Discurso sobre A Origem da Desigualdade

Jean-Jacques Rousseau

DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE

—Ridendo Castigat Mores—

Discurso sobre A Origem da desigualdade (1754)

Jean-Jacques Rousseau

Tradução: Maria Lacerda de Moura

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Ridendo Castigat Mores

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Autor: Jean-Jacques Rousseau

Tradução: Tradução: Maria Lacerda de Moura

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Ed. Ridendo Castigat Mores

(www.jahr.org)

“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-2002)

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

BIOGRAFIA DO AUTOR

DEDICATÓRIA

À República de Genebra

PREFÁCIO

DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

PRIMEIRA PARTE Visualizar

SEGUNDA PARTE Visualizar

ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

NOTAS

DISCURSO

SOBRE ESTA QUESTÃO PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON:

QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS,

E SE É AUTORIZADA PELA LEI NATURAL

Jean-JacquesRousseau

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

Rousseau, com os seus companheiros enciclopedistas e da maçonaria, nos ensinou a respeitar o ser humano, amar a natureza e a sentir paixão pela liberdade. Foi devido a essa influência, pelo menos em parte, que lutamos contra o jugo português, proclamamos a República, enfrentamos a ditadura do Estado Novo e o regime militar. Aprendemos também a defender as florestas, os animais, a vida enfim.

Em “Sobre a origem da desigualdade”, Rousseau mostra o caminho histórico percorrido pelo ser humano, passando do estado de natureza para o estado civilizado. Discute as contradições e antagonismos que permearam esse processo e defende a volta ao estado natural, sob novas formas.

Suas concepções sobre o Direito Natural, no Prefácio, são brilhantes.

A conclusão final nos leva a pensar e, espero, a agir um dia:

“Essa distinção determina suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário”.

Liberdade também se aprende, com Rousseau o caminho é mais breve.

BIOGRAFIA DO AUTOR

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra no ano de 1712 e morreu no de 1778.

Dotado de excepcionais qualidades de inteligência e imaginação, foi ele um dos maiores escritores e filósofos do seu tempo. Em suas obras, defende a idéia da volta à natureza, a excelência natural do homem, a necessidade do contrato social para garantir os direitos da coletividade. Seu estilo, apaixonado e eloqüente, tornou-se um dos mais poderosos instrumentos de agitação e propaganda das idéias que haviam de constituir, mais tarde, o imenso cabedal teórico da Grande Revolução de 1789-93. Ao lado de Diderot, D’Alembert e tantos outros nomes insignes que elevaram, naquela época, o pensamento científico e literário da França, foi Rousseau um dos mais preciosos colaboradores do movimento enciclopedista. Das suas numerosas obras, podem citar-se, dentre as mais notáveis: Júlia ou A Nova Heloísa (1761), romance epistolar, cheio de grande sentimentalidade e amor à natureza; O Contrato Social (1762), onde a vida social é considerada sobre a base de um contrato em que cada contratante condiciona sua liberdade ao bem da comunidade, procurando proceder sempre de acordo com as aspirações da maioria; Emílio ou Da Educação (1762), romance filosófico, no qual, partindo do princípio de que “o homem é naturalmente bom” e má a educação dada pela sociedade, preconiza “uma educação negativa como a melhor, ou antes, como a única boa”; As Confissões, obra publicada após a morte do autor (1781-1788), e que é uma autobiografia sob todos os pontos-de-vista notável.

Quanto ao Discurso, aqui editado, composto em 1753 para responder à questão proposta pela Academia de Dijon, isto é: A Origem da Desigualdade entre os Homens, era a obra de Rousseau, como ele próprio informa nas suas Confissões, que o seu genial contemporâneo Diderot mais apreciava. Eis aí o melhor elogio que se poderia fazer da presente edição.

DISCURSO

SOBRE ESTA QUESTÃO PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON:

QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE

ENTRE OS HOMENS,

E SE É AUTORIZADA PELA LEI NATURAL

DEDICATÓRIA

À República de Genebra

MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES,(1)

Convencido de que só ao cidadão virtuoso cabe dar à sua pátria as honras que ela possa reconhecer, há trinta anos que trabalho para ter o mérito de vos oferecer uma homenagem pública; e essa feliz ocasião suprindo em parte o que meus esforços não puderam fazer, acreditei que me seria permitido consultar aqui o zelo que me anima, mais do que o direito que deveria autorizar-me. Tendo tido a felicidade de nascer entre vós, como poderia eu meditar sobre a igualdade que a natureza pôs entre os homens e sobre a desigualdade que eles instituíram, sem pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra, felizmente combinadas nesse Estado, concorrem, da maneira mais próxima da lei natural e mais favorável à sociedade, para a manutenção da ordem pública e para a felicidade dos particulares? Procurando as melhores máximas que o bom senso possa ditar sobre a constituição de um governo, fiquei tão impressionado ao vê-las todas em execução no vosso, que, mesmo sem ter nascido dentro dos vossos muros, achei que não poderia dispensar-me de oferecer este quadro da sociedade humana àquele de todos os povos que me parece possuir as maiores vantagens delas e ter melhor prevenido os seus abusos.

Se eu tivesse de escolher o lugar do meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de grandeza limitada pela extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada, e onde, bastando-se cada qual ao seu mister, ninguém fosse constrangido a atribuir a outros as funções de que estivesse encarregado; um Estado em que, todos os particulares se conhecendo entre si, nem as manobras obscuras do vício, nem a modéstia da virtude pudessem subtrair-se aos olhares e ao julgamento do público, e em que esse doce hábito de se ver e de se conhecer fizesse do amor da pátria o amor dos cidadãos, em vez do da terra.

Eu quisera nascer num país em que o soberano e o povo só pudessem ter um único e mesmo interesse, a fim de que todos os movimentos da máquina tendessem sempre unicamente à felicidade comum; como isso só poderia ser feito se o povo e o soberano fossem a mesma pessoa, resulta que eu quisera nascer sob um governo democrático, sabiamente moderado.

Eu quisera viver e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu nem ninguém pudesse sacudir o honroso jugo, esse jugo salutar e doce, que as cabeças mais altivas carregam tanto mais docilmente quanto são feitas para não carregar nenhum outro.

Eu quisera, pois, que ninguém, no Estado, pudesse dizer-se acima da lei, e que ninguém, fora dele, pudesse impor alguma que o Estado fosse obrigado a reconhecer; de fato, qualquer que possa ser a constituição de um governo, se neste se encontra um só homem que não esteja submetido à lei, todos os outros ficam necessariamente à discrição deste último: e, havendo um chefe nacional e outro estrangeiro, qualquer que seja a partilha da autoridade que possam fazer, é impossível que ambos sejam bem obedecidos e o Estado bem governado.

Eu não quisera habitar uma república de nova instituição, por muito boas que fossem as leis que pudesse ter, de medo de que, constituído o governo de outra maneira, talvez, que não a exigida pelo momento, não convindo aos novos cidadãos, ou os cidadãos ao novo governo, ficasse o Estado sujeito a ser abalado e destruído quase desde o seu nascimento; porque a liberdade é como esses alimentos sólidos e suculentos, ou esses vinhos generosos, próprios para nutrir e fortificar os temperamentos robustos a eles habituados, mas que inutilizam, arruinam, embriagam os fracos e delicados, que a ele não estão afeitos. Os povos, uma vez acostumados a senhores, não podem mais passar sem eles. Se tentam sacudir o jugo, afastam-se tanto mais da liberdade quanto, tomando por ela uma licença desenfreada que lhe é oposta, suas revoluções os entregam quase sempre a sedutores que só fazem agravar as suas cadeias. O próprio povo romano, modelo de todos os povos livres, não foi capaz de se governar ao sair da opressão dos Tarquínios. Aviltado pela escravidão e os trabalhos ignominiosos que lhe foram impostos, não passava, primeiro, de uma estúpida populaça que foi preciso conduzir e governar com a maior sabedoria, a fim de que, acostumando-se pouco a pouco a respirar o ar salutar da liberdade, as almas enervadas, ou antes, embrutecidas pela tirania, adquirissem gradativamente a severidade de costumes e a altivez de coragem que as tornaram, finalmente, o mais respeitável dos povos. Eu teria, pois, procurado, como pátria, uma feliz e tranqüila república cuja antigüidade se perdesse de certo modo na noite dos tempos, que não tivesse experimentado senão golpes próprios para manifestar e consolidar nos seus habitantes a coragem e o amor da pátria, e onde os cidadãos, acostumados de longa data a uma sábia independência, fossem não somente livres, mas dignos de o ser.

Eu quisera escolher para mim uma pátria desviada, por uma feliz impossibilidade, do feroz amor das conquistas e preservada, por uma posição ainda mais feliz, do temor de tornar-se a conquista de outro Estado; uma cidade livre, colocada entre muitos povos, nenhum dos quais tivesse interesse em invadi-la e cada um dos quais tivesse interesse em impedir que outros a invadissem; uma república, em uma palavra, que não fosse tentada pela ambição dos seus vizinhos e pudesse razoavelmente contar com o socorro destes quando necessário. Conclui-se daí que, em posição tão feliz, ela não teria que temer senão a si mesma, e que, se os seus cidadãos fossem exercitados nas armas, seria antes para entreter entre eles o ardor guerreiro e a altivez de coragem, que ficam tão bem à liberdade e que nutrem o gosto dela, do que pela necessidade de assegurar a própria defesa.

Eu teria procurado um país no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos; porque, quem melhor do que eles pode saber sob que condições lhes convém viver juntos em uma mesma sociedade? Mas, eu não aprovaria plebiscitos semelhantes aos de Roma, em que os chefes de Estado e os mais interessados na sua conservação eram excluídos das deliberações, das quais muitas vezes dependia sua salvação, e onde, por uma absurda inconseqüência, os magistrados eram privados dos direitos de que gozavam simples cidadãos.

Ao contrário, eu quisera que, para suspender os projetos interesseiros e mal concebidos e as inovações perigosas que acabaram perdendo os atenienses, cada qual não tivesse o poder de propor novas leis segundo a sua fantasia; que esse direito coubesse apenas aos magistrados; que estes usassem dele com tanta circunspecção, o povo, por sua vez, fosse tão reservado em dar o seu consentimento a essas leis, e a sua promulgação só pudesse ser feita com tanta solenidade que, antes da constituição ser abalada, todos tivessem tempo para se convencer de que é sobretudo a grande antigüidade das leis que as torna santas e veneráveis, pois que o povo logo despreza as que vê mudar todos os dias e, pelo hábito de negligenciar os antigos usos, sob o pretexto de fazer melhores, são introduzidos muitas vezes grandes males para corrigir menores.

Eu teria fugido principalmente de uma república na qual um povo, como necessariamente mal governado, acreditando poder passar sem magistrados ou lhes deixar apenas uma autoridade precária, imprudentemente se tivesse reservado a administração dos negócios civis e a execução de suas próprias leis: assim, deve ter sido a grosseira constituição dos primeiros governos ao saírem imediatamente do estado de natureza; e tal foi ainda um dos vícios que perderam a república de Atenas.

Mas, eu teria escolhido aquela na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em decidir pessoalmente, com o testemunho dos chefes, os mais importantes negócios públicos, estabelecessem tribunais respeitados, distinguissem cuidadosamente os seus diversos departamentos, elegessem todos os anos os mais capazes e os mais íntegros dentre os seus concidadãos para administrar a justiça e governar o Estado, e na qual, sendo a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do povo, uns e outros se honrassem mutuamente. De sorte que, se jamais funestos mal entendidos viessem perturbar a concórdia pública, até tempos de cegueira e de erros fossem marcados por testemunhos de moderação, de estima recíproca e de comum respeito às leis, presságios e garantias de reconciliação sincera e perpétua

Tais são, MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES, as vantagens que eu teria procurado na pátria que tivesse escolhido. E, se a Providência a isso tivesse acrescentado ainda uma situação encantadora, um clima temperado, um país fértil e o aspecto mais delicioso que há sob o céu, eu não teria desejado, para cumular a minha felicidade, senão gozar de todos esses bens no seio dessa pátria feliz, vivendo pacificamente em uma doce sociedade com os meus concidadãos, exercendo para com eles, a seu exemplo, a humanidade, a amizade e todas as virtudes, e deixando, depois da minha morte, a memória de um homem de bem e de um honesto e virtuoso patriota.

