isto é, sobre a parte da língua mais fácil de ser encontrada, o caminho que lhe resta percorrer para exprimir todos os pensamentos dos homens, para tomar uma forma constante, para poder ser falada em público, e influir sobre a sociedade: suplico-lhes que reflitam sobre quanto tempo e quantos conhecimentos foram necessários para encontrar os números(14), as palavras abstratas, os aoristos, e todos os tempos dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as proposições, os raciocínios, e formar toda a lógica do discurso. Quanto a mim, horrorizado com as dificuldades que se multiplicam, e convencido da impossibilidade quase demonstrada de que as línguas tenham podido nascer e se estabelecer por meios puramente humanos, deixo a quem quiser empreendê-la a discussão deste difícil problema: o que foi mais necessário, a sociedade já ligada à instituição das línguas, ou as línguas já inventadas para o estabelecimento da sociedade.

Quaisquer que sejam essas origens, vê-se, pelo menos, no pouco de cuidado que tomou a natureza de aproximar os homens por necessidades mútuas e de lhes facilitar o uso da palavra, como preparou pouco a sua sociabilidade, e como pôs pouco de seu em tudo que eles fizeram para estabelecer esses limites. Efetivamente, é impossível imaginar porque, nesse estado primitivo um homem teria mais necessidade de outro homem do que um macaco ou um lobo do seu semelhante; e, supondo essa necessidade, que motivo poderia levar o outro a provê-la; ou, nesse último caso, de que modo poderiam convir entre eles as condições. Sei que nos repetem sem cessar que nada foi tão miserável como o homem nesse estado; e, se é verdade, como creio haver provado, que só depois de muitos séculos pode ele ter o desejo e a ocasião de sair dele, isso seria um processo que fazer à natureza e não àquele que ela assim tivesse constituído. Mas, se entendo bem o termo miserável, trata-se de uma palavra que não tem nenhum sentido, ou que significa apenas uma provação dolorosa, o sofrimento do corpo ou da alma: ora, eu só desejaria que me explicassem qual pode ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde. Pergunto qual, a vida civil ou a natural, está mais sujeita a se tornar insuportável para os que a gozam. Em torno de nós, quase que só vemos pessoas que se lastimam de sua existência, e muitas mesmo que se privam dela tanto quanto o podem; e a reunião das leis divina e humana mal basta para deter essa desordem. Pergunto se jamais se ouviu dizer que um selvagem em liberdade tenha somente pensado em se lastimar da vida e em se suicidar. Que se julgue, pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira miséria. Ninguém, ao contrário, foi mais miserável do que o homem selvagem deslumbrado pelas luzes, atormentado pelas paixões, e raciocinando sobre um estado diferente do seu. Foi por uma providência muito sábia que as faculdades que ele tinha em potência só deviam desenvolver-se com as ocasiões de as exercer, a fim de que não lhe fossem nem supérfluas e cometidas antes do tempo, nem tardias e inúteis às suas necessidades. Só no instinto, tinha ele tudo o de que necessitava para viver em estado de natureza; numa razão cultivada, tem apenas o que lhe é preciso para viver em sociedade.

Parece, à primeira vista, que os homens nesse estado, não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes, a menos que, tomando essas palavras em um sentido físico, se chamem vícios, no indivíduo, as qualidades que podem prejudicar a sua própria conservação, e virtudes as que podem contribuir para essa conservação. Nesse caso, seria preciso chamar de mais virtuoso aquele que menos resistisse aos simples impulsos da natureza. Mas, sem nos desviarmos do sentido comum, vem a propósito suspender o juízo que poderíamos fazer de tal situação e desconfiar dos nossos preconceitos até que, balança na mão, se tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados ou se suas virtudes são mais vantajosas do que os seus vícios funestos, ou se o progresso dos seus conhecimentos é uma compensação suficiente dos males que se fazem mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que se deveriam fazer ou se não estariam, afinal de contas, em uma situação mais feliz não tendo nem mal que temer nem bem que esperar de ninguém do que estando submetidos a uma dependência universal e obrigados a tudo receber daqueles que não se obrigam a lhes dar coisa alguma.

