LDB - Notas 53

NOTAS 53

LEI DE DIRETRIZES E BASES

Há um consenso em todo o mundo quanto à importância da educação no desenvolvimento do homem. Há ainda uma percepção clara de que a liberdade é um ingrediente indispensável a qualquer processo educacional. Entretanto, em todo o mundo sistemas educacionais estão sujeitos a normas e regulamentos impostos pelos governos. Em alguns países tais normas tolhem tanto a liberdade do sistema educacional que o transformam num sistema burocrático, retirando-lhe qualquer possibilidade de cumprir sua função na sociedade moderna.

A atual legislação que regula a educação no Brasil origina-se da Lei nº 4.024, de 1961, que permaneceu 16 longos anos no Congresso sofrendo constantes modificações até sua promulgação. O furor regulador não cessa com a promulgação dessa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Assim, em 1968, através da Lei nº 5.540, as normas referentes ao ensino superior foram substancialmente modificadas. Uma vez mais, em 1971, pela Lei nº 5.692, os aspectos do sistema educacional brasileiro referentes ao primeiro e ao segundo graus sofreram modificações.

Com a promulgação da Nova Constituição, em 1988, se fazia necessária uma reforma de modo a compatibilizar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional com a nova ordem constitucional estabelecida. Foi exatamente em 1988, através do Projeto de Lei nº 1.258, que o Congresso Nacional iniciou o tal processo de reforma. A esse projeto de lei foi adicionado um sem-número de emendas, o que levou o relator da época a propor um substitutivo composto de 172 artigos. Com a nova legislatura em 1990 e a não-reeleição do relator, o Projeto de Lei nº 1.258 passa a ter novo relator, além de estar sujeito a cerca de 1.300 novas emendas. Por isso mesmo o novo relator elaborou um novo substitutivo com 152 artigos. Esse novo substitutivo foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1993 e encaminhado ao Senado, onde recebeu cerca de 250 propostas de alteração. O elevado número de propostas de alteração induziu o relator do Senado a propor novo substitutivo com 131 artigos, que toma o número PLC 101, de 1993. O projeto foi aprovado pela Comissão de Educação do Senado e encaminhado ao Plenário para votação, o que, entretanto, não ocorreu antes da eleição da nova legislatura em 1994.

Uma vez mais, o relator do PLC101 não foi reeleito. O projeto voltou à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, onde foi indicado como relator o Senador Darcy Ribeiro, que elabora novo substitutivo. O projeto do Senador Darcy Ribeiro foi amplamente divulgado pela imprensa, realizaram-se audiências públicas e, finalmente, em maio de 1995 a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado o aprovou por maioria. Ao ser encaminhado ao Plenário do Senado sofreu 57 emendas, voltando à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania para daí ser encaminhado à Comissão de Educação, tendo sido mantido o Senador Darcy Ribeiro como relator. Uma vez aprovado pelo Senado esse projeto deverá voltar à Câmara dos Deputados, que tem a opção de aprová-lo ou rejeitá-lo.

Neste número de Notas analisa-se o substitutivo do relator do PLC101/93, que contém 85 artigos distribuídos em 10 títulos.

TÍTULO I: DA EDUCAÇÃO

Compreende apenas um artigo, que define educação no seu sentido mais amplo e, no seu § único, limita o escopo dessa Lei à educação escolar como sendo aquela “que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.”

TÍTULO II: DOS PRINCÍPIOS E FINS DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Compreende os arts. 2 e 3, que estabelecem bases e princípios de nosso sistema educacional. A educação é caracterizada como dever da família e do Estado. O art. 3 explicita nove princípios que devem nortear o ensino no Brasil. Desses princípios destacam-se quatro, numerados de conformidade com o projeto de lei:

“I- Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;”

“VI- Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;”

“VIII- Gestão democrática do ensino público na forma da lei;”

IX- Garantia do padrão de qualidade;”

