Democracia Representativa

Ansiedade de massa versus inércia institucional: raízes de um dilema

O que você escolhe: a angústia consciente ou a ignorância feliz? Para doutores em Filosofia e Ciência Política, este é um dos grandes desafios da sociedade contemporânea em relação à participação política.

André Sathler e Malena Rehbein *

A democracia representativa, com sua tecnologia progressivamente incorporada, ainda não passou da fase embrionária, em termos de História da humanidade. Por isso, há ainda muita dificuldade, por parte da população, em lidar com alguns de seus aspectos. Com o progresso da civilização, cresce também a complexidade da sociedade, bem como o número de problemas interdependentes que precisam de solução. Há muito não há condições para as formas rudimentares de decisão, como o consenso tribal e o acordo espontâneo. Desde o século XIX, pelo menos, há clareza da necessidade da existência de um sistema político em funcionamento permanente e que seja capaz de organizar o processo decisório coletivo. As formas rudimentares, presenciais e diretas, são substituídas por procedimentos simbólicos, representativos e indiretos.

Nesse contexto, o Poder Legislativo cumpre o papel não só de centralizar o processo de criação de normais gerais, mas também de dar publicidade a esse processo, uma das características inexoráveis da democracia em seu sentido mais amplo.. Em ambientes de informação escassa, a legitimidade viria de uma confiança quase como fé. Em ambientes de informações em tempo real e número ilimitado, a legitimidade custa bem mais do que fé, já que quanto mais se sabe sobre qualquer assunto, mais posição crítica e capacidade de demanda e crítica há. Muito bom pelo lado do amadurecimento político social, não tão bom (para alguns talvez) pelo custo que se tem hoje para convencer a população, não só pela contínua prestação de contas, mas também pela atuação política. A legitimação das leis é, portanto, função simbólico-expressiva dos parlamentos nas sociedades modernas. A Instituição “Poder Legislativo” traz a certeza de que uma solução pode ser alcançada, mas não de que será alcançada. Essa constatação nasce de um paradoxo do Poder Legislativo: para que se tenha um mecanismo institucional que possa decidir tudo, é preciso que esse mecanismo possa decidir nada. Outra decorrência desse paradoxo é a impossibilidade de garantia da decisão ótima, pois o que entra em jogo é a administração pública de valores complexos.

É um processo lento e abstrato. A abstração é um passo fundamental no processo evolutivo: a capacidade de processamento simbólico é o marco a diferenciar o homem das demais espécies. O Poder Legislativo é uma abstração – uma estrutura criada por e no pensamento, para resolver no plano retórico-simbólico conflitos outrora solucionados pela força. Há uma evidente vantagem civilizatória em se ter uma instituição com esse propósito.

Contudo, há um contraste evidente e forte com as expectativas individuais de solução de problemas. O pão que falta dá fome hoje. As pessoas vivem no agora. As informações chegam em modo pulse. As demandas por soluções exigem quase que o imediato. Enquanto isso, as instituições não vivem, existem, e, portanto, transcendem a dimensão do tempo. É o dilema da responsividade, ou seja, a capacidade de sintonia e sincronia entre as instituições representativas e os representados. O problema passa também pelo nível de educação política dos representados, como demonstrado por muitas pesquisas realizadas sobre participação política, tema muito em voga no momento. O domínio dos códigos é a garantia do acesso e da participação efetiva em qualquer comunidade, inclusive na comunidade política. Para que o representado possa vivenciar experiências cognitivas que o habilitem a tomar iniciativas e participar das oportunidades de debate político nas sociedades modernas, é preciso que dominem os mecanismos e as formas de participação.

O ‘animal político’ aristotélico, para ser pleno, necessita participar de um contínuo desenvolvimento do conhecimento e de seu livre intercâmbio. A importância da participação tem valor óbvio em si mesmo. Mas aqui pretendemos ir além. Talvez ela seja um dos instrumentos mais importantes para reduzir a anomalia tempo/espaço, ou ainda mais intuitivamente – o gap –, entre o tempo contínuo ou transcendente das instituições e a demanda crescente da sociedade do tempo real. E a explicação é bastante simples: se participo, necessariamente me sincronizo com os atores políticos e instituições e vice-versa. De maneira, que meu tempo deixa de ser o já para o da negociação, típica de ambientes legislativos, mas que também é simultaneamente afetada pela demanda social do agora intempestivo. Há, portanto, um ajuste relacional, de tempo/espaço, de relação cidadão/Estado, de processo de negociação, ou qualquer outra forma com que queiramos definir e pensar o tradicional dilema da relação entre representantes e representados.

Para aqueles que não tiverem acesso à informação política e não forem capazes de processá-la criticamente, transformando-a em conhecimento, restará fadado a aceitar, indefinidamente, decisões prontas. Mas é preciso dizer que, em uma democracia, esta é uma opção legítima e até relativamente fácil. Se não houver o conhecido fenômeno da disfunção narcotizante, na qual uma pessoa por ser tão informada já se sente como tendo participado, imagina-se que quem abre mão de atuar politicamente como cidadão (obviamente que em esferas, temas e decisões de interesse coletivo) também já desistiu antes do acesso a informações plurais e das mais diversas fontes. Neste caso, pensando bem, este cidadão também é passível de sofrer menos angústias com intempéries políticas. Em dias de hoje, o desafio é escolher entre a angústia consciente e a ignorância feliz.

* André Sathler Guimarães é doutor em Filosofia e coordenador do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.

Malena Rehbein Rodrigues é doutora em Ciência Política, docente do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.

FONTE: Congresso Em Foco