Não vamos, principalmente concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma idéia de bondade, o homem seja naturalmente mau; que seja vicioso, porque não conhece a virtude; que recuse sempre aos seus semelhantes serviços que não acredita serem do seu dever; ou que, em virtude do direito que se atribui com razão às coisas de que tem necessidade, imagine loucamente ser o único proprietário de todo o universo. Hobbes viu muito bem o defeito de todas as definições modernas do direito natural: mas, as conseqüências que tira da sua mostram que a toma em um sentido que não é menos falso. Raciocinando sobre os princípios que estabelece, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado de nossa conservação é menos prejudicial à dos outros, esse estado era, por conseguinte, o mais próprio à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Diz precisamente o contrário, por ter feito entrar, fora de propósito, no cuidado da conservação do homem selvagem, a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram necessárias as lei. O mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta saber se o selvagem é uma criança robusta. Quando se concordasse com ele, que se concluiria? Que, se esse homem, sendo robusto, era tão dependente dos outros como quando fraco, não há excessos aos quais não se entregasse: batendo na própria mãe quando ela demorasse muito a lhe dar de mamar; estrangulando um irmão menor quando por ele incomodado; mordendo a perna de outro quando nele esbarrasse ou fosse por ele importunado. Mas, são duas suposições contraditórias no estado de natureza: ser robusto e dependente. O homem é fraco quando dependente, e emancipado antes de ser robusto. Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem os nossos jurisconsultos, impede-os também de abusar das suas faculdades, como ele próprio o pretende; de sorte que se poderia dizer que os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bom. Com efeito, não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das paixões e a ignorância do vício que os impedem de fazer mal: Tanto plus in illis proficit vitiorum ignoratio, quam in his cognitio virtutis. Aliás, há outro princípio que Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade de seu amor próprio ou o desejo de se conservar antes do nascimento desse amor(15), tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante. Não creio ter contradição alguma que temer concedendo ao homem a única virtude natural que o detrator mais extremado das virtudes humanas é forçado a reconhecer. Refiro-me à piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como nós; virtude tanto mais universal quanto mais útil ao homem que precede nele ao uso de toda reflexão, e tão natural que os próprios animais dão, às vezes, sinais sensíveis dela; sem falar da ternura das mães pelos filhos e dos perigos que afrontam para defendê-los, observamos todos os dias a repugnância que têm os cavalos em pisar um corpo vivo. Um animal não passa sem inquietação perto de um animal morto de sua espécie: alguns lhes dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no matadouro, anunciam a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o comove. Vê-se, com prazer, o autor da Fábulas das Abelhas, forçado a reconhecer o homem como um ser compassivo e sensível, sair, no exemplo que dá do seu estilo frio e sutil, para nos oferecer a patética imagem de um homem fechado que percebe, fora, uma besta feroz arrebatando uma criança do seio da mãe, quebrando com os dentes assassinos os seus frágeis membros e despedaçando com as unhas as entranhas palpitantes dessa criança. Que horrível agitação experimenta a testemunha de um acontecimento no qual não tem nenhum interesse pessoal! que angústia não sofre ao ver tal coisa, sem poder socorrer a mãe desfalecida ou a criança em agonia!

Tal é o puro movimento da natureza, anterior a toda reflexão; tal é a força da piedade natural, que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, pois vemos todos os dias, nos nossos espetáculos, toda a gente se enternecer e chorar pelas desgraças de um infeliz, como se estivesse cada qual no lugar do tirano e agravasse ainda mais os tormentos do seu inimigo: como o sanguinário Sila, tão sensível aos males que não causara, ou Alexandre de Feras, que não ousava assistir à representação de nenhuma tragédia, com medo de que o vissem gemer com Andrômaca e Priamo, enquanto escutava sem emoção os gritos de tantos cidadãos que se degolavam todos os dias por sua ordem.

Mollissima corda

Humano generi dare se natura fatetur,

Quoe lacrymas dedit.

Tradução (aproximada) do Latim: Esta tradução não está no E-book

Corações macios

O ser humano admitiu dar a si mesmo o estado de natureza.

O que não resultou em lágrimas.