Se, menos feliz ou sábio tarde demais, fosse reduzido a acabar em outros climas uma doentia e abatida carreira, lastimando inutilmente o repouso e a paz das quais uma mocidade imprudente me tivesse privado, eu teria pelo menos nutrido em minha alma esses mesmos sentimentos de que não teria podido fazer uso em meu país; e, penetrado de uma afeição terna e desinteressada por meus concidadãos longínquos, eu lhes teria dirigido do fundo do coração, pouco mais ou menos o seguinte discurso:

Meus queridos concidadãos, ou antes, meus irmãos, pois que os laços do sangue, assim como as leis, nos unem a quase todos, é-me agradável não pensar em vós sem pensar ao mesmo tempo em todos os bens de que gozais e cujo preço talvez nenhum de vós avalie tão bem como eu que os perdi. Quanto mais reflito sobre a vossa situação política e civil, menos posso imaginar que a natureza das coisas humanas possa comportar melhor. Em todos os outros governos, quando se trata de assegurar o maior bem do Estado, tudo se limita sempre a projetos em idéias e, quando muito, a simples possibilidades: quanto a vós, vossa felicidade está feita, é só gozá-la; e não tendes mais necessidade, para vos tornardes perfeitamente felizes, senão de saber vos contentar em o ser. Vossa soberania, adquirida ou reconquistada a ponta de espada, e conservada durante dois séculos à força de valor e de sabedoria, está enfim plena e universalmente reconhecida. Tratados honrosos fixam os vossos limites, asseguram os vossos direitos e solidificam o vosso repouso. Vossa constituição é excelente, ditada pela mais sublime razão e garantida por potências amigas e respeitáveis; vosso Estado é tranqüilo; não tendes guerras nem conquistadores que temer; não tendes outros senhores além das sábias leis que fizestes, administradas por íntegros magistrados da vossa escolha; não sois nem bastante ricos para vos enervardes pelo ócio e perderdes em vãs delícias o gesto da verdadeira felicidade e das sólidas virtudes, nem bastante pobres para terdes necessidade ainda de socorro estrangeiro que não vo-lo proporcione a vossa indústria; e essa liberdade preciosa, só mantida nas grandes nações à custa de impostos exorbitantes, quase nada vos custa conservar.

Possa durar sempre, para a felicidade dos seus cidadãos e o exemplo dos povos, uma república tão sabiamente e com tanta felicidade constituída! Eis o único voto que vos resta fazer, e o único cuidado que vos resta tomar. Cabe-vos, doravante, não fazer a vossa felicidade, porque vossos ancestrais vos evitaram esse trabalho, mas torná-la durável pela sabedoria de bem aproveitá-la. É da vossa união perpétua, da vossa obediência às leis, do vosso respeito aos seus ministros que depende a vossa conservação. Se resta, entre vós, o menor germe de azedume ou de desconfiança, apressai-vos em destruí-lo, como fermento funesto de onde resultariam, cedo ou tarde, as vossas desgraças e a ruína do Estado. Conjuro-vos a penetrar todos no fundo do vosso coração e a consultar a voz secreta da vossa consciência. Alguém dentre vós conhece, no universo, corpo mais íntegro, mais esclarecido, mais respeitável do que o da vossa magistratura? Todos os seus membros não vos dão o exemplo da moderação, da simplicidade de costumes, do respeito às leis e da mais sincera reconciliação? Depositai, pois, sem reservas, em tão sábios chefes essa confiança salutar que a razão deve à virtude; pensai que eles são da vossa escolha, que a justificam, e que as honras devidas aos que constituístes em dignidade recaem necessariamente sobre vós mesmos. Nenhum de vós é tão pouco esclarecido para ignorar que onde cessam o vigor das leis e a autoridade dos seus defensores, não pode haver segurança nem liberdade para ninguém. De que se trata, pois, entre vós, se não de fazer de boa vontade e com justa confiança o que seríeis sempre obrigados a fazer por verdadeiro interesse, por dever e pela razão? Que uma culpável e funesta indiferença pela manutenção da constituição não vos faça jamais negligenciar, quando necessários, os sábios conselhos dos mais esclarecidos e dos mais zelosos dentre vós; mas, que a equidade, a moderação, a mais respeitosa firmeza continuem a regular todos os vossos passos, e a mostrar em vós, a todo o universo, o exemplo de um povo altivo e modesto, tão cioso da sua glória como da sua liberdade. Tende cuidado, principalmente, e este será meu último conselho, em não ouvir jamais interpretações sinistras e discursos envenenados, cujos motivos secretos são, muitas vezes, mais perigosos do que as ações que são o seu objeto. Toda uma casa desperta e se conserva em alarma aos primeiros gritos de um bom e fiel guarda que só late quando se aproximam os ladrões; mas, ninguém gosta da importunação desses animais barulhentos que perturbam sem cessar o repouso público e cujas advertências contínuas e fora de propósito não se fazem ouvir no momento em que são necessárias E vós, MAGNÍFICOS E MUITO HONRADOS SENHORES, vós, dignos e respeitáveis magistrados de um povo livre, permiti-me que vos ofereça, em particular, as minhas homenagens e os meus deveres. Se há no mundo uma ordem própria para ilustrar os que a ocupam, é sem dúvida aquela que dão os talentos e a virtude, aquela da qual vos tomastes dignos e à qual os vossos concidadãos vos elevaram. O seu próprio mérito acrescenta ainda ao vosso um novo brilho; e, escolhidos por homens capazes de governar para governá-los também, eu vos acho tão acima dos outros magistrados quanto um povo livre, e principalmente o que tendes a honra de conduzir, está, por suas luzes e por sua razão, acima da populaça dos outros Estados.

Que me seja permitido citar um exemplo do qual deveriam ficar melhores traços e que estará sempre presente no meu coração. É com a mais doce emoção que me vem sempre a lembrança do virtuoso cidadão de quem recebi a vida e que muitas vezes me entreteve a infância no respeito que vos era devido. Vejo-o ainda vivendo do trabalho de suas mãos e nutrindo sua alma com as verdades mais sublimes. Vejo Tácito, Plutarco, e Grotius, misturados diante dele com os instrumentos do seu ofício. Vejo ao seu lado um filho querido, recebendo com muito poucos frutos as ternas instruções do melhor dos pais. Mas, se os desregramentos de uma louca juventude me fizeram esquecer durante algum tempo tão sábias lições, tenho a felicidade de experimentar enfim que, se alguma tendência se tem para o vício, é difícil que uma educação na qual entra o coração seja perdida para sempre.

Tais são, MAGNÍFICOS E MUITO HONRADOS SENHORES, os cidadãos e mesmo os simples habitantes nascidos no Estado que governais; tais são esses homens instruídos e sensatos, dos quais, sob o nome de operários e de povo, se fazem nas outras nações idéias tão baixas e tão falsas. Meu pai, confesso-o com alegria, não era distinguido entres os seus concidadãos: não era senão o que são todos; e, tal como era, não há província onde a sua sociedade não fosse procurada, cultivada, e mesmo com resultados, pela gente de bem. Não me compete, e, graças aos céus, não é necessário falar-vos das deferências que podem esperar de vós homens dessa têmpera, vossos iguais por educação assim como por direitos de natureza e de nascimento; vossos inferiores por vontade, pela preferência que devem ao vosso mérito, que lhe outorgaram, e pela qual lhes deveis, por vossa vez, uma espécie de reconhecimento. Soube com viva satisfação quanta doçura e condescendência combinais com a gravidade conveniente aos ministros das leis; quanto lhes retribuís em estima e atenção o que vos devem de obediência e respeito; conduta cheia de justiça e de sabedoria, própria para afastar cada vez mais a memória dos acontecimentos infelizes que é preciso esquecer para não mais os rever; conduta tanto mais judiciosa, quanto esse povo eqüitativo e generoso transforma em prazer o seu dever, quanto gosta naturalmente de vos honrar e quanto os mais ardentes em sustentar os seus direitos são os mais inclinados a respeitar os vossos.

Não é de admirar que os chefes de uma sociedade civil amem a glória e a felicidade; mas, bem admirável é, para o repouso dos homens, que os que se consideram magistrados, ou antes, senhores de uma pátria mais santa e mais sublime testemunhem algum amor à pátria terrestre que os nutre. Quanto me é doce poder fazer em nosso favor uma exceção tão rara, e colocar na ordem dos nossos melhores cidadãos esses zelosos depositários dos dogmas sagrados autorizados pelas leis, esses veneráveis pastores das almas, cuja viva e doce eloquência leva tanto mais aos corações as máximas do Evangelho quanto começam sempre por praticá-las eles próprios! Toda a gente sabe com que sucesso a grande arte do púlpito é cultivada em Genebra. Mas, muito acostumados a ouvir falar de uma maneira e a fazer de outra, poucos sabem até que ponto o espírito do cristianismo, a santidade dos costumes, a severidade para consigo mesmo e a doçura para com os outros reinam no corpo dos nossos ministros. É possível que somente à cidade de Genebra seja dado patentear o exemplo edificante de tão perfeita união entre uma sociedade de teólogos e de homens de letras; é em grande, parte sobre a sua sabedoria e a sua moderação reconhecidas, sobre o seu zelo pela prosperidade do Estado, que eu fundo a esperança da sua eterna tranqüilidade; e noto, com um prazer misturado de espanto e respeito, o seu horror às máximas execráveis desses homens sagrados e bárbaros cuja história fornece mais de um exemplo e que, para sustentar os pretensos direitos de Deus, isto é, os seus interesses, eram tanto mais ávidos de sangue humano quanto, se gabavam de que o seu seria sempre respeitado.

Poderia eu esquecer essa preciosa metade da república que faz a felicidade da outra, e cuja doçura e sabedoria aí mantêm a paz e os bons costumes? Amáveis e virtuosas cidadãs, a sorte do vosso sexo será sempre governar o nosso. Feliz quando o vosso casto pode; exercido apenas na união conjugal, só se fizer sentir para a glória do Estado e a felicidade pública! Assim é que as mulheres mandavam em Esparta, e assim é que mereceis mandar em Genebra.

Que homem bárbaro poderia resistir à voz da honra e da razão na boca de uma terna esposa? e quem não desprezaria um luxo vão, ao ver o vosso traje simples e modesto, que, pelo brilho que de vós recebe, parece ser o mais favorável à beleza? Cabe-vos manter sempre, por vosso amável e inocente império, e por vosso espírito insinuante, o amor às leis no Estado e a concórdia entre os cidadãos; reunir, por meio de felizes casamentos, as famílias divididas, e principalmente corrigir, pela persuasiva doçura das vossas lições e pelas graças modestas da vossa convivência as extravagâncias que os nossos jovens vão buscar em outros países, de onde, em vez de tantas coisas úteis que poderiam aproveitar, só trazem, num tom pueril e com ares ridículos aprendidos entre as mulheres perdidas, a admiração a não ser que pretensas grandezas, frívolas compensações da servidão, que jamais valerão a augusta liberdade. Sede, pois, sempre o que sois, castas guardiãs dos costumes e doces liames da paz; e continuai a fazer valer, em todas as ocasiões, os direitos do coração e da natureza em proveito do dever e da virtude.

Orgulho-me de não ser desmentido pelos acontecimentos, fundando sobre tais fiadores a esperança da felicidade comum dos cidadãos e da glória da república. Confesso que, com todas essas vantagens, ela não brilhará com esse brilho que deslumbra a maior parte dos olhos, cujo pueril e funesto gosto é o mais mortal inimigo da felicidade e da liberdade. Que uma mocidade dissoluta vá procurar alhures prazeres fáceis e longos arrependimentos; que a pretensa gente de gosto admire em outros lugares a grandeza dos palácios, a beleza das equipagens, os soberbos mobiliários, a pompa dos espetáculos, e todos os refinamentos da moleza e do luxo; em Genebra, só se encontrarão homens; mas, contudo, um tal espetáculo tem bem o seu preço, e aqueles que o procurarem valerão bem os admiradores do resto.