I. Igualdade

A igualdade, segundo Tocqueville, tem sido uma das maiores preocupações da sociedade moderna. Entretanto, a despeito de toda a intervenção governamental, em todos os países, no sentido de promover igualdade, os resultados decorrentes de ações específicas dos governos têm sido no sentido de agravar as desigualdades. Em parte isso resulta da deterioração da liberdade decorrente do excesso de normas que visam à promoção de igualdade. Se tentarmos uma analogia de igualdade de condições com uma corrida, poderíamos admitir que a igualdade de condições se resumiria em que os corredores utilizassem o mesmo equipamento e partissem do mesmo ponto. Se isso é o conceito de igualdade, não há dúvida que alguns corredores chegarão na frente de outros, quer seja por habilidades pessoais, quer seja por investimentos anteriores, como boa alimentação, vida saudável, etc. Na corrida educacional as crianças de classe de renda mais baixa têm um ambiente, de um modo geral, pouco estimulante ao desenvolvimento da sociabilidade e da capacidade de aprender da criança. O ambiente é hostil e altamente competitivo, pouco cooperativo e pouco sociabilizante. Nas famílias de classe de renda mais alta, onde a percepção da importância da escola e do desenvolvimento da capacidade de aprender da criança é mais acentuada, pela própria condição de renda, o ambiente é mais favorável ao desenvolvimento da criança e ela entra na escola mais cedo. Isso significa dizer que, na analogia da corrida, a criança pobre começa a correr quando a criança de classe média alta ou rica já corre há alguns anos.

Corretamente, o projeto contempla o desenvolvimento de um serviço público de pré-escola (educação infantil), de modo a ampliar a possibilidade de sucesso das populações menos abastadas. Possivelmente esse sistema pré-escolar favorece a promoção da igualdade de condições para o acesso à escola. Mais complicada é a garantia de igualdade de condições para a permanência na escola. A rigidez das normas impostas à escola impede qualquer flexibilidade em seu conteúdo programático, bem como em seu próprio calendário. Assim, a eliminação de qualquer adaptação da escola às condições locais fica impossibilitada, de modo que todo e qualquer brasileiro seja exposto ao mesmo programa escolar independentemente das condições locais. Somente aos brasileiros indígenas é garantida uma escola pública com características próprias.

VI. Gratuidade

A gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais pode ser, por si só, uma alta fonte de promoção de desigualdades, como de fato vem ocorrendo no país. Uma escola primária e até uma escola de segundo grau mantidas pelo Estado, oferecendo ensino gratuito, isto é, sem que o beneficiado pague diretamente pelos serviços, parece razoável. O conteúdo de externalidades, isto é, benefícios apropriados indistintamente por todos, gerado por esses níveis de ensino, especialmente pelo ensino primário, poderia justificar a ação do Estado na sua promoção. Ler, escrever e dominar as quatro operações aritméticas aumenta substancialmente a capacidade de comunicação dos agentes sociais, reduzindo, portanto, os custos de comunicação na sociedade. Não é possível estender-se tal argumento a todos os níveis do ensino, em especial ao de graduação e de pós-graduação. Nesses níveis de ensino o maior beneficiado é o graduado e, portanto, ele deveria pagar pelos seus estudos. Infelizmente, grande parte dos recursos públicos arrecadados para a educação no Brasil se destina às universidades. Seria ocioso e possivelmente entediante reproduzir aqui todos os argumentos que exaustivamente têm sido apresentados pelos estudiosos do assunto.*

VIII. Gestão Democrática

O princípio da gestão democrática do ensino público parece extremamente salutar, uma vez que as famílias que contribuem com os impostos que mantêm a escola pública devem participar da orientação desse ensino. A democratização da administração da escola pública pode, entretanto, transformar os problemas pedagógicos em problemas de natureza política, deteriorando ainda mais a qualidade da escola pública. A regulamentação de tal norma deve ser extremamente cuidadosa, permitindo ao mesmo tempo uma efetiva influência das famílias na orientação da escola pública sem comprometer, entretanto, a responsabilidade profissional da condução dos trabalhos escolares.

IX. Padrão de Qualidade

Que a escola pública garanta um padrão de qualidade compatível com as exigências do mundo moderno, todos estão de acordo. Entretanto, é muito difícil garantir tal padrão de qualidade sem que haja uma competição entre as escolas. O que motiva a melhoria da qualidade do ensino na escola é a competição pelos estudantes, isto é, boas escolas atrairão bons estudantes que contribuem para a elevação do grau de qualidade da escola. Por outro lado, uma boa administração escolar e bons estudantes atraem bons professores. Assim, a competição pelo cliente faz com que o nível de qualidade da escola melhore.