Mandeville sentiu bem que, com toda a sua moral, os homens nunca teriam passado de monstros, se a natureza não lhes desse a piedade em apoio da razão: mas não viu que dessa única qualidade decorrem todas as virtudes sociais que quer disputar aos homens. Efetivamente, que é a generosidade, a demência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados, ou à espécie humana em geral? Mesmo a amizade e a benevolência são, afinal de contas, produções de uma piedade constante, fixada sobre um objeto particular: com efeito, desejar que alguém não sofra, que outra coisa é senão desejar que seja feliz? Mesmo que fosse verdade que a comiseração não passa de um sentimento que nos põe no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civilizado, que importaria essa idéia à verdade do que digo, a não ser para lhe dar mais força? Efetivamente, a comiseração será tanto mais enérgica quanto o animal espectador se identificar mais intimamente com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação teve de ser infinitamente mais estreita no estado de natureza que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor próprio, e é a reflexão que o fortifica; é ela que faz o homem cair em si; é ela que o separa de tudo que o incomoda e o aflige. É a filosofia que o isola; é por ela que ele diz em segredo, ao ver um homem que sofre: “Morre, se queres; estou em segurança”. Só os perigos da sociedade inteira perturbam o sono tranqüilo do filósofo e o fazem levantar-se do leito. Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas brigas de rua, a populaça se aglomera, e o homem prudente se afasta; é a canalha, são as mulheres dos mercados que separam os combatentes e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente.

É, pois, bem certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, Faze a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: Faze o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o gênero humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem.

Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os homens, mais ferozes do que maus, e mais atentos em se preservar do mal que podiam receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam sujeitos a contendas muito perigosas: como não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, e não conheciam, por conseguinte, nem a vaidade nem a consideração, nem a estima, nem o desprezo; como não tinham a menor noção do teu e do meu, nem nenhuma verdadeira idéia da justiça; como encaravam as violências que podiam sofrer como um mal fácil de reparar, e não como injúria que é preciso punir, e não pensavam mesmo em vingança, senão talvez maquinal e imediatamente, como o cão que morde a pedra que lhe atiram, suas disputas raramente teriam tido conseqüências sangrentas, se não tivessem tido motivo mais sensível do que o alimento. Mas, vejo uma coisa mais perigosa de que me resta falar.

Entre as paixões que agitam o coração do homem, há uma ardente, impetuosa, que torna um sexo necessário ao outro; paixão terrível que arrosta todos os perigos, derruba todos os obstáculos e, em seus furores, parece própria para destruir o gênero humano, que ela é destinada a conservar. Em que se transformarão os homens, presas desse furor desesperado e brutal, sem pudor, sem moderação, e se disputando todos os dias o amor à custa de sangue?

É preciso convir, primeiro, que, quanto mais violentas as paixões, mais necessárias são as leis para contê-las: mas, além das desordens e dos crimes que as paixões causam todos os dias entre nós, mostrarem toda a insuficiência das leis a esse respeito, seria bom examinar ainda se essas desordens não nasceram com as próprias leis; porque, então, quando estas fossem capazes de as reprimir, o menos que se deveria exigir delas seria fazer cessar um mal que não existiria sem elas.

Comecemos por distinguir o moral do físico no sentimento do amor. O físico é esse desejo geral que leva um sexo a se unir ao outro. O moral é o que determina esse desejo e o fixa sobre um único objeto exclusivamente, ou que pelo menos lhe dá, em relação a esse objeto preferido, um maior grau de energia. Ora, é fácil ver que o moral do amor é um sentimento factício nascido dos costumes da sociedade e celebrado pelas mulheres com muita habilidade e cuidado para estabelecerem o seu império e tornar dominante o sexo que deveria obedecer. Fundado sobre certas noções do mérito ou da beleza, que um selvagem não está em condições de ter, e sobre comparações, que não está em estado de fazer, deve esse sentimento ser quase nulo para ele: porque, como seu espírito não pode formar idéias de regularidade e proporção, o coração também não é suscetível dos sentimentos de admiração e de amor, os quais, mesmo que não se perceba, nascem da aplicação dessas idéias: ele escuta unicamente o temperamento que recebeu da natureza, e não o gosto que não pode adquirir, sendo toda mulher boa para ele.

Limitados somente à parte física do amor, e bastante felizes para ignorar essas preferências que lhe irritam o sentimento e aumentam as dificuldades, os homens devem sentir menos freqüente e menos vivamente os ardores do temperamento, e, por conseguinte, ter entre si disputas mais raras e menos cruéis. A imaginação, que faz tantos estragos entre nós, não fala a corações selvagens; cada um espera pacificamente o impulso da natureza, a ele se entregando sem escolha, com mais prazer do que furor; e, satisfeita a necessidade, todo o desejo se extingue.

É, pois, coisa incontestável que o próprio amor, como todas as outras paixões, só na sociedade adquiriu esse ardor impetuoso que tantas vezes o torna funesto aos homens; e é tanto mais ridículo imaginar os selvagens como se estrangulando sem cessar para saciar a sua brutalidade, quanto essa opinião é diretamente contrária à experiência, e os caraibas, de todos os povos existentes o que, até aqui, menos se afastou do estado de natureza, são precisamente os mais pacíficos nos seus amores e os menos sujeitos ao ciúme, embora vivendo num clima escaldante, que parece dar a essas paixões uma atividade cada vez maior.