Dignai-vos, todos, MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES, receber, com a mesma bondade, os respeitosos testemunhos do interesse que tomo pela vossa prosperidade comum. Se eu fosse bastante infeliz para ser acusado de algum transporte indiscreto nesta viva efusão do meu coração suplico-vos que o perdoeis à terna afeição de um verdadeiro patriota, e ao zelo ardente e legítimo de um homem que não almeja maior felicidade para si mesmo do que a de vos ver todos felizes. E sou, com o mais profundo respeito,

MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES,

Vosso humilíssimo e obedientíssimo servidor e concidadão,

J.-J. Rousseau

PREFÁCIO

O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos me parece ser o do homem(2); e ouso dizer que só a inscrição do templo de Delfos continha um preceito mais importante e mais difícil do que todos os grossos livros dos moralistas. Considero, igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens? e como chegará o homem a se ver tal como o formou a natureza, através de todas essas transformações que a sucessão dos tempos e das coisas teve de produzir na sua constituição original, e a separar o que está no seu próprio natural do que as circunstâncias e o progresso acrescentaram ou modificaram em seu estado primitivo? Semelhante à estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as tempestades tinham desfigurado tanto que se assemelhava menos a um deus do que a um animal feroz, a alma humana, alterada no seio da sociedade por mil causas sempre renascentes, pela aquisição de uma multidão de reconhecimentos e de erros, pelas mudanças verificadas na constituição dos corpos, e pelo choque contínuo das paixões, mudou por assim dizer de aparência, a ponto de ser quase irreconhecível, e nela só se encontra, em vez de um ser que age sempre por meio de princípios certos e invariáveis, em vez dessa celeste e majestosa simplicidade com a qual o seu autor a marcara, o disforme contraste da paixão que julga raciocinar e do entendimento em delírio.

O que há de mais cruel ainda é que, como todos os progressos da espécie humana a afastam sem cessar de seu estado primitivo, quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais nos privamos dos meios de adquirir o mais importante de todos, o qual consiste, num certo sentido, em que à força de estudar o homem é que nos tornamos incapazes de o conhecer.

É fácil ver que é nessas mudanças sucessivas da constituição humana que é preciso procurar a primeira origem das diferenças que distinguem os homens, os quais, de comum acordo, são naturalmente tão iguais entre si quanto o eram os animais de cada espécie antes de diversas causas físicas terem introduzido em alguns as variedades que notamos. Efetivamente, não é concebível que essas primeiras mudanças, por quaisquer meios que se tenham realizado, tenham alterado, ao mesmo tempo, e da mesma maneira, todos os indivíduos da espécie; mas, tendo uns se aperfeiçoado ou deteriorado e adquirido diversas qualidades, boas ou más, que não eram inerentes à sua natureza, permaneceram os outros mais tempo em seu estado original; e tal foi, entre os homens, a primeira fonte da desigualdade, mais fácil de demonstrar assim, em geral, do que assinalar com precisão as suas verdadeiras causas.

Que os meus leitores não imaginem, pois, que ouso me vangloriar de ter visto o que me parece tão difícil de ver. Comecei alguns raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na esperança de resolver a questão do que na intenção de a esclarecer e de a reduzir ao seu verdadeiro estado. Outros poderão facilmente ir mais longe no mesmo caminho, sem que seja fácil a ninguém chegar ao termo; porque não é empresa suave discernir o que há de originário e artificial na natureza atual do homem, e conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez não tenha existido, que provavelmente não existirá nunca, e do qual é, contudo, necessário ter noções justas, para bem julgar do nosso estado presente. Seria preciso mesmo que tivesse mais filosofia do que se pensa quem pretendesse determinar as precauções que tomar para fazer sobre este assunto sólidas observações; e uma boa solução do problema seguinte não me pareceria indigno dos Aristóteles e dos Plínio do nosso século: Que experiências seriam necessárias para chegar a conhecer o homem natural? e quais são os meios de fazer essas experiências no seio da sociedade? Longe de empreender resolver esse problema, creio ter meditado bem o assunto para ousar responder de antemão que os maiores filósofos não serão muito bons para dirigir essas experiências, nem os mais poderosos soberanos para as fazer; não é razoável esperar esse concurso, principalmente com a perseverança, ou antes, a sucessão de luzes e de boa-vontade necessária de ambas as partes para conseguir o sucesso.

Essas pesquisas tão difíceis de fazer, e nas quais pouco se tem pensado até aqui, são contudo os únicos meios que nos restam para afastar uma multidão de dificuldades que nos encobrem o conhecimento dos fundamentos reais da sociedade humana. É essa ignorância da natureza do homem que lança tanta incerteza e obscuridade sobre a verdadeira definição do direito natural: porque a idéia do direito, diz Burlamaqui, e mais ainda a do direito natural, são manifestamente idéias relativas à natureza do homem. É, pois, dessa mesma natureza do homem, continua ele, da sua constituição e do seu estado que é preciso deduzir os princípios dessa ciência.

Não é sem surpresa e sem escândalo que se nota o pouco acordo reinante sobre essa importante matéria entre os diversos autores que a têm estudado. Entre os mais graves escritores, mal se encontram dois com a mesma opinião sobre esse ponto. Sem falar dos antigos filósofos, que parece terem tomado a tarefa de se contradizer entre si sobre os princípios mais fundamentais, os jurisconsultos romanos submetem indiferentemente o homem e todos os outros animais à mesma lei natural, porque consideram de preferência, sob esse nome, a lei que a natureza se impõe a si mesma, em lugar da que prescreve, ou antes, por causa da acepção particular segundo a qual esses jurisconsultos entendem a palavra lei, que parece só terem tomado, nessa ocasião, como expressão das relações gerais estabelecidas pela natureza entre todos os seres animados, para a sua comum conservação. Os modernos, só reconhecendo sob o nome de lei uma regra prescrita a um ser moral, isto é, inteligente, livre e considerado nas suas relações com outros seres, limitam, conseqüentemente, ao único animal dotado de razão, isto é, ao homem, a competência da lei natural; mas, definindo essa lei, cada qual à sua moda, estabelecem-na todos sobre princípios tão metafísicos que há, mesmo entre nós, muito pouca gente capaz de compreender esses princípios, longe de os poder encontrar por si mesma. De sorte que todas as definições desses sábios homens, aliás em perpétua contradição entre si, concordam somente em que é impossível entender a lei da natureza e, por conseguinte, obedecer-lhe, sem ser um grande raciocinador e profundo metafísico: isso significa, precisamente, que os homens empregaram, para o estabelecimento da sociedade, luzes que só se desenvolvem, com muita dificuldade, e para muito pouca gente, no seio da própria sociedade. Conhecendo tão pouco a natureza, e harmonizando-se tão mal sobre o sentido da palavra lei, seria bem difícil encontrar uma boa definição da lei natural. Também todas as que se encontram nos livros, além do defeito de não serem uniformes, têm ainda o de serem tiradas de muitos conhecimentos que os homens naturalmente não têm, e das vantagens das quais só podem fazer uma idéia depois de terem saído do estado natural. Começa-se por investigar as regras pelas quais, para utilidade comum, seria bom que os homens concordassem entre si; e, depois, dá-se o nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra prova além do bem que se julga resultar de sua prática universal. Eis, seguramente, uma maneira muito cômoda de compor definições e de explicar a natureza das coisas por meio de convenções quase arbitrárias.

Mas, enquanto não conhecermos o homem natural, é inútil querermos determinar a lei que recebeu ou a que convém melhor à sua constituição. Tudo o que podemos ver muito claramente em relação a essa lei é que, para que seja lei, é preciso não só que a vontade daquele que ela obriga possa submeter-se a ela com conhecimento, mas ainda, para que seja natural, que ela fale imediatamente pela voz da natureza.

Deixando, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens tais como foram feitos, e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa ardentemente ao nosso bem-estar e à conservação de nós mesmos, e o outro nos inspira uma repugnância natural de ver morrer ou sofrer todo ser sensível, e principalmente os nossos semelhantes. Do concurso e da combinação que o nosso espírito é capaz de fazer desses dois princípios, sem que seja necessário acrescentar o da sociabilidade, é que me parecem decorrer todas as regras do direito natural; regras que a razão é, em seguida, forçada a restabelecer sobre outros fundamentos, quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega ao extremo de sufocar a natureza.

Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem; seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, exceto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro.

Esse mesmo estudo do homem original, de suas verdadeiras necessidades e dos princípios fundamentais dos seus deveres, é ainda o único bom meio que pode ser empregado para levantar essas multidões de dificuldades que se apresentam sobre a origem da desigualdade moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo político, sobre os direitos recíprocos dos seus membros e sobre mil outras questões semelhantes, tão importantes quanto mal esclarecidas.

Considerando a sociedade humana com visão tranqüila e desinteressada, ela parece, a princípio, só mostrar a violência dos homens poderosos e a opressão dos fracos: o espírito se revolta contra a dureza de uns ou é levado a deplorar a cegueira dos outros; e, como nada é menos estável entre os homens do que essas relações exteriores que o acaso produz mais freqüentemente do que a sabedoria, e que se chama fraqueza ou poder, riqueza ou pobreza, o que estabelecem os homens parece fundado, à primeira vista, sobre montículos de areia movediça: é só examinando-os de perto, só depois de haver tirado o pó e a areia que rodeiam o edifício, que se percebe a base inabalável sobre a qual foi elevado, e que se aprende a respeitar os seus fundamentos. Ora, sem o estudo sério do homem, de suas faculdades naturais e dos seus desenvolvimentos sucessivos, não se chegará nunca ao ponto de fazer essas distinções e de separar, na atual constituição das coisas, o que fez a vontade divina e o que a arte humana pretendeu fazer. As pesquisas políticas e morais, às quais dá lugar a importante, questão que examino, são, pois, úteis de todas as maneiras, e a história hipotética dos governos é para o homem uma lição instrutiva a todos os respeitos. Considerando o que teríamos sido abandonados a nós mesmos, devemos aprender a abençoar aquele cuja mão benfazeja, corrigindo as nossas instituições e dando-lhes uma situação inabalável, preveniu as desordens que deveriam resultar e fez nascer a nossa felicidade dos meios que parecia deverem cumular a nossa miséria.

Quem te Deus esse

Jussit, et humana qua parte locatus es in re,

Disce.

Persa, Sat., III, V. 74.

DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS

Non in depravatis, sed in his quoe bene secundum naturam se habent, considerandum est quid sit naturale

Aristóteles, Política, livro I, cap. II.

É do homem que tenho de falar; e a questão que examino me ensina que vou falar a homens; com efeito, não se propõem semelhantes questões quando se teme honrar a verdade. Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade perante os sábios que a tal me convidam, e não ficarei descontente comigo se me tornar digno do meu assunto e dos meus juizes.

Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo fazerem-se obedecer por eles.

Não se pode perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, porque a resposta se encontraria enunciada na simples definição da palavra. Ainda menos se pode procurar se haveria alguma ligação essencial entre as duas desigualdades, pois isso eqüivaleria a perguntar, por outras palavras, se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem, e se a força do corpo e do espírito, a sabedoria ou a virtude, se encontram sempre nos mesmos indivíduos em proporção do poder ou da riqueza: questão talvez boa para ser agitada entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres, que buscam a verdade.

De que, pois, se trata precisamente neste discurso? De marcar no progresso das coisas o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei; explicar por que encadeamento de prodígios o forte pode resolver-se a servir o fraco, e o povo a procurar um repouso em idéia pelo preço de uma felicidade real.

Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram a necessidade de remontar até ao estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou. Uns não vacilaram em supor no homem desse estado a noção do justo e do injusto, sem se inquietar de mostrar que ele devia ter essa noção, nem mesmo que ela lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando primeiro ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, fizeram logo nascer o governo, sem pensar no tempo que se devia ter escoado antes que o sentido das palavras autoridade e governo pudesse existir entre os homens. Enfim, todos, falando sem cessar de necessidade, de avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram ao estado de natureza idéias que tomaram na sociedade: falavam do homem selvagem e pintavam o homem civil. Não ocorreu mesmo ao espírito da maior parte dos nossos duvidar que o estado de natureza tivesse existido, quando é evidente, pela leitura dos livros sagrados, que o primeiro homem, tendo recebido imediatamente de Deus luzes e preceitos, não estava também nesse estado, e que, acrescentando aos escritos de Moisés a fé que lhes deve toda filosofia cristã, é preciso negar que, mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se encontrassem no puro estado de natureza, a menos que, não tenham nele caído de novo por algum acontecimento extraordinário: paradoxo muito embaraçante para ser defendido e absolutamente impossível de ser provado.

Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois não se ligam à questão. É preciso não considerar as pesquisas, nas quais se pode entrar sobre este assunto, como verdades históricas, mas, somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais próprios, para esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar a sua verdadeira origem, e semelhantes aos que todos os dias fazem os nossos físicos sobre a formação do mundo. A religião nos ordena a crer que o próprio Deus, tendo tirado os homens do estado de natureza imediatamente depois da criação, eles são desiguais porque ele quis que o fossem; proíbe-nos, porém, de formar conjecturas, tiradas somente da natureza do homem e dos seres que o rodeiam, sobre o que poderia ter acontecido ao gênero humano se tivesse ficado abandonado a si mesmo. Eis o que me perguntam e o que me proponho examinar neste discurso. Como o meu assunto interessa o homem em geral, procurarei uma linguagem que convenha a todas as nações; ou antes, esquecendo o tempo e os lugares, para só pensar nos homens a quem falo, suponho-me no liceu de Atenas, repetindo as lições dos meus mestres, tendo os Platão e os Xenócrates como juizes e o gênero humano como ouvinte.

Oh homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam as tuas opiniões, escuta: eis a tua história, tal como julguei lê-la, não nos livros dos teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza, que não mente nunca. Tudo o que partir dela será verdadeiro; de falso só haverá o que eu acrescentar de meu sem o querer. Os tempos de que vou falar são bem remotos: como estás diferente do que eras! É, por assim dizer, a vida de tua espécie que te vou descrever segundo as qualidades que recebeste, que tua educação e teus hábitos puderam depravar, mas que não puderam destruir. Há, eu o sinto, uma idade na qual o homem individual desejaria parar: tu procurarás a idade na qual desejarias que a tua espécie parasse. Descontente do teu estado presente pelas razões que anunciam à tua posteridade infeliz maiores descontentamentos ainda, talvez quisesses retrogradar; e esse sentimento deve constituir o elogio dos teus primeiros ancestrais, a crítica dos teus contemporâneos e o espanto dos que tiverem a desgraça de viver depois de ti.

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ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

Acrescentei algumas notas a esta obra, segundo o meu costume preguiçoso de trabalhar com interrupções. Essas notas, às vezes, se afastam muito do assunto, para que devam ser lidas com o texto. Transportei-as, pois, para o fim do Discurso, no qual procurei seguir, tanto quanto me foi possível, o caminho mais acertado. Os que tiverem coragem de recomeçar poderão divertir-se novamente embrenhando-se na mata e tentando percorrer as notas: quanto aos outros, pouco mal haverá em que de todo não as leiam.

NOTAS

(1) — Dedicatória. — Conta Heródoto que, após o assassínio do falso Esmerdis, os sete libertadores da Pérsia, estando reunidos para deliberar sobre a forma do governo que dariam ao Estado, Otanés opina fortemente pela república. Essa opinião era tanto mais extraordinária na boca de um sátrapa quanto, além da pretensão que ele podia ter ao império, os grandes temem mais do que a morte uma espécie de governo que os force a respeitar os homens. Otanés, como bem se pode crer, não foi ouvido; e, vendo que se ia proceder à eleição de um monarca, ele, que não queria obedecer nem mandar, cedeu voluntariamente aos outros concorrentes o seu direito à coroa, pedindo como única indenização que fosse livre e independente com sua posteridade, o que lhe foi concedido. Quando Heródoto não nos dissesse qual a restrição feita a esse privilégio, seria necessário supô-la. Do contrário, Otanés não reconhecendo nenhuma espécie de lei e não tendo que prestar contas a ninguém, teria sido poderoso no Estado e mais poderoso do que o próprio rei. Mas, não havia aparência de que um homem capaz de se contentar, em semelhante caso, com tal privilégio, fosse capaz de abusar dele. Com efeito, não se vê que esse direito tenha causado jamais a menor perturbação no reino, nem pelo sábio Otanés, nem por nenhum dos seus descendentes.

(2) — Prefácio. — Desde os meus primeiros passos, eu me apoio, confiante, em uma dessas autoridades respeitáveis para os filósofos, porque elas vêm de uma razão sólida e sublime que só eles sabem encontrar e sentir.

“Algum interesse que tenhamos em nos conhecer a nós mesmos, não sei se não conhecemos melhor tudo o que não somos. Providos pela natureza de órgãos unicamente destinados à nossa conservação, não os empregamos senão para receber as impressões estranhas: não procuramos senão nos expandir e existir fora do nós: demasiado ocupados em multiplicar as funções dos nossos sentidos e em aumentar a extensão exterior de nosso ser, raramente fazemos uso desse sentido interior que nos reduz às nossas verdadeiras dimensões, e que separa de nós tudo quanto não está em nós. Entretanto, desse sentido é que devemos servir-nos se queremos conhecer-nos; é o único pelo qual podemos julgar-nos. Mas, como dar a esse sentido sua atividade e toda a sua extensão? como desprender nossa alma, na qual ele reside, de todas as ilusões do nosso espírito? Perdemos o hábito de empregá-la, ficando ela sem exercício no meio do tumulto das nossas sensações corporais e consumindo-se pelo fogo das nossas paixões. O coração, o espírito, os. sentidos, tudo trabalhou contra ela.” (HIST. NAT., Da Natureza do Homem.)

(3) — Discurso. — As transformações que um longo hábito de caminhar sobre dois pés pode produzir na conformação do homem, as relações que ainda se observam entre os seus braços e as pernas anteriores dos quadrúpedes, e a indução tirada de sua maneira de andar, puderam fazer nascer dúvidas sobre a que nos devia ser mais natural. Todas as crianças começam a andar de quatro pés e têm necessidade do nosso exemplo e das nossas lições para aprender a se manter de pé. Há mesmo nações selvagens, tais como os hotentotes, que descuidam muito das crianças o as deixam caminhar com as mãos tanto tempo que depois têm muita dificuldade em se levantar. Assim também acontece com os filhos dos caraibas, nas Antilhas. Há diversos exemplos de homens quadrúpedes, e eu poderia citar, entre outros, o da criança que foi encontrada em 1344, perto de Hesse, onde havia sido nutrida por lobos, e que dizia depois, na corte do príncipe Henrique, que, se não fosse este, teria preferido voltar para junto deles a viver entre os homens. Adquirira de tal modo o hábito de andar como esses animais que foi preciso lhe amarrarem peças de maneira que a forçassem a se manter de pé e equilibrando-se nos dois pés. Aconteceu o mesmo com a criança que foi encontrada em 1694 nas florestas da Lituânia, e que vivia entre ursos. Não dava, diz Condillac, nenhum sinal de razão, caminhava com pés e mãos, não possuía nenhuma linguagem e formava sons que em nada se assemelhavam aos do homem. O pequeno selvagem de Hanovre, que foi conduzido há muitos anos para a corte da Inglaterra, teve todos os sofrimentos do mundo ao se sujeitar a caminhar sobre os dois pés; e encontraram-se, em 1719, dois outros selvagens nos Pireneus, que corriam pelas montanhas à maneira de quadrúpedes. Quanto ao que se poderia objetar, que é privar-se do uso das mãos do que tiramos tantas vantagens, além do exemplo dos macacos que nos mostra que a mão pode muito bem ser empregada das duas maneiras, isso provaria somente que o homem pode dar a seus membros um destino mais cômodo do que o da natureza, e não que a natureza destinou o homem a andar de modo diferente do que ensina.

Mas, há, ao que me parece, muito melhores razões para sustentar que o homem é um bípede. Primeiramente, quando alguém fizesse ver que ele podia primeiro ser conformado diferentemente do que o vemos e, entretanto, tornar-se finalmente o que é, isso não seria o bastante para se concluir que foi assim, porque, depois de haver mostrado a possibilidade dessas transformações, seria preciso ainda, antes de as admitir, mostrar ao menos a sua verossimilhança. De resto, se os braços do homem parecem ter podido servir-lhe de pernas quando necessário, é a única observação favorável a esse sistema, sobre um grande número de outras que lhe são contrárias. As principais são: que a maneira pela qual a cabeça do homem está ligada ao corpo, em vez de dirigir sua vista horizontalmente, como todos os outros animais e como ele mesmo caminhando de pé, teria, caminhando de quatro pés, os olhos diretamente fixados no chão, situação muito pouco favorável à conservação do indivíduo; que a cauda que lhe falta, e com a qual nada tem que fazer caminhando com dois pés, é útil aos quadrúpedes e nenhum deles é dela privado; que os seios da mulher, muito bem situados para um bípede, que carrega o filho nos braços, ficariam tão mal para um quadrúpede que nenhum os tem colocados dessa maneira; que a parte traseira, sendo de altura excessiva proporcionalmente às pernas da frente, o que faz que, caminhando de quatro pés, nos arrastemos sobre os joelhos, faria um animal mal proporcionado e caminhando pouco comodamente; que, se o homem pousasse os pés inteiramente como as mãos, teria nas pernas posteriores uma articulação menos do que os outros animais, a saber, a que une a cana à tíbia; e que, só pousando a ponta do pé, como sem dúvida seria constrangido a fazer, o tarso, sem falar da pluralidade dos ossos que o compõem, pareceria muito grosso para ficar no lugar da cana, e as suas articulações com o metatarso e a tíbia muito próximas para dar à perna humana, nessa situação, a mesma flexibilidade que têm as dos quadrúpedes. O exemplo das crianças, tomado numa idade em que as forças naturais ainda não estão desenvolvidas, nem os membros consolidados, nada conclui; eu gostaria também de dizer que os cães não estão destinados a caminhar, porque só se arrastam algumas semanas depois do nascimento. Os fatos particulares têm ainda pouca força contra a prática universal de todos os. homens, mesmo das nações que, não tendo tido nenhuma comunicação com as outras, nada tinham podido imitar delas. Uma criança abandonada em uma floresta antes do poder andar, e nutrida por qualquer animal, terá seguido o exemplo de sua nutriz, exercitando-se a caminhar do mesmo modo; o hábito lhe terá podido dar facilidades que não teve da natureza; e, assim como os manetas conseguem, à força de exercício, fazer com os pés tudo quanto fazemos com as mãos, ela conseguirá finalmente empregar as mãos em lugar dos pés.

(4) — Se, entre os meus leitores houvesse um físico bastante mau para me criar dificuldades sobre a suposição dessa fertilidade natural da terra, eu lhe responderia com a passagem seguinte:

“Como os vegetais tiram para a sua nutrição mais substâncias do ar e da água do que da terra, acontece que, apodrecendo, restituem à terra mais do que dela tiraram; aliás, uma floresta determina as águas da chuva detendo os vapores. Assim, em um bosque conservado muito tempo sem ser tocado, a camada de terra que serve para a vegetação aumentaria consideravelmente; mas, os animais, dando menos à terra do que tiram dela, e os homens, consumindo enorme quantidade de madeira e de plantas para o fogo e outros usos, resulta que a camada de terra vegetal de um país habitado deve sempre diminuir o tornar-se enfim como o terreno da Arábia Pétrea e como o de tantas províncias do Oriente, que é efetivamente o clima mais antigamente habitado, onde só se encontram sal e areia: porque o sal fixo das plantas e dos animais fica, ao passo que todas as outras partes se volatilizam.” (HIST. NAT, Provas da Teoria da Terra, art. 7.).

Pode-se acrescentar a isso a prova de fato pela quantidade de árvores e plantas de toda espécie de que estão cheias quase todas as ilhas desertas, descobertas nestes últimos séculos, e pelo que a história nos ensina das florestas imensas que foi preciso abater em toda a terra à medida que se povoou e foi policiada Sobre isso, farei ainda as três observações seguintes: a primeira é que, se há uma espécie de vegetais que possam compensar o desperdício de matéria vegetal que fazem os animais, segundo o raciocínio de Buffon, são principalmente os bosques, cujas copas e folhas reúnem e possuem mais águas e vapores do que as outras plantas; a segunda é que a destruição do solo, isto é, a perda da substância própria à vegetação, deve acelerar-se à proporção que a terra é mais cultivada, e que os habitantes mais industriosos consomem em maior abundância as suas produções de toda espécie; e a terceira e mais importante observação é que os frutos das árvores fornecem ao animal uma nutrição mais abundante do que os outros vegetais. A experiência foi feita por mim mesmo, ao comparar os produtos de dois terrenos iguais em grandeza e qualidade, um coberto de castanheiros e outro semeado de trigo.