Toda e qualquer escola tem um certo poder de monopólio, porquanto ocupa uma área física bem definida e oferece um serviço diferenciado. O poder de monopólio da escola pública é superior ao da escola particular, pois ainda que ambas sejam monopolistas numa determinada área de influência, aquela não cobra mensalidades. A ausência de competição entre as escolas públicas emerge do fato de estas serem únicas numa mesma área física de influência. Isso não ocorre no caso das escolas particulares, aumentando por conseguinte a competição entre as mesmas e entre estas e as escolas públicas. Desse modo, a escola pública é duplamente protegida da competição. É protegida da competição com a escola particular por não cobrar mensalidades de seus alunos, e é protegida da competição de outras escolas públicas pela preservação da condição de monopólio local, pela prática de na matrícula dar-se prioridade aos estudantes que residam na área de influência física da escola pública. De modo a promover a competição entre as escolas, públicas ou particulares, o estudo sobre educação, do Instituto Liberal, sugere a introdução do cheque educação que, uma vez implantado, permitiria à família do estudante escolher a escola que mais lhe conviesse, fosse ela pública ou privada.

TÍTULO III : DO DIREITO À EDUCAÇÃO E DO DEVER DE EDUCAR

Compreende do art. 4 ao art. 7, quando são definidos o papel do Estado e o dos pais ou responsáveis. O art. 4 estabelece as obrigações do Estado para com o cidadão, no que se refere à educação, garantindo acesso gratuito ao ensino fundamental, que é obrigatório. Tal acesso ao ensino fundamental é caracterizado como um direito público subjetivo (art. 5). Os responsáveis por exercer o direito de acesso ao ensino fundamental obrigatório e gratuito são os pais ou os responsáveis legais pela criança, que devem zelar pela sua freqüência à escola bem como pelo seu rendimento escolar ou, ainda, assegurar-lhe alternativa satisfatória, não ficando claro o significado de alternativa satisfatória. Nesse sentido seria conveniente chamar a atenção para o item II do art. 3, que garante “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. Desse modo não seria exagero supor que a expressão assegurar alternativa satisfatória represente um direito dos pais ou responsáveis de escolherem a melhor educação para seus filhos ou menores sob sua guarda.

Segundo o projeto de lei, a obrigatoriedade será paulatinamente estendida aos demais níveis de educação, à medida que forem satisfeitas as condições para o cumprimento da exigência de atendimento de toda demanda do nível anterior da educação. É ainda introduzido o atendimento em creches e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos de idade. Pela argumentação anterior deste trabalho, fica claro que esse atendimento deverá resultar em marcantes benefícios para as crianças das famílias de renda mais baixa, uma vez que o trabalho de sociabilização, o convívio num ambiente estimulador ao aprendizado, bem como estímulos diversos ao desenvolvimento da capacidade de aprender da criança, ocorrerão antes que a criança entre, aos sete anos, na escola pública. Isso porque o projeto de lei estabelece que esse atendimento seja oferecido gratuitamente pela autoridade pública competente.

O art. 4 contempla ainda o acesso a níveis mais elevados de ensino, pesquisa e criação artística, segundo a capacidade de cada um. Prevê também oferta de ensino noturno regular adequado às condições do educando. Como se pode constatar, o projeto de lei incorpora expressões sem significado claro, permitindo, portanto, muitas interpretações das expressões do tipo: segundo a capacidade de cada um; adequada às condições do educando; assegura alternativa satisfatória, etc. Ainda no que se refere ao ensino fundamental público, sugere o art. 4, item 8, que o educando seja atendido gratuitamente através de programas suplementares da autoridade pública que forneçam material didático escolar, promovam transporte, alimentação e assistência à saúde do educando. Não resta dúvida que a escola, em especial a escola elementar, não está isolada do contexto familiar e das condições de vida da criança. Entretanto, a promessa de assistência integral à criança através da escola pública exige um volume de recursos tão elevado que dificilmente essas promessas serão cumpridas. Dada a realidade atual do país, tal atendimento, quando orçamentariamente possível, acabará por criar pequenos grupos de privilegiados.

Se a escola pública de fato oferecer todo o atendimento proposto ao jovem, não há razão para a autoridade pública se preocupar com a escola particular. Como o projeto contempla satisfatoriamente o atendimento integral da criança pela escola pública, deveria, de modo a permitir opção de escolha às famílias, conceder à escola particular liberdade de definir seus programas que, por certo, seriam desenhados segundo exigências específicas das famílias que não optassem pela escola pública. Cobrando mensalidades e oferecendo uma assistência integral à criança, mas paga pelas famílias, a escola particular só poderá competir com a escola pública se oferecer um serviço de melhor qualidade ou com características especiais que satisfaçam às exigências das famílias. Considerando o aspecto da eqüidade, a autoridade pública teria que transferir às famílias que optassem pela escola privada o montante de recursos correspondentes aos gastos que teriam com seus filhos caso estes se matriculassem na escola pública. Infelizmente, o projeto não se preocupa com esse aspecto da eqüidade.