Relativamente às induções que se poderiam tirar, em várias espécies de animais, dos combates dos machos que ensangüentam constantemente os nossos terreiros, ou que, disputando a fêmea na primavera, fazem retumbar as florestas com seus gritos, é preciso começar por excluir todas as espécies em que a natureza estabeleceu manifestamente, na potência relativa dos sexos, relações que não há entre nós: assim, as brigas dos galos não formam uma indução para a espécie humana. Nas espécies em que a proporção é mais bem observada, esses combates só podem ter como causa a raridade das fêmeas em relação ao número de machos, ou os intervalos exclusivos durante os quais a fêmea recusa constantemente a aproximação do macho, o que eqüivale à primeira causa; porque, se cada fêmea só suporta o macho durante dois meses do ano, a esse respeito é como se o número das fêmeas estivesse abaixo de cinco sextos. Ora, nenhum desses dois casos é aplicável à espécie humana, em que o número de fêmeas ultrapassa, em geral, o dos machos, em que nunca se observou, mesmo entre os selvagens, que as fêmeas tenham, como as das outras espécies, épocas de calor e de exclusão. De resto, entre muitos desses animais, toda a espécie entrando ao mesmo tempo em efervescência, vem um momento terrível de ardor comum, de tumulto, de desordem e de combate: momento que não existe para a espécie humana, na qual o amor nunca é periódico. Não se pode concluir, pois, dos combates de certos animais pela posse das fêmeas, que a mesma coisa acontecesse ao homem no estado de natureza; e, ainda mesmo que se pudesse tirar essa conclusão, como essas dissenções não destroem as outras espécies, deve-se pensar ao menos que não seriam mais funestas à nossa espécie; e é muito aparente que elas causassem ainda menos devastação do que na sociedade, principalmente nos países em que, sendo os costumes ainda contados para alguma coisa, o ciúme dos amantes e a vingança dos esposos causam todos os dias duelos, assassínios e coisas piores ainda; em que o dever de uma eterna fidelidade só serve para provocar adultérios, e em que as próprias leis da continência e da honra estendem necessariamente o deboche e multiplicam os abortos.

Concluamos que, errando nas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade dos seus semelhantes, assim como sem nenhum desejo de os prejudicar, talvez mesmo sem jamais se reconhecerem individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, tinha somente os sentimentos e as luzes próprias desse estado; que não sentia senão as suas verdadeiras necessidades, não olhava senão o que acreditava ter interesse de ver; e que sua inteligência não fazia mais progressos do que a sua vaidade. Se, por acaso, fazia alguma descoberta, podia tanto menos comunicá-la do que nem mesmo reconhecia seus filhos. A arte perecia com o inventor. Não havia educação nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente; e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, os séculos se escoavam em toda a grosseria das primeiras idades; a espécie já estava velha, e o homem conservava-se sempre criança.

Se me estendi tanto sobre a suposição dessa condição primitiva, é que, havendo antigos erros e preconceitos inveterados que destruir, julguei dever cavar até à raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta realidade e influência como pretendem os nossos escritores.

Efetivamente, é fácil ver que, entre as diferenças que distinguem os homens, muitas passam por naturais, quando são unicamente a obra do hábito e dos diversos gêneros de vida adotados pelos homens na sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza que disso dependem, vêm muitas vezes mais da maneira dura ou efeminada pela qual foi educado do que da constituição primitiva dos corpos. Acontece o mesmo com as forças do espírito, e a educação não só estabelece diferença entre os espíritos cultivados e os que não o são, como aumenta a que se acha entre os primeiros à proporção da cultura; com efeito, quando um gigante e um anão marcham na mesma estrada, cada passo representa nova vantagem para o gigante. Ora, se se comparar a diversidade prodigiosa do estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas, compreender-se-á quanto a diferença de homem para homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade; e quanto a desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição.