(5) — Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais universais das espécies vorazes se tiram, uma da forma dos dentes; e a outra da conformação dos intestinos. Os animais que vivem exclusivamente de vegetais têm todos os dentes chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro, a lebre; mas, os vorazes os têm pontudos, como o gato, o cão, o lobo, a raposa. E, quanto aos intestinos, os frugívoros têm alguns, assim como o cólon, que não se encontram nos animais vorazes. Parece, pois, que o homem, tendo os dentes e os intestinos como os têm os animais frugívoros, deveria naturalmente ser incluído nessa classe; e não somente as observações anatômicas confirmam essa opinião, mas os monumentos da antigüidade lhe são ainda mais favoráveis. “Dicearco, diz São Jerônimo, refere, nos seus livros das antigüidades gregas, que, sob o reino de Saturno, em que a terra era ainda fértil, por si mesma, nenhum homem comia carne, mas viviam todos de frutas e legumes que cresciam naturalmente.” (Liv. II, adv. Jovinian.) Essa opinião pode apoiar-se ainda nas narrativas de muitos viajantes modernos. François Corréal testemunha, entre outros, que a maior parte dos habitantes das Lucaias, que os espanhóis transportaram para as ilhas de Cuba, de São Domingos e alhures, morreram por haver comido carne. Por aí se pode ver que negligencio muitas vantagens que poderia fazer valer. Porque, sendo a presa quase o único motivo de combate entre os animais carniceiros, e vivendo os frugívoros entre eles em uma paz contínua, se a espécie humana fosse deste último gênero, claro que teria tido muito mais facilidade de subsistir no estado do natureza, e muito menos necessidade e ocasião de sair dele.

(6) — Todos os conhecimentos que pedem reflexão, todos os que só se adquirem com o encadeamento das idéias e só se aperfeiçoam sucessivamente, parecem estar inteiramente fora do alcance do homem selvagem, pela falta de comunicação com os seus semelhantes, isto é, por falta do instrumento que serve para essa comunicação e das necessidades que a tornam necessária. Seu saber e sua indústria se limitam a saltar, correr, bater-se, lançar uma pedra, subir em uma árvore. Mas, se só sabe essas coisas, em compensação as sabe muito melhor do que nós, que não temos a mesma necessidade dela que ele. E, como dependem unicamente do exercício do corpo, não sendo suscetíveis de nenhuma comunicação nem de nenhum progresso de um indivíduo para outro, o primeiro homem pode ser nisso tão hábil quanto os seus descendentes.

As narrativas dos viajantes estão cheias de exemplos da força e do vigor dos homens nas nações bárbaras e selvagens; não gabam menos sua destreza e agilidade; e, como basta ter olhos para observar essas coisas, nada impede que nos mereça fé o que é certificado por testemunhas oculares. Tiro, ao acaso, alguns exemplos dos primeiros livros que me vêm às mãos.

“Os hotentotes, diz Kolben, conhecem melhor a pesca do que os europeus do Cabo. Sua habilidade é igual na rede, no anzol e no dardo, nas enseadas como nos rios. Não apanham menos habilmente o peixe com a mão. São de destreza incomparável para nadar. Sua maneira de nadar tem qualquer coisa de surpreendente e que lhes é totalmente própria. Nadam com o corpo direito e as mãos estendidas para fora d’água, de sorte que parecem andar na terra. Na maior agitação do mar e quando as ondas formam montanhas, eles dançam de certo modo sobre o dorso das vagas, subindo e descendo como um pedaço de cortiça.” “Os hotentotes, diz ainda, o mesmo autor, são de uma destreza surpreendente na caça, e a ligeireza de sua carreira ultrapassa a imaginação.” Admira que não façam mais freqüentemente um mau uso de sua agilidade, o que contudo acontece algumas vezes, como se pode julgar pelo exemplo que dá.

“Um marinheiro holandês, desembarcando no Cabo, encarregou, diz ele, um hotentote de o acompanhar à cidade com um rolo de tabaco de cerca de vinte libras. Quando os dois estavam a alguma distância da multidão, o hotentote perguntou ao marinheiro se ele sabia correr. “Correr? — responde o holandês, — sim, e muito bem..” — “Vejamos”, respondeu o africano, e, fugindo, com o tabaco, desapareceu quase imediatamente. O marinheiro, confundido com essa maravilhosa rapidez, nem pensou em segui-lo, e nunca mais viu o tabaco nem o seu portador.

Têm eles a vista tão pronta e a mão tão certa que os europeus nem se aproximam. A cem passos, acertam, com uma pedrada, num alvo do tamanho de meio soldo. E o que há de mais espantoso é que, em vez de fixar como nós os olhos no alvo, fazem movimentos e contorções contínuas. Parece que sua pedra é arremessada por uma. mão invisível.”

O padre Du Tertre diz, sobre os selvagens das Antilhas, mais ou menos as mesmas coisas que se acabam de ler sobre os hotentotes do Cabo da Boa Esperança. Exalta, sobretudo, a sua precisão em atirar com suas flechas em pássaros voando e em peixes na água, que agarram, em seguida, mergulhando. Os selvagens da América setentrional não são menos célebres pela força e destreza, e eis um exemplo que poderá servir para avaliar a dos índios da América meridional.

No ano de 1746, um índio de Buenos Aires, tendo sido condenado às galés em Cádiz, propôs ao governo resgatar sua liberdade expondo a vida em uma festa pública. Prometeu que atacaria sozinho o mais furioso touro sem outra arma nas mãos além de uma corda, e que o derrubaria, o seguraria com a corda pela parte que fosse indicada, o selaria, por-lhe-ia freio, montaria nele e combateria, montado, dois outros touros dos mais furiosos tirados do touril, matá-los-ia um após outro no instante que isso lhe fosse ordenado e sem o auxílio de ninguém. Foi atendido. O índio cumpriu a palavra e saiu-se bem em tudo quanto havia prometido. sobre a maneira como se portou e detalhes do combate, pode-se consultar o primeiro tomo in-12 das Observações sobre a História Natural, de Gautier, de onde esse fato foi tirado, pag. 262.

(7) — “A duração da vida dos cavalos, diz Buffon, é, como em todas as outras espécies de animais, proporcional à duração do tempo do seu crescimento. O homem, que leva catorze anos a crescer, pode viver seis ou sete vezes esse tempo, isto é, noventa ou cem anos, O cavalo, cujo crescimento se faz em quatro anos, pode viver seis ou sete vezes tanto, isto é, vinte e cinco ou trinta anos. Os exemplos que poderiam ser contrários a essa regra são tão raros que não devem mesmo ser olhados como exceção de onde se possam tirar conclusões; e, como os grandes cavalos crescem mais depressa do que os pequenos, vivem também menos tempo, e ficam velhos com quinze anos.” (HISTÓRIA NATURAL, Do Cavalo.)

(8) — Entre os animais carnívoros e os frugívoros, creio ver outra diferença ainda mais geral do que a que referi na nota 5, pois se estende também aos pássaros. Essa diferença consiste no número dos filhos, que não excede nunca de dois de cada vez para as espécies que não vivem senão de vegetais, e que ordinariamente ultrapassa esse número nos animais vorazes. É fácil conhecer, a esse respeito, o destino da natureza pelo número das maminhas, duas em cada fêmea da primeira espécie, como o jumento, a vaca, a cabra, a corça, a ovelha, etc., e que é sempre de seis ou de oito nas outras fêmeas, como a cadela, a gata, a loba, a onça, etc. A galinha, a gansa, a pata, que são todos animais vorazes, assim como a águia, o gavião, o mocho, põem também e chocam grande número de ovos, o que não acontece jamais com a pomba, a rola, nem com os pássaros que só comem grãos, os quais não põem nem chocam mais de dois ovos de cada vez. A razão que se pode dar a essa diferença é que os animais que só vivem de ervas e plantas estão quase o dia todo pastando, e, sendo forçados a empregar muito tempo a se nutrir, não dariam conta da nutrição dos seus filhotes, ao passo que os vorazes, fazendo seu repasto quase em um instante, podem mais facilmente e mais vezes ver os filhos e ir à caça, e reparar o gasto de uma grande quantidade de leite. A respeito de tudo isso, haveria muitas observações particulares e reflexões que fazer, mas não há aqui lugar para isso e me basta haver mostrado, nesta pequena parte, o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão de tirar o homem da classe dos carnívoros e de o colocar entre as espécies frugívoras.

(9) — Um autor célebre, calculando os bens e os males da vida humana, e comparando as duas somas, achou que a última ultrapassa muito a primeira, e que tomando o conjunto, a vida era para o homem um péssimo presente. Não fiquei surpreendido com a conclusão; ele tirou todos os seus raciocínios da constituição do homem civilizado. Se subisse até ao homem natural, pode-se julgar que encontraria resultados muito diferentes; porque perceberia que o homem só tem os males que se criou para si mesmo, o que à natureza se faria justiça. Não foi fácil chegarmos a ser tão desgraçados. Quando, de um lado, consideramos o imenso trabalho dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas forças empregadas, abismos entulhados, montanhas arrasadas, rochedos quebrados, rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos cavados, pantanais dissecados, construções enormes elevadas sobre a terra, o mar coberto de navios e marinheiros, e quando, olhando do outro lado, procuramos, meditando um pouco as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, só podemos nos impressionar com a espantosa desproporção que reina entre essas coisas, e deplorar a cegueira do homem, que, para nutrir seu orgulho louco, não sei que vã admiração de si mesmo, o faz correr ardorosamente para todas as misérias de que é suscetível e que a benfazeja natureza havia tomado cuidado em afastar dele.

Os homens são maus, uma triste e contínua experiência dispensa a prova; entretanto, o homem é naturalmente bom, creio havê-lo demonstrado. Que será, pois, que o pode ter depravado a esse ponto, senão as mudanças sobrevindas na sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Que se admire quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela conduz necessariamente os homens a se odiar entre si à proporção do crescimento dos seus interesses, a se retribuir mutuamente serviços aparentes, e a se fazer efetivamente todos os males imagináveis. Que se pode pensar de um comércio em que a razão de cada particular lhe dita máximas diretamente contrárias àquelas que a razão pública prega ao corpo da sociedade, e em que cada um tira os seus lucros da desgraça do outro? Não há, talvez, um homem abastado ao qual os seus herdeiros ávidos, e muitas vezes seus próprios filhos, não desejem a morte, secretamente. Não há um navio no mar cujo naufrágio não constituísse uma boa notícia para algum negociante; uma só casa que um devedor de má fé não quisesse ver queimada com todos os documentos; um só povo que não se regozijasse com os desastres dos vizinhos. É assim que tiramos vantagens do prejuízo dos nossos semelhantes, e que a perda de um faz quase sempre a prosperidade do outro. Mas, o que há de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas são a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares: uns querem as moléstias, outros, a mortalidade; outros, a guerra; outros, a fome. Vi homens horrorizados chorando de dor ante as aparências de um ano fértil; e o grande e funesto incêndio de Londres, que custou a vida e os bens a tantos desgraçados, fez a fortuna de mais de dez mil pessoas.

Sei que Montaigne lastima o ateniense Dêmades por ter feito punir um operário que, vendendo muito caro os caixões, ganhava muito com a morte dos cidadãos; mas, sendo a razão que Montaigne alega a de que seria preciso punir toda a gente, é evidente que confirma as minhas. Que se penetre, pois, através de nossas frívolas demonstrações de benevolência, no que se passa no fundo dos corações, e que se reflita no que deve ser um estado de coisas em que todos os homens são forçados a se acariciar e a se destruir mutuamente, e em que nascem inimigos por dever e velhacos por interesse. Se me respondem que a sociedade é assim constituída, que cada homem ganha em servir aos outros, replicarei que isso estaria muito bem se não ganhasse ainda mais para prejudicá-lo. Não há proveito tão legítimo que não seja ultrapassado pelo que se pode fazer ilegítimo, e o mal feito pelo próximo é sempre mais lucrativo que os serviços. Não se trata, pois, senão de achar os meios de assegurar a impunidade, e é para isso que os poderosos empregam todas as suas forças, e os fracos toda a sua astúcia.

O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar seu alimento, não chega nunca ao extremo sem ter antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar sua subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate, ele termina por alguns socos. O vencedor come o vencido vai procurar fortuna noutra parte, e tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente; trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm as delícias, depois as imensas riquezas, e depois súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais original é que, quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades, depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos homens, meu herói acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.