O art. 5 estabelece prioridade ao ensino obrigatório e define como crime de responsabilidade por negligência o fato de a autoridade competente não conseguir oferecer o ensino obrigatório a todas as crianças que o demandarem. Isso significa dizer que, em qualquer município, se um pai (ou responsável) não conseguir matricular seu filho numa escola pública por falta de vaga poderá responsabilizar criminalmente o Secretário de Educação ou mesmo o Prefeito. Não há dúvida que muito rapidamente essa garantia legal será desmoralizada, pois não é possível responsabilizar o prefeito atual pela insuficiência de vagas no sistema público de ensino.

Os arts. 6 e 7 estabelecem os direitos e responsabilidades dos pais e/ou responsáveis em face do ensino obrigatório. Curiosamente, o projeto estabelece que é direito do pai (ou responsável) matricular seu filho em estabelecimento com padrão mínimo de qualidade. A definição desse padrão mínimo de qualidade cabe ao próprio poder público, tornando, portanto, tal conceito inoperante, uma vez que nenhuma autoridade pública manterá uma escola e anunciará à comunidade que tal escola não satisfaz o padrão mínimo de qualidade por ela estabelecido.

TÍTULO IV: DA LIBERDADE DO ENSINO

Por ser tão claro o conceito de liberdade, não é preciso mais que um artigo para caracterizar a liberdade de ensino nesse projeto. Infelizmente, embora estabeleça que o ensino seja livre à iniciativa privada, o ensino particular no Brasil tem sua existência condicionada a uma série de restrições, como: cumprir as normas gerais de educação; só ser possível após a autorização do poder público; ser capaz de se autofinanciar e estar sujeito a uma avaliação do poder público. Na realidade, o art. 8 tem pouco a ver com o título 4, da liberdade de ensino. Essas restrições impostas ao ensino particular implicam ou revelam que o legislador não acredita que a autoridade pública possa cumprir a determinação do presente projeto para a escola pública. Esta é a razão de subjugar a escola particular às normas e restrições públicas: impedi-la de um crescimento próspero pelo atendimento das necessidades das famílias brasileiras.

TÍTULO V: DA ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Compreende 11 artigos, do 9 ao 19, e define a competência da União, estados e municípios no sistema educacional nacional. Estabelece a existência de três sistemas de ensino, sendo que cada esfera governamental tem seu próprio sistema, permitindo a cada um liberdade na organização do mesmo. À União compete conduzir a política nacional de educação, exercer a função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. Cabe, portanto, à União estabelecer os currículos, de modo a assegurar a “formação básica comum” bem como assegurar um processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental médio, em colaboração com os sistemas de ensino vigentes.

Tal poder normativo e controlador se estende aos cursos de graduação e pós-graduação, cabendo à União assegurar processo nacional de avaliação das instituições de ensino superior, autorizar, reconhecer, credenciar e supervisionar os cursos e as instituições de ensino superior e seu sistema de ensino. Todo esse poder pode ser delegado aos estados que mantêm instituições de ensino superior. O grau de controle que o projeto pretende impor às instituições de ensino pode tornar inviável o desenvolvimento do ensino particular no país. Quanto maior o controle imposto à escola privada no Brasil, pior a qualidade do ensino na escola pública, uma vez que as restrições impostas à escola particular reduzem sua qualidade, favorecendo, por comparação, uma queda na qualidade da escola pública. A possibilidade da transferência de controle do ensino superior da União para o estado, através de universidades estaduais, pode comprometer, pelo corporativismo, a qualidade do ensino superior nesses estados. Aqui estabelece o projeto que a ênfase no sistema municipal de ensino seja dada ao ensino fundamental, até que toda a população seja atendida. No caso do sistema educacional dos estados, a prioridade deve ser dada ao ensino médio e à formação profissional, com uma ação supletiva no campo do ensino fundamental. Conforme se pode observar pelos dados do IBGE sobre matrículas iniciais em 1993, o projeto sugere as prioridades efetivamente observadas.

BRASIL: DISTRIBUIÇÃO DAS PESSOAS COM 10 ANOS OU MAIS DE IDADE

POR GRUPOS DE ANOS DE ESTUDO SEGUNDO SITUAÇÃO DOMICILIAR E SEXO, 1993.