Mas, quando a natureza afetasse, na distribuição dos seus dons, tantas preferências como se pretende, que vantagem os mais favorecidos tirariam disso, com prejuízo dos outros, em um estado de coisas que não admitiria quase nenhuma espécie de relações entre eles? Onde não há amor, de que servirá a beleza? De que serve o espírito a pessoas que não falam, e a astúcia às que não têm negócios? Ouço sempre repetir que os mais fortes oprimirão os fracos. Mas, que me expliquem o que querem dizer com a palavra opressão. Uns dominarão com violência, outros gemerão sujeitos a todos os seus caprichos. Eis, precisamente, o que se observa entre nós; mas, não vejo como se poderia dizer o mesmo dos selvagens, a quem seria dificílimo fazer perceber o que é servidão e dominação. Um homem poderá se apoderar dos frutos colhidos por outro, da caça que o outro matou, do antro que lhe servia de asilo; mas, como poderá conseguir fazer-se obedecer? e quais poderiam ser as cadeias da dependência entre homens que não possuíam nada? Se me expulsam de uma árvore, estou livre para ir para outra; se me atormentam em um lugar, quem me impedirá de passar para outro? Se encontro um homem de força muito superior à minha, e, além disso, muito depravado, muito preguiçoso e muito feroz, para me constranger a prover à sua subsistência enquanto ele permanece ocioso, é preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só instante, que me deixe amarrado com grande cuidado enquanto dorme, de medo que eu escape ou que o mate; isto é, fica obrigado a se expor voluntariamente a um trabalho muito maior do que o que quer evitar, e do que o que me dá a mim mesmo. Depois de tudo isso, sua vigilância se relaxa por um momento, um barulho imprevisto fá-lo voltar a cabeça: dou vinte passos na floresta, meus ferros se quebram, e nunca mais me tornará a ver.

Sem prolongar inutilmente esses detalhes, cada qual deve ver que, sendo os laços da servidão formados exclusivamente da dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os unem, é impossível sujeitar um homem sem o pôr antes na situação de não poder passar sem outro homem; situação que, não existindo no estado de natureza, deixa cada um livre do jugo e torna vã a lei do mais forte.

Depois de haver provado que a desigualdade é apenas sensível no estado de natureza, sendo a sua influência quase nula, resta-me mostrar sua origem e seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos do espírito humano. Depois de haver mostrado que a perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera em potencial, jamais podiam desenvolver-se por si mesmas, que para isso tinham necessidade do concurso fortuito de muitas causas estranhas, que poderiam não nascer nunca, e sem as quais é preciso ficar eternamente na sua condição primitiva, resta-me considerar e aproximar os diversos acasos que puderam aperfeiçoar a razão humana deteriorando a espécie, tornar um ser mau fazendo-o social e, de um termo tão distante, conduzir enfim o homem e o mundo ao ponto em que os vemos.

Confesso que os acontecimentos que tenho que descrever, tendo podido manifestar-se de diversas maneiras, não me posso determinar sobre a escolha senão por conjecturas, mas, além de que essas conjecturas se tornam razões quando são as mais prováveis que se podem tirar da natureza das coisas e os únicos meios que se podem ter para descobrir a verdade, as conseqüências que quero deduzir das minhas não serão por isso conjecturais, pois, que, sobre os princípios que acabo de estabelecer, não se poderia formar nenhum outro sistema que me não forneça os mesmos resultados e do qual eu não possa tirar as mesmas conclusões.

Isso me dispensará de estender minhas reflexões sobre a maneira pela qual o lapso de tempo compensa o pouco de verosimilhança dos acontecimentos; sobre o poder surpreendente das causas muito leves, quando agem sem interrupção; sobre a impossibilidade em que estamos de destruir, de um lado, certas hipóteses, quando do outro, nos achamos incapazes de lhes dar o grau de certeza dos fatos; sobre o que, dados dois fatos como reais que ligar por uma série de fatos intermediários, desconhecidos, ou observados como tais, cabe à história, quando a temos, dar os fatos que os liguem; cabe à filosofia, na sua falta, determinar os fatos semelhantes que os podem ligar; enfim, sobre o que, em matéria de acontecimentos, a similitude reduz os fatos a um número muito menor de classes diferentes do que se imagina. É-me suficiente oferecer esses objetos à consideração dos meus juizes; é-me suficiente ter agido de maneira que os leitores vulgares não tivessem necessidade de os considerar.

SEGUNDA PARTE

<< Voltar Avançar para SEGUNDA PARTE >>

©2001 — Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook

eBooksBrasil.org

__________________

Julho 2001

Proibido todo e qualquer uso comercial.

Se você pagou por esse livro

VOCÊ FOI ROUBADO!

Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS

direto na fonte:

www.eBooksBrasil.org