Comparai, sem preconceitos, o estado do homem civilizado com o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como além da sua maldade, suas necessidades e suas misérias, o primeiro abriu novas portas à miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos desolam, os trabalhos excessivos de que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de necessidades e outros de excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua perniciosa condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas, nas velhacarias dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno do vasilhame no qual são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos, nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas de nossas casas para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem precauções, e todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de terra que, consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os habitantes aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas acumulam continuamente sobre nossas cabeças, sentireis como a natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.

Não repetirei aqui o que já disse da guerra em páginas anteriores. Mas, desejaria que as pessoas instruídas quisessem ou ousassem dar em público os detalhes dos horrores cometidos, nos exércitos, pelos empresários dos víveres e dos hospitais: veríamos que suas manobras, não muito secretas, pelas quais os mais brilhantes exércitos se fundem em menos do que nada, fazem morrer mais soldados do que os ceifa o ferro inimigo. E ainda um cálculo não menos espantoso o dos homens que o mar engole todos os anos, pela fome, pelo escorbuto, pelos piratas, pelo fogo, pelos naufrágios. É claro que também é preciso assinalar por conta da propriedade estabelecida, o como conseqüência da sociedade, os assassínios, os envenenamentos, os roubos avultados, as próprias punições desses crimes, punições necessárias para prevenir maiores males, porém que, pelo assassínio do um homem, custando a vida a dois ou mais, não deixam de dobrar realmente a perda da espécie humana. Quantos meios vergonhosos de impedir o nascimento dos homens e de enganar a natureza: ou por esse gosto brutal e depravado que insulta a sua mais encantadora obra, gosto que os selvagens e os animais jamais conheceram, e que só nasce nos países policiados e da imaginação corrompida; ou por meio de abortos secretos, dignos frutos do deboche e da honra viciosa; ou pela exposição ou o assassínio de uma multidão de crianças, vítimas da miséria dos pais, ou. da vergonha bárbara das mães; ou, enfim, pela mutilação desses desgraçados, dos quais uma parte da existência e toda a posteridade são sacrificadas a vãs canções, ou, o que é ainda pior, ao brutal ciúme de alguns homens, mutilação que, neste último caso, ultraja duplamente a natureza, pelo tratamento que recebem aqueles que a suportam e pelo uso a que são destinados!.

Mas, não há milhares de casos mais freqüentes e mais perigosos ainda, em que os direitos paternos ofendem abertamente a humanidade? Quantos talentos enterrados e inclinações forçadas pelo imprudente constrangimento dos pais! quantos homens ter-se-iam distinguido em um estado apropriado, que morrem desgraçados e desonrados em outro estado para o qual não tinham nenhuma aptidão nem gosto! quantos casamentos felizes, mas desiguais foram rompidos ou perturbados, e quantas esposas castas desonradas, por essa ordem de condições sempre em contradição com a da natureza! quantas outras uniões esquisitas formadas pelo interesse e desaprovadas pelo amor e pela razão! quantos esposos honestos e virtuosos mutuamente se proporcionam suplícios por se terem escolhido mal! Quantas jovens e desgraçadas vítimas da avareza dos pais mergulham no vício ou passam seus tristes dias chorando e gemendo dentro desses laços indissolúveis, que o coração repele e só o ouro formou! Felizes aqueles cuja coragem e virtude os arrebatam à vida, antes que uma violência bárbara os force a passar ao crime ou ao desespero! Perdoai-me, pai e mãe para sempre deploráveis: com pesar aumento vossas dores; mas, possam elas servir de exemplo eterno e terrível a quem quer que ouse, em nome mesmo da natureza, violar o mais sagrado dos seus direitos!

Se não falei senão desses nós mal formados que são a obra da nossa polícia, pensa-se que aqueles a que o amor e a simpatia presidiram estejam isentos de inconvenientes? E se eu empreendesse mostrar a espécie humana atacada na sua própria fonte, e até no mais sagrado de todos os laços, em que não se ousa mais escutar a natureza senão depois de haver ouvido a fortuna, e em que, a desordem civil confundindo as virtudes o os vícios, a continência se torna uma precaução criminosa, e a recusa de dar a vida a seu semelhante um ato de humanidade! Mas, sem despedaçar o véu que cobre tantos horrores, contentemo-nos de indicar o mal ao qual outros devem trazer remédio.

Que se acrescente a tudo isso essa quantidade da ofícios malsãos que abreviam os dias e destroem o temperamento, tais como os trabalhos das minas, as diversas preparações dos metais, dos minerais, principalmente do chumbo, do cobre, do mercúrio, do cobalto, do arsênico, do rosalgar; esses outros ofícios perigosos que todos os dias custam a vida de uma porção de operários, uns entelhadores, outros carpinteiros, outros pedreiros, outros trabalhadores de pedreira; que se reunam, repito, todos esses objetos, e se poderão ver, no estabelecimento e perfeição das sociedades, as razões da diminuição da espécie, observada por mais de um filósofo.

O luxo, impossível de prevenir entre os homens ávidos de suas próprias comodidades e da consideração dos outros, acaba logo o mal que as sociedades começaram; e, sob o pretexto de fazer viver os pobres, o que não era preciso, empobrece todo o resto e despovoa o Estado, cedo ou tarde.

O luxo é um remédio muito pior do que o mal que pretende curar; ou antes, é ele mesmo o pior dos males, em qualquer Estado, grande ou pequeno, e que, para nutrir as multidões de criados e de miseráveis que fez, acabrunha e arruina o trabalhador e o cidadão: como esses ventos escaldantes do sul que, cobrindo as ervas e verduras de insetos devoradores, tiram a subsistência dos animais úteis e levam a fome e a morte a todos os lugares em que se fazem sentir.

Da sociedade e do luxo que ela engendra, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras, e todas essas inutilidades que fazem florescer a indústria, enriquecem e perdem os Estados. A razão desse deperecimento é muito simples. É fácil ver que, pela sua natureza, a agricultura deve ser a menos lucrativa de todas as artes, porque, sendo o seu produto de uso mais indispensável para todos os homens, o preço deve estar proporcionado às faculdades dos mais pobres. Do mesmo princípio pode-se tirar a regra de que, em geral, as artes são lucrativas na razão inversa da sua utilidade, e de que as mais necessárias, finalmente, devem tornar-se as mais negligenciadas. Por ai se vê o que se deve pensar das verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta dos seus progressos. Tais são as causas sensíveis de todas as misérias em que a opulência precipita, finalmente, as nações mais admiradas. À medida que a indústria e as artes se estendem e florescem, o cultivador desprezado, carregado de impostos necessários à manutenção do luxo, e condenado a passar a vida entre o trabalho e a fome, abandona o campo para ir procurar na cidade o pão que devia levar para lá. Quanto mais as capitais impressionam de admiração os olhos estúpidos do povo, tanto mais seria preciso lastimar o abandono dos campos, as terras incultas e as estradas cheias de cidadãos desgraçados transformados em mendigos ou ladrões, e destinados um dia a acabar a sua miséria pelos caminhos ou sobre um monte de esterco. É assim que o Estado se enriquece por um lado, e se enfraquece e se despovoa, por outro, e que as mais poderosas monarquias, após muitos trabalhos para se tornarem opulentas e desertas, acabam por se tornar a presa de nações pobres que sucumbem à funesta tentação de as invadir, e que são invadidas e enfraquecem por sua vez, até que elas mesmas sejam invadidas e destruídas por outras.

Que se dignem explicar-nos o que teria podido produzir essas nuvens de bárbaros que, durante tantos séculos, inundaram a Europa, a Ásia e a África. Seria à industria de suas artes, à excelência do sua polícia, que deviam essa prodigiosa população? Que os nossos sábios nos digam porque, longe de ir a tal ponto, esses homens ferozes, brutais, sem luzes, sem freio, sem educação, não se estrangulavam todos a cada instante, para disputar o alimento ou a caça. Que nos expliquem como esses miseráveis tiveram somente a ousadia de olhar em face tão hábeis pessoas como somos, com tão bela disciplina militar, tão belos códigos e tão sábias leis. Enfim, porque, depois que a sociedade se aperfeiçoou nos países do Norte e se teve tanto trabalho para ensinar aos homens seus deveres mútuos e a arte de viver agradável e pacificamente em conjunto, não se vê mais nada sair de semelhante a essas multidões de homens que produziam outrora. Receio muito que alguém se lembre, por fim, de me responder que todas essas grandes coisas, a saber, as artes, as ciências e as leis, foram muito sabiamente inventadas pelos homens como uma peste salutar para prevenir a excessiva multiplicação da espécie, com medo de que este mundo acabasse se tornando muito pequeno para os seus habitantes.

Pois bem! será preciso destruir as sociedades, aniquilar o teu e o meu, e voltar a viver nas florestas com os ursos? conseqüência à maneira dos meus adversários, que prefiro prevenir a lhes deixar a vergonha de a concluir. Oh vós, para quem a voz celeste não se fez ouvir, e que não reconheceis para vossa espécie outro destino senão o de acabar em paz esta curta vida; vós, que podeis deixar no meio das cidades vossas funestas aquisições, vossos espíritos inquietos, vossos corações corrompidos e vossos desejos desenfreados, retomai, pois que depende de vós, vossa antiga e primeira inocência; ide para os bosques perder a vista e a memória dos crimes dos vossos contemporâneos, e não receeis aviltar vossa espécie renunciando às suas luzes para renunciar aos seus vícios.

Quanto aos homens semelhantes a mim, cujas paixões destruíram para sempre a original simplicidade, que não podem mais nutrir-se de ervas e de sementes, nem passar sem leis e sem chefes; àqueles que foram honrados em seu primeiro pai com lições sobrenaturais; àqueles que hão de ver, na intenção de dar primeiro às ações humanas uma moralidade que não tivessem adquirido de há muito, a razão do um preceito indiferente por si mesmo e inexplicável em qualquer outro sistema; àqueles, eis uma palavra, que estão convencidos de que a voz divina chamou todo o gênero humano para as luzes o para a felicidade das celestes inteligências, — todos esses tratarão de merecer, pelo exercício das virtudes que se obrigar, a praticar aprendendo a conhecê-las, o prêmio eterno que devem esperar; respeitarão os sagrados laços das sociedades, de que são membros; amarão seus semelhantes e os servirão com todo o seu poder; obedecerão escrupulosamente às leis e aos homens, que são os seus autores e ministros; honrarão principalmente os bons e sábios príncipes que saberão prevenir, curar ou fazer desaparecer essa multidão de abusos e de males sempre prestes a nos acabrunhar; animarão o zelo desses chefes dignos, mostrando-lhes sem temor e sem adulação a grandeza de sua tarefa e o rigor do seu dever; mas, não desprezarão menos uma constituição que não se pode manter senão com o auxílio de tanta gente respeitável que em geral se deseja mais do que se obtém, e da qual, apesar de tantos esforços, nascem sempre mais calamidades reais do que vantagens aparentes.

(10) — Entre os homens que conhecemos, ou por nós mesmos, ou pelos historiadores, ou pelos viajantes, uns são negros, outros brancos, outros vermelhos; uns têm cabelos longos, outros apenas uma lã frisada; uns são quase completamente peludos, outros nem mesmo têm barba. Houve, e há ainda, talvez, nações de homens de altura gigantesca; e, pondo do parte a fábula dos pigmeus, que bem pode não passar de exagero, sabe-se que os lapões, e principalmente os groenlandeses, estão muito abaixo do talhe médio dos homens. Pretende-se mesmo que há povos inteiros com caudas, como os quadrúpedes. E, sem acreditar cegamente nas narrativas de Heródoto e de Ctésias, pode-se pelo menos deduzir a opinião muito verossímil de que, se se tivessem podido fazer boas observações nos velhos tempos em que os diversos povos seguiram maneiras de viver mais diferentes entre si do que hoje, ter-se-iam também notado, no rosto e na compleição do corpo, variedades muito mais impressionantes. Todos esses fatos, de que é fácil fornecer provas incontestáveis, só podem surpreender os que estão acostumados a olhar somente os objetos que os rodeiam, ignorando os poderosos efeitos da diversidade dos climas, do ar, dos elementos, da maneira de viver, dos hábitos em geral, e principalmente a força espantosa das mesmas causas, quando atuam continuamente sobre longas séries de gerações. Hoje, que o comércio, as viagens e as conquistas reúnem mais os diversos povos, e que suas maneiras de viver se aproximam sem cessar pela freqüente comunicação, percebe-se que certas diferenças nacionais diminuíram; e, por exemplo, cada qual pode observar que os franceses de hoje não são mais aqueles grandes corpos brancos e louros descritos pelos historiadores latinos, embora o tempo, com a fusão dos francos e normandos, brancos e louros, também devesse restabelecer o que a frequentação dos romanos tivesse podido tirar à influência do clima, na constituição natural e cor dos habitantes. Todas essas observações, sobre as variedades que milhares de causas podem produzir e efetivamente produziram na espécie humana, me fazem duvidar se diversos animais semelhantes aos homens, que os viajantes sem mais exame tomaram como animais, ou por causa de algumas diferenças que haviam notado na conformação exterior, ou somente porque esses animais não falavam, não seriam de fato verdadeiros homens selvagens, cuja raça, dispersa remotamente nos bosques, não tivera ocasião de desenvolver nenhuma de suas faculdades virtuais, nem adquirira nenhum grau de perfeição, achando-se ainda no estado primitivo de natureza. Demos um exemplo do que quero dizer.