FONTE: IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1994.

* Exclusive as pessoas da zona rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

BRASIL: MATRÍCULA INICIAL POR NÍVEL DE ENSINO, SEGUNDO DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA, 1993.

FONTE: IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1994.

TÍTULO VI: DOS NÍVEIS E DAS MODALIDADES DE EDUCAÇÃO E ENSINO

Compreende do art. 20 ao art. 53, distribuídos em três capítulos: o primeiro simplesmente caracteriza a educação escolar como educação básica e ensino superior; o Capítulo 2 trata da educação básica, caracterizando-a como a educação infantil, do ensino fundamental e de ensino médio, permitindo flexibilidade quanto ao calendário escolar desde que 200 dias letivos, com 800 horas de aula, sejam cumpridos. Os estudantes podem ser classificados nas diversas séries através de uma avaliação feita pela escola, independentemente do nível de escolaridade anterior. O projeto define ainda em detalhes o sistema de verificação do rendimento escolar. A educação infantil é caracterizada pela creche com crianças até três anos de idade e pela pré-escola com crianças de quatro a seis anos. O ensino fundamental tem duração mínima de oito anos e deve-se desenvolver em tempo integral, associado a programas suplementares de alimentação, assistência à saúde, material didático escolar e transporte.

O ensino médio será desenvolvido em três anos, com finalidades e objetivos bem gerais e incontestáveis. Sua organização é bastante flexível e visa atender às necessidades do estudante. Prevê ainda a educação de jovens e adolescentes, bem como a educação profissional. O terceiro capítulo, numerado como Capítulo IV, trata do ensino superior e compreende do art. 38 ao art. 53. O art. 39, que caracteriza o ensino superior através de cursos e programas, estabelece uma inovação, a dos cursos pós-médios. Os cursos de graduação e pós-graduação strictu sensu, bem como os de lato sensu e os de extensão, são mantidos aparentemente como hoje existem.

O ensino superior poderá ser desenvolvido em organizações como universidades, centros de ensino superior, institutos e outras formas. A exigência de reconhecimento e credenciamento de instituições de ensino superior é mantida, com uma inovação: o prazo de credenciamento é limitado, tendo, portanto, uma validade que, uma vez expirada, exige um novo processo de credenciamento, supostamente antecedido por um processo regular de avaliação com penalidades descritas que vão de exigências, desativação do curso até o descredenciamento da instituição de ensino superior. No caso de as exigências incidirem sobre instituições de ensino público, o poder público responsável deve recuperá-las. O ano letivo é caracterizado por 200 dias de trabalho acadêmico, podendo ser de regime seriado ou de créditos. O registro de diploma continua sendo uma exigência, mantido o monopólio de convalidação de diplomas de universidades estrangeiras às universidades públicas, desde que tenham programas no mesmo nível do diploma a ser revalidado. O processo de estudos universitários proposto é razoavelmente flexível, permitindo matrículas a alunos não-regulares, como já acontece na maioria das universidades brasileiras, e estabelece a concessão de certificados de estudos superiores, desde que o estudante acumule créditos em cinco disciplinas correlacionadas. Neste último caso, não há qualquer qualificação para o que seja uma disciplina em termos de horas/aula.

O art. 46 é de especial interesse e, seguramente, provocará muita discussão: “é livre o exercício das profissões, exigida a qualificação especial, na forma da lei, nas áreas de saúde, de engenharia e de direito.” Tal artigo parece deixar claro que exceto na área de saúde, engenharia e direito, terminou o monopólio corporativista dos conselhos profissionais.

O desejo de inovar, expresso no parágrafo único do art. 47, conflita com a caracterização de universidade como instituição pluridisciplinar. A possibilidade de universidades por campo de saber conflita com a própria conceituação de universidade. A exigência de a maioria dos docentes universitários trabalhar em tempo integral é ingênua. A qualidade de uma universidade não é aferida pelo percentual de docentes em tempo integral, mas sim pela qualidade desses docentes e, por conseguinte, pela qualidade de seu ensino e de sua produção científica. Dependendo da concentração de cursos que requeiram profissionais dentre seus professores (Economia, Administração, Arquitetura, Contabilidade, Direito, Engenharia, Medicina, Odontologia, Psicologia), a universidade enfrentará sérios problemas para satisfazer tal exigência, se desejar contar com o concurso de profissionais de sucesso como docentes, pelo elevado custo de oportunidade destes.

Não há mudança alguma no conceito de autonomia universitária, a não ser no caso de universidades públicas, como é sugerido no art. 49, autonomia na execução orçamentária. O princípio da gestão democrática da escola pública é estendido à universidade pública, com a participação nos colegiados de até 10% de representantes dos segmentos das comunidades local e regional. Por certo o controle da universidade pública ainda será do corpo docente, uma vez que 70% dos colegiados serão de docentes (os restantes 20% são da representação estudantil).

Infelizmente, o preceito de que quem paga pela universidade pública deve ser responsável por sua administração, a despeito das possíveis dificuldades práticas de implementação, foi completamente desconsiderado. Desse modo fica preservado o poder de controle das universidades públicas àqueles que delas se beneficiam (professores e estudantes), sem que lhes seja imposta qualquer obrigação de mantê-las financeiramente. Sem o crivo da competição pelos recursos escassos e com autonomia na execução orçamentária, a universidade pública manterá suas atuais características.

No momento em que se discute a reforma administrativa do estado, com o propósito de eliminar privilégios, o projeto contempla as universidades públicas com um estatuto jurídico especial. Curiosamente, o projeto de lei incorpora um detalhe precioso em seu art. 53, quando estabelece em oito horas a mínima carga horária semanal de aulas de professor de universidade pública.

TÍTULO VII: DOS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

A formação de professores em geral está disciplinada ao longo dos arts. 54 a 60. As inovações ficam por conta dos institutos superiores, especializados na formação de professores em curso normal, que podem ser de nível superior ou médio. Neste último caso a formação de professores se destina à educação infantil e às séries iniciais do ensino fundamental. Cabe aqui uma reflexão sobre os custos, privados e sociais, para a formação de professores da educação básica. A exigência de curso superior para tais profissionais do ensino eleva substancialmente os custos sociais de formação desses profissionais. Sob o ponto de vista privado pode ser um desestímulo à procura individual de tal formação, uma vez que eleva o custo de oportunidade do professor de educação básica. A ação dos institutos superiores de educação poderá se dar, ainda, através de programas de adaptação, isto é, formação de professor para quem já detém diploma de nível superior ou de programas de formação continuada para docentes de todos os níveis. A formação de docentes para o curso superior se dará conforme a atual sistemática, através dos cursos de mestrado e doutorado.

Infelizmente, o problema da formação e da qualidade dos docentes nos mais variados níveis de ensino não pode ser resolvido através de lei. A qualidade dos professores de nível elementar tem-se deteriorado pelo desestímulo ao curso normal de nível médio decorrente de um salário diferenciado pago ao professor que possui curso superior, ainda que atue no ensino elementar. O portador de diploma superior tem um forte estímulo pecuniário, se bem preparado, para dedicar-se a outras atividades que não o magistério. Aqueles malformados, avessos ao risco e que não encontram oportunidade melhor terminam por tornarem-se professores. Sem dúvida há muitos professores por opção, mas ninguém desconhece o excesso de oferta de pessoas que se oferecem para lecionar, em todos os níveis de educação, sem que tenham o devido preparo, vocação ou interesse pela atividade docente. Essa oferta aumenta à medida que o mercado de trabalho se estreita, seja por razões conjunturais, seja pelas exigências de maior produtividade em decorrência da competição mais acirrada.

A melhoria do docente e, portanto, da qualidade do ensino em geral só ocorrerá quando se permitir que o consumidor de tais serviços, isto é a família, possa exercer seu poder de escolha. Esse poder só será estabelecido quando se liberar o sistema educacional do excesso de controle a que está sujeito promovendo a competição entre todas as escolas e eliminando os poderes de monopólio e outras distorções que assolam o sistema educacional brasileiro.

TÍTULO VIII: DOS RECURSOS PARA A EDUCAÇÃO

Compreendendo 11 artigos (do 61 ao 71), este título estabelece limites inferiores como percentagem da receita tributária para gastos em educação pela administração pública: 18% para a União e 25% para os estados, municípios e Distrito Federal. Os arts. 63 a 66 detalham casos de exclusão de rubricas para o cálculo do percentual exigido; impõem correção monetária às liberações em atraso e responsabilidade civil às autoridades públicas que não cumprirem os limites mínimos de gastos fixados. A experiência demonstra a ingenuidade dessas proposições, uma vez que desde a promulgação da chamada Lei Calmon, que fixa o percentual de receita a ser gasto em educação, que invariavelmente um ou dois estados têm cumprido tal exigência. Educação é um investimento cujos benefícios só são claramente percebidos no longo prazo. O sistema público de educação é por natureza político e, por isso mesmo, está sujeito à prioridade de prazo determinado pelo calendário político. Assim, concursos para professores da rede pública de ensino são em geral abertos conforme o calendário político, e não segundo as necessidades do sistema; instalações físicas são mais importantes que o uso eficiente dos recursos no processo educacional; professores são deslocados da sala de aula para funções burocráticas gratificadas, segundo conveniências políticas de momento. Uma vez mais, o estado de coisas só poderá mudar se a família puder dizer não a tanta arbitrariedade.