“Encontra-se, diz o tradutor da Histórias das Viagens, no vêem-se duas espécies de monstros, sendo os maiores chamados orangotangos nas Índias orientais, que constituem como que o meio termo entre a espécie humana e os babuínos. Battel conta que, nas florestas de Maiomba, no reino de Loango, vêem-se duas espécies de monstros, sendo os maiores chamados pongos e os outros enjocos. Os primeiros assemelham-se exatamente ao homem, mas são muito mais corpulentos e de talhe muito alto. Com rosto humano, têm olhos muito fundos. As mãos, faces e orelhas não têm pêlo, à exceção das sobrancelhas, que a têm muito longas. Embora tenham o resto do corpo muito peludo, o pêlo não é muito espesso, e sua cor é castanha. Enfim, a única parte que os distingue dos homens é a perna, que não tem barriga. Andam direitos, segurando com a mão o pêlo do pescoço; seu esconderijo é nos bosques; dormem acima das árvores e fazem para si uma espécie de teto que os resguarda da chuva. Alimentam-se de frutas e nozes silvestres. Jamais comem carne. Os negros que atravessam as florestas costumam acender fogos durante a noite; notam que de manhã, quando partem, os pongos tomam-lhes o lugar em torno do fogo, só se retirando quando o fogo se extingue; porque, embora tenham muita habilidade, não têm bastante senso para o entreter pondo nele a lenha.

“Andam algumas vezes em rebanho, e matam os negros que atravessam as florestas. Atacam até os elefantes que vão pastar nos lugares por eles habitados, e os maltratam tanto com murros e pauladas que os forçam a fugir soltando gritos. Jamais se pegam pongos vivos, porque são tão robustos que dez homens não seriam bastantes para os segurar: mas, os negros apanham muitos dos mais novos, depois de matar-lhes a mãe, ao corpo da qual o menorzinho se agarra fortemente. Quando um desses animais morre, os outros lhe cobrem o corpo com uma porção do ramos e folhagens. Purchase acrescenta que, conversando com Battel, dele soubera que um pongo lhe roubara um negrinho, o qual passou um mês inteiro na sociedade desses animais; porque não fazem nenhum mal aos homens que surpreendem, pelo menos quando estes não os olham, como o negrinho observou. Battel não descreveu a segunda espécie de monstros.

“Drapper confirma que o reino do Congo está cheio desses animais conhecidos nas Índias pelo nome de orangotangos, isto é, habitantes dos bosques, o que os africanos chamam de quojas morros. Esse animal, diz ele, é tão semelhante ao homem que alguns viajantes se convenceram de que poderia ser filho de uma mulher e de um macaco: quimera que os próprios negros rejeitam. Um desses animais foi transportado do Congo para a Holanda e apresentado ao príncipe de Orange, Frederico Henrique. Era da altura de uma criança de três anos, de gordura medíocre, mas quadrado e bem proporcionado, muito ágil e muito vivo, as pernas carnudas e robustas, toda a frente do corpo sem pêlos, mas com as costas cobertas de pêlos negros. A primeira vista, seu rosto assemelhava-se ao de um homem, mas tinha o nariz chato e recurvado; as orelhas eram também as da espécie humana; o seio, pois era uma fêmea, era carnudo, o umbigo profundo, os ombros bem juntos, as mãos divididas em dedos e com polegar, a barriga da perna e os calcanhares gordos e carnudos. Caminhava, muitas vezes, direito, sobre as pernas, e era capaz de levantar e carregar fardos muito pesados. Quando queria beber, pegava com uma das mãos a tampa do vaso e com a outra o fundo, e em seguida enxugava graciosamente os lábios. Para dormir, deitava a cabeça em um travesseiro, cobrindo-se tão bem que podia ser tomado por um homem no leito. Os negros contam estranhas histórias desse animal: asseguram não somente que ele força as mulheres e as raparigas, mas que ousa atacar homens armados. Em uma palavra, há muita aparência de que seja o sátiro dos antigos. Merolla só faia talvez desses animais quando conta que os negros, nas suas caçadas, pegam algumas vezes homens e mulheres selvagens.” No terceiro tomo da mesma História das Viagens, fala-se ainda dessa espécie de animais antropomorfos, sob o nome de beggos e mandrills: mas, atendo-nos às narrativas precedentes, encontram-se, na descrição desses pretensos monstros, conformidades impressionantes com a espécie humana e diferenças menores do que as que se poderiam assinalar de homem para homem. Não se vêem, nessas passagens, as razões nas, quais os autores se fundam para recusar aos animais em questão o nome de homens selvagens; mas, é fácil conjecturar que é por serem estúpidos e por não falarem; são razões fracas para os que sabem que, embora o órgão da palavra seja natural ao homem, a própria palavra não lhe é contudo natural, e para os que sabem até que ponto sua perfectibilidade pode ter elevado o homem civilizado acima do seu estado original. O pequeno número de linhas que contêm essas descrições nos pode fazer julgar como esses animais foram mal observados e com que preconceitos foram vistos. Por exemplo, são qualificados de monstros, e entretanto, concorda-se que reproduzem. Em um lugar, Battel diz que os pongos matam os negros que atravessam as florestas; em outro, Purchass acrescenta que não fazem nenhum mal, mesmo quando os surpreendem, pelo menos quando os negros não se ponham a olhá-los. Os pongos reúnem-se em torno de fogos acesos pelos negros quando estes se retiram, e se retiram por sua vez quando o fogo se extingue; eis aí o fato; e agora, eis o comentário do observador: porque têm muita habilidade; mas não têm bastante senso para o entreter pondo nele a lenha. Eu desejaria adivinhar como Battel, ou Purchass, seu compilador, pode saber que a retirada dos pongos era um efeito de sua estupidez e não de sua vontade. Em um clima como o de Loango, o fogo não é coisa muito necessária aos animais; e, se os negros o acendem, é menos contra o frio do que para espantar os animais ferozes: é, pois, muito simples que, depois de se divertirem um pouco com as chamas, ou de se aquecerem, os pongos se aborreçam de ficar sempre no mesmo lugar e saiam para pastar, o que exige mais tempo do que se comessem carne. Aliás, sabe-se que a maior parte dos animais, sem excetuar o homem, são naturalmente preguiçosos e se recusam a toda sorte de cuidados que não sejam de absoluta necessidade. Enfim, parece muito estranho que os pongos, cuja habilidade e força se exaltam, os pongos, que sabem enterrar os mortos e fazer tetos de ramagens, não saibam pôr lenha no fogo. Lembro-me de ter visto um macaco fazer essa mesma manobra que se pretende que os pongos não possam fazer: é verdade que, não se tendo minhas idéias voltado para esse lado, cometo também a falta que censuro nos viajantes e me descuidei de examinar se a intenção do macaco era com efeito entreter o fogo, ou simplesmente, como creio, imitar a ação do homem. Seja como for, está bem demonstrado que o macaco não é uma variedade do homem, não somente porque é privado da faculdade de falar, mas principalmente porque é certo que sua espécie não tem a de se aperfeiçoar, que é o caráter específico da espécie do homem: essas experiências parecem não ter sido feitas sobre o pongo e o orangotango com bastante cuidado para se poder tirar a mesma conclusão. Haveria, contudo, um meio pelo qual, se o orangotango ou outros fossem da espécie humana, os observadores mais grosseiros poderiam certificar-se disso, mesmo com demonstração; mas, além de que uma só geração não bastaria para essa experiência, ela deve passar por impraticável, porque seria preciso que aquilo que é apenas uma suposição fosse demonstrado como verdadeiro, antes que a prova que deveria constatar o fato pudesse ser tentada inocentemente.

Os julgamentos precipitados, que não são o fruto de uma razão esclarecida, estão sujeitos a cair no exagero. Nossos viajantes fazem, sem cerimônia, animais sob o nome de pongos, mandrills, orangotangos, desses mesmos seres dos quais, sob o nome de sátiros, faunos, silvanos, os antigos faziam divindades. É possível que, depois de muitas pesquisas, se descubra que não são nem animais nem deuses, mas homens. Enquanto se espera, parece-me haver tanta razão em recorrer a Merolla, religioso letrado, testemunha ocular, e que, com toda a sua ingenuidade, não deixava de ser homem de espírito, como ao negociante Battel, a Drapper, a Purchass e aos outros compiladores.

Que juízo se pensa que tenham feito semelhantes observadores sobre a criança encontrada em 1694, de que já falei atrás, que não dava nenhum sinal de razão, caminhava sobre os pés e sobre as mãos, não tinha nenhuma linguagem e formava sons que em nada se pareciam com os de um homem? Levou muito tempo, continua o mesmo filósofo que me fornece este fato, para poder proferir algumas palavras, e ainda assim o fez de maneira bárbara. Logo que pode falar, interrogaram-na sobre o seu primeiro estado; mas, lembrava-se tanto dele quanto nós do que nos aconteceu no berço. Se, desgraçadamente para ela, essa criança caísse nas mãos dos nossos viajantes, não se pode duvidar de que, depois de notar o seu silêncio e a sua estupidez, decidiriam fazê-la voltar para o mato ou encerrá-la em uma jaula; depois, em belas narrativas, falariam dela, sabiamente, como de um animal muito curioso que se parecia com o homem.

Há trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da Europa inundam as outras partes do mundo, e publicam sem cessar novas narrativas de viagens o relatórios, e estou persuadido de que só conhecemos homens europeus; ainda parece, diante dos ridículos preconceitos que não desapareceram mesmo entre os homens letrados, que cada qual, sob o nome pomposo de estudo do homem, faz apenas o dos homens do seu país. Os particulares podem ir e vir, mas parece que a filosofia não viaja, de tal maneira a de cada povo é pouco apropriada para outro. A causa disso é manifesta, pelo menos para as regiões afastadas: só há quatro espécies de homens que fazem viagens de longo curso: os marinheiros, os comerciantes, os soldados e os missionários. Ora, não se pode esperar que as três primeiras forneçam bons observadores; e, quanto aos da quarta, ocupados com a vocação sublime que os chama, quando não estivessem sujeitos a preconceitos de estado como todos os outros, devo-se crer que não se entregariam de boa vontade a pesquisas que parecem de pura curiosidade e que os desviariam dos trabalhos mais importantes aos quais se destinam. Aliás, para pregar utilmente o Evangelho, não é preciso senão zelo, dando Deus o resto; mas, para estudar os homens, é preciso ter talentos que Deus não se compromete a dar a ninguém e que nem sempre confere aos santos. Não se abre um livro de viagens em que não se encontrem descrições de caracteres e de costumes; fica-se, porém, admirado de ver que as pessoas que descrevem tantas coisas só tenham dito o que todos já sabiam, só tenham percebido, no outro extremo do mundo, o que só a elas seria dado notar sem sair da sua rua, e de que esses traços verdadeiros que distinguem as nações, e que impressionam os olhos feitos para ver, tenham quase sempre escapado aos seus. Daí veio o belo adágio de moral, tão repetido pela turba filosófica, de que os homens são os mesmos em toda parte, tendo em toda parte as mesmas paixões e os mesmos vícios, sendo bastante inútil procurar caracterizar os diferentes povos. Ora, isso é raciocinar quase tão bem como se se dissesse que não se poderia distinguir Pedro de Tiago, porque ambos têm nariz, boca e olhos.

Será que não veremos mais renascer esses tempos felizes em que os povos não se metiam a filosofar, mas em que os Platão, os Tales, e os Pitágoras, tomados de um desejo ardente de saber, empreendiam as maiores viagens unicamente para se instruírem, indo sacudir longe o jugo dos preconceitos nacionais, aprender a conhecer os homens pelas suas conformações e pelas suas diferenças, e adquirir esses conhecimentos universais que não são os de um século ou de um país exclusivamente, mas que, sendo de todos os tempos e de todos os lugares, são, por assim dizer, a ciência comum dos sábios?

Admira-se a magnificência de alguns curiosos que fizeram ou mandaram fazer, com grandes despesas, viagens ao Oriente, com sábios e pintores, para aí desenhar pardieiros e decifrar ou copiar inscrições; mas, custa-me conceber como, num século em que todos se jactam de belos conhecimentos, não se encontrem dois homens bem unidos, ricos, um de dinheiro, outro de gênio, ambos amando a glória e aspirando à imortalidade, que sacrifiquem, um vinte mil escudos de sua fortuna, e o outro, dez anos de sua vida, numa célebre viagem ao redor do mundo, para estudar, nem sempre pedras e plantas, mas, por uma vez; os homens e os costumes, e que, depois de tantos séculos empregados em medir e considerar a casa, se lembrem enfim de procurar conhecer os seus habitantes.

Os acadêmicos que percorreram as partes setentrionais da Europa o meridionais da América tinham por objeto visitá-las mais como geômetras do que como filósofos. Entretanto, como ao mesmo tempo eram uma coisa e outra, não se podem olhar como absolutamente desconhecidas as regiões que foram vistas e descritas pelos La Condamine e os Maupertuis. O joalheiro Chardin, que viajou como Platão, nada deixou que dizer sobre a Pérsia. A China parece ter sido bem observada pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia passável do pouco que viu no Japão. Excetuadas essas narrativas, não conhecemos os povos das Índias orientais, freqüentados unicamente por europeus mais curiosos de encher as suas boinas do que as suas cabeças. A África inteira e os seus numerosos habitantes, tão singulares pelo caráter como pela sua cor, estão ainda por examinar; toda a terra está coberta de nações das quais só conhecemos os nomes, e nos metemos a julgar o gênero humano! Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um Duclos, um d’Alembert, um Condillac, ou homens dessa têmpera viajando para instruir seus compatriotas, observando e descrevendo, como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Barbaria, o império de Marrocos, a Guiné, — o país dos cafres, o interior da África e suas costas orientais, os malabares, a Mongólia, as margens do Ganges, os reinos do Sião, de Pegú, e de Ava, a China, a Tartária e, principalmente, o Japão; depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as terras magelânicas, sem esquecer os patagões verdadeiros ou falsos, o Tucumã, o Paraguai, se possível, o Brasil; enfim, os caraibas, a Flórida, e todas as regiões selvagens (seria a mais importante de todas as viagens, e a que deveria ser feita com mais cuidado). Suponhamos que esses novos Hércules, de volta dessas carreiras memoráveis, terminassem em seguida, com vagar, a história natural, moral e política do que tivessem visto; veríamos sair um novo mundo de baixo de sua pena, e aprenderíamos assim a conhecer o nosso. Repito que, quando semelhantes observadores afirmassem que tal animal é um homem e um outro uma besta, seria preciso crer; mas, seria grande ingenuidade proceder do mesmo modo com viajantes grosseiros, sobre os quais se é tentado, às vezes, a colocar a mesma questão que eles se metem a resolver sobre outros animais.

(11) — Isso me parece a última evidência, e eu não poderia conceber de onde os nossos filósofos podem fazer nascer todas as paixões que pretendem no homem natural. Excetuado apenas o necessário físico, que a própria natureza pede, todas as nossas outras necessidades só o são pelo hábito, antes do qual não eram necessidades, ou pelos desejos, e não se deseja o que não se está em estado do conhecer. Daí resulta que, como o homem selvagem só deseja as coisas que conhece e como só conhece aquelas cuja posse está ao seu alcance, ou é fácil adquirir, nada devo ser tão tranqüilo como a sua alma e nada tão limitado como o seu espírito.

(12) Encontro, no Governo Civil, de Locke, uma objeção que me parece muito especiosa para que me seja permitido dissimulá-la. “Como o fim da sociedade entre o macho e a fêmea, diz esse filósofo, não é simplesmente procriar, mas continuar a espécie, essa sociedade deve durar, mesmo após a. procriação, pelo menos tanto tempo quanto é necessário para a nutrição e conservação dos procriados, isto é, até que eles mesmos sejam capazes de prover às suas necessidades. Vemos que essa regra, que a sabedoria infinita do Criador estabeleceu sobre as obras de suas mãos, é constantemente observada e com exatidão pelas criaturas inferiores ao homem. Nos animais que vivem de ervas, a sociedade entre o macho e a fêmea não dura mais tempo do que o ato da copulação, porque, sendo as maminhas da mãe suficientes para nutrir os filhos até que sejam capazes de pastar as ervas, o macho se contenta em gerar e não se preocupa, depois disso, com a fêmea nem com os filhotes, para cuja subsistência em nada pode contribuir. Mas, em relação aos animais de presa, a sociedade dura mais tempo, porque, não podendo a mãe bem prover à sua própria subsistência e ao mesmo tempo nutrir os filhos somente com sua presa, o que é uma maneira de nutrir-se não só mais trabalhosa como mais perigosa do que a de se nutrir de ervas, a assistência do macho é absolutamente necessária para a manutenção de sua família comum, se se pode usar esse termo. Os filhos, enquanto não puderem procurar alguma presa, só podem subsistir pelos cuidados do macho e da fêmea. Nota-se a mesma coisa entre todos os pássaros, salvo alguns pássaros domésticos que se encontram em lugares nos quais a contínua abundância de nutrição isenta o macho de nutrir os filhotes. Vê-se que, enquanto os filhotes, ainda no ninho, têm necessidade de alimento, o macho e fêmea para ai o levam até que possam voar e prover à sua subsistência.

“Nisso, a meu ver, consiste a principal, se não a única razão por que o macho e a fêmea, no gênero humano, são obrigados a uma sociedade mais longa do que a que mantêm as outras criaturas. Essa razão é que a mulher é capaz de conceber e, de ordinário, ficar grávida outra vez e ter um novo filho antes que o precedente esteja em condições de dispensar o auxílio dos pais e prover às suas necessidades. Assim, um pai, sendo obrigado a cuidar durante muito tempo daqueles que gerou, é também obrigado a continuar a viver na sociedade conjugal com a mesma mulher de quem os teve, e a ficar nessa sociedade muito mais tempo do que as outras criaturas, cujos filhos podendo subsistir por si mesmos antes de chegar o tempo de nova procriação, o laço da fêmea e do macho se rompe naturalmente e ambos se encontram em plena liberdade, até que a estação que costuma solicitar os animais a se juntarem os obrigue a escolher novas companhias. E, nisso, nunca admiraríamos bastante a sabedoria do Criador, que, tendo dado ao homem qualidades próprias, para prover tão bem ao futuro quanto presente, quis e fez de maneira que a sociedade do homem durasse muito mais tempo do que a do macho e da fêmea entre as outra criaturas, a fim de que, desse modo, a indústria do homem e da mulher fosse mais excitada e os seus interesses mais unidos, com o objetivo de fazer provisões para os filhos e lhes deixar bens, nada podendo ser mais prejudicial às crianças do que uma conjunção incerta e vaga, ou uma dissolução fácil e freqüente da sociedade conjugal”

O mesmo amor à verdade, que me faz expor sinceramente essa objeção, me leva a acompanhá-la de algumas notas, se não para resolvê-la, ao menos para esclarecê-la.

1. Observei, primeiro, que as provas morais não têm grande força em matéria de física, e que servem antes para explicar fatos existentes do que para constatar a existência real desses fatos. Ora, tal é o gênero de prova que Locke emprega na passagem que acabo de citar; porque, embora possa ser vantajoso para a espécie humana que a união do homem e da mulher seja permanente, não se segue que isso tenha sido estabelecido pela natureza. Do contrário, seria preciso dizer que ela instituiu também a sociedade civil, as artes, o comércio, e tudo que se pretende que seja útil aos homens.

2. Ignoro onde Locke descobriu que entre os animais de presa a sociedade do macho e da fêmea dura mais tempo do que entre os que vivem de ervas, e que um ajuda o outro a nutrir os filhos; com efeito, não se vê o cão, o gato, o urso ou o lobo reconhecerem a fêmea melhor do que o cavalo, o carneiro, o touro, o veado, ou quaisquer outros animais quadrúpedes. Parece, ao contrário, que, se o socorro do macho fosse necessário à fêmea para conservar os filhos, assim o seria sobretudo nas espécies que só vivem de ervas, porque é preciso muito tempo à mãe para pastar, sendo forçada, durante todo esse intervalo, a se descuidar da prole, ao passo que a presa de uma ursa ou de uma loba é devorada em um instante, tendo ela, sem sofrer a fome, mais tempo para amamentar os filhos. Esse raciocínio é confirmado por uma observação sobre o número relativo de mamas e de filhos que distingue as espécies carnívoras, e de que já falei na nota 8. Se essa observação é justa e geral, só tendo a mulher dois seios, e um filho de cada vez, eis mais uma forte razão para duvidar que a espécie humana seja naturalmente carnívora; de sorte que parece que, para tirar a conclusão de Locke, seria necessário raciocinar de modo absolutamente contrário. Não há mais solidez na mesma distinção aplicada às aves. Porque quem poderá se persuadir de que a união do macho e da fêmea seja mais durável entre os abutres e os corvos do que entre as rolas? Temos duas espécies de aves domésticas, o pato e o pombo, que nos fornecem exemplos diretamente contrários ao sistema desse autor. O pombo, que só vive de grãos, fica unido à fêmea, e nutrem os filhos em comum. O pato, cuja voracidade é conhecida, não reconhece nem a fêmea nem os filhos, e em nada auxilia sua subsistência. E, entre as galinhas, espécie que não é menos carnívora, não se vê o galo incomodar-se com a ninhada. Se, em outras espécies, o macho partilha com a fêmea o cuidado de nutrir os filhos, é que as aves, que a princípio não podem voar e a mãe não pode aleitar, estão muito menos em condições de passar sem a assistência do pai do que os quadrúpedes, aos quais basta a maminha da mãe, pelo menos durante algum tempo.

3. Há muita incerteza sobre o fato principal que serve de base a todo o raciocínio de Locke: porque, para saber, como ele pretende, se, no puro estado de natureza, a mulher fica, de ordinário, grávida outra vez e tem um novo filho muito tempo antes que o precedente possa prover suas necessidades, seriam necessárias experiências que seguramente Locke não fez e que ninguém tem facilidade em fazer. A coabitação contínua do marido e da mulher é uma ocasião tão próxima de se expor ela a uma nova gravidez, que é bem difícil acreditar que o encontro fortuito ou o simples impulso de temperamento produza efeitos tão freqüentes no puro estado de natureza como no da sociedade conjugal. Essa lentidão contribuiria, talvez, para tornar os filhos mais robustos, e poderia, aliás, ser compensada pela faculdade de conceber, prolongada a uma idade mais avançada nas mulheres que não tenham abusado dela na juventude. Em relação às crianças, há muitas razões para crer que as suas forças e os seus órgãos se desenvolvem, entre nós, mais tarde do que no estado primitivo de que falo. A fraqueza original herdada da constituição dos pais, os cuidados tomados para envolver e estorvar todos os seus membros, a moleza na qual são educadas, talvez o uso de outro leite que não o de sua mãe, tudo contraria e retarda nelas os primeiros progressos da natureza. A aplicação que são obrigadas a dar a mil coisas sobre as quais se fixa continuamente sua atenção, ao passo que não só dá nenhum exercício às suas forças corporais, pode ainda causar um desvio considerável no seu crescimento; de sorte que, se, em vez de lhes sobrecarregar e fatigar a princípio o espírito de mil maneiras, se deixasse que exercitassem o corpo nos movimentos contínuos que a natureza parece reclamar, é de se crer que estariam muito mais cedo em condições de andar, de agir e de prover às suas necessidades.

4. Finalmente, Locke prova, quando muito, que poderia bem haver no homem um motivo de ficar ligado à mulher quando ela tem um filho; mas, não prova, de modo algum, que ele lhe deva ficar ligado antes do parto e durante os nove meses de gravidez. Se tal mulher é indiferente ao homem durante esses nove meses, se se torna mesmo desconhecida para ele, porque socorrê-la depois do parto? porque ajudá-la a criar um filho que ele sabe que não