IMPORTÂNCIA RELATIVA DAS DOTAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS DA UNIÃO

COM EDUCAÇÃO PARA 1994

Nesse título as instituições de ensino privado, sustentadas por uma instituição mantenedora, são classificadas como particulares, quando mantidas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado; comunitárias, quando incluem em sua entidade mantenedora representantes da comunidade, com parcela significativa de sua receita provindo de outras fontes que não as mensalidades escolares; confessionais, quando sua mantenedora atende à orientação confessional e ideológica; e filantrópica, como definido em lei. O projeto mantém o tratamento cínico que vem sendo dado às escolas particulares através do conceito de instituição mantenedora e o preconceito de que ensino é um serviço que não pode gerar ganho para quem ousa empresariá-lo. A classificação da escola privada tem o único propósito de limitar a possibilidade de recursos públicos serem destinados a tais organiza-ções. Desse modo, somente as escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas estariam aptas a receber recursos públicos.

TÍTULO IX: DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Do art. 72 ao 80, este título trata da educação especial para educandos com necessidades especiais, do ensino nas comunidades indígenas e do ensino a distância. Que o ensino para educandos com necessidades especiais requer atenção não há dúvidas, tanto no caso dos deficientes como no caso dos superdotados. O respeito ao índio exige que o mesmo tenha um tratamento idêntico ao dado a qualquer brasileiro. Entretanto, impor à União “apoiar técnica e financeiramente um sistema de ensino bilingüe e intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa com publicação de material didático nas duas línguas”, parece fora do contexto nacional atual. Quanto ao ensino a distância, embora o governo atual já tenha iniciado um processo de incentivo a esse tipo de ensino, devemos ser cautelosos. O bom senso e a realidade impostos pela escassez de recursos numa sociedade devem conduzir a autoridade pública a utilizar recursos públicos nas alternativas que gerem o maior benefício possível. Portanto, os recursos destinados à educação devem ser prioritariamente alocados ao ensino básico. Esta parece ser a percepção do atual governo, conforme se depreende de sua retórica. Assim, ensino a distância, de pouca eficiência no ensino básico, não deve ser considerado prioritário nem tampouco alardeado como solução moderna para a educação no Brasil. Dadas as circunstâncias atuais do país, dificilmente se justifica o uso de recursos públicos em programas de ensino a distância.

TÍTULO X: DAS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS

Compreendendo cinco artigos, este título estabelece a década da educação atrelada a um plano decenal de educação, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Determina ainda um censo escolar abrangendo o ensino fundamental; dois anos de prazo para que os sistemas educacionais se adaptem às normas deste projeto; oito anos para as universidades terem a maioria de seus professores em tempo integral com titulação de mestrado e doutorado.

Le difficile est de ne promulguer que des lois nécessaires, de rester à jamais fidèle à ce principe vraiment constitutionnel de la société, de se mettre en garde contre la fureur de gouverner, la plus funeste maladie des gouvernements modernes.

Mirabeau l’áîné, Sur l’Educacion Publique

Não há dúvida alguma sobre a atualidade e a pertinência das palavras de Mirabeau, aqui reproduzidas. Não nos resta qualquer dúvida, também, sobre a importância dos conceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade para a formação de repúblicas modernas. Ainda estão vivas em nossa memória as calorosas discussões políticas sobre liberdade e igualdade na Inglaterra vitoriana. A despeito de toda essa herança, insiste o governo em agredir, permanentemente, o sistema de ensino do País, tratando-o ora como filho bastardo, no caso do subsistema público, ora como marginal, no caso do subsistema privado, e, em ambos os casos, retirando-lhe a liberdade. O presente projeto de lei em nada modifica o estado atual da educação no Brasil.

A escola particular representa a liberdade de ensinar e aprender, garantida na Constituição e registrada no projeto. Somente através da escola particular podem os pais prover, segundo sua livre vontade, a educação que julgam adequada para seus filhos. A escola pública poderia atender às exigências das famílias se estas, e não a burocracia oficial, fossem localmente responsáveis pela escola. O furor controlador do governo mantém a escola pública refém da burocracia oficial e impede o desenvolvimento e a criatividade da escola particular. Ainda que aparentemente o projeto procure modificar a relação da autoridade pública com a escola, as inovações introduzidas não visam liberar o ensino, mas sim travestir de democrática uma relação de autoridade unilateral.

Nenhuma outra atividade humana no Brasil está sujeita a tanto controle quanto a educação formal da escola, e o presente projeto dá apenas uma roupagem diferente a esse controle. A entrada no mercado não é livre e depende de uma licença que periodicamente precisa ser renovada. O controle se espraia pelo conteúdo pedagógico, atingindo o número de dias trabalhados e a titulação dos recursos humanos utilizados no processo. No caso da escola particular, as anuidades cobradas mensalmente são controladas (diretamente, como no passado, ou veladamente, como no presente) por uma autoridade governamental, e as instalações físicas estão sujeitas a exigências impostas por essas mesmas autoridades! Pura ilusão. O excesso de controles não tem promovido qualidade. Ao retirar do mercado sua criatividade, pela supressão da liberdade de ensinar, o governo só tem promovido a mediocridade e penalizado as organizações que levam a sério sua missão de educar.

Se a liberdade foi abolida da escola, a igualdade só tem sido conseguida na mediocridade. As organizações de ensino que mantêm os melhores níveis de qualidade o fazem a despeito dos embaraços criados pelo governo. Sua qualidade, ainda que elevada no país, não se destaca num contexto internacional. Educação no Brasil não carece de recursos; carece, isso sim, de liberdade. Os países de planejamento central sempre destinaram, relativamente a países similares mas sujeitos a uma organização institucional mais livre, mais recursos públicos para educação. Há concordância de que é fundamental para o pleno desenvolvimento de uma nação a melhoria continuada da qualidade de seu povo. A experiência dos países socialistas do Leste Europeu deixa claro que sem liberdade os investimentos no Homem têm pouco impacto sobre o desenvolvimento econômico-social. A preservação da criatividade do ser humano e a promoção de sua inventividade num contexto social dependem das instituições. Instituições que promovem a liberdade individual dentro de um Estado de direito favorecem a criatividade humana, fator indispensável ao progresso econômico-social, e por conseguinte, maior nível de bem estar do Homem.

RECOMENDAÇÕES

Pelas externalidades positivas produzidas pela educação infantil, o governo, em todos os níveis administrativos, deveria concentrar nesse nível os recursos destinados à educação. Desse modo, recomenda-se que no momento atual a preocupação normativa com relação à educação se concentre nesse nível de ensino. De modo a promover a educação pré-escolar e fundamental, da maneira mais abrangente possível, dadas as atuais restrições (de recursos e de natureza política) a que está sujeita a sociedade brasileira, o governo deveria, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:

1. definir o papel regulador do Estado com o propósito de reduzir os custos de transação na promoção de serviços educacionais, pela proteção dos interesses de terceiros, favorecendo as inovações pedagógicas, pela promoção de liberdade de ensino e de contratar tais serviços;

2. evitar produzir serviços educacionais, permitindo acesso à escola através de um programa amplo, geral e irrestrito de cheque-educação, distribuído a todo brasileiro com mais de três e menos de 16 anos de idade e que não tenha concluído o primeiro grau;

3. transferir a administração da escola pública para a comunidade local, quando isso for possível, retirando do setor público a operação e a manutenção dos programas escolares;

4. promover a livre concorrência entre as escolas, públicas e/ou privadas, através do cheque-educação, conforme descreve o projeto para a educação brasileira do Instituto Liberal;

5. definir uma linha de ação que promova o livre mercado de trabalho de educadores (professores e pessoal administrativo), pela penalização de práticas corporativistas e por estímulos à formação de recursos humanos quando os benefícios líquidos sociais dessa formação forem maiores que aqueles apropriados individualmente pelas pessoas;

6. acabar com a figura da mantenedora, permitindo o estabelecimento da escola, de qualquer natureza, como empresa;

7. dar à educação o mesmo tratamento fiscal dado à cultura.

* Ver a esse respeito o trabalho de educação do IL/RJ, Políticas Alternativas: Educação, Instituto Liberal, Rio de Janeiro, novembro de 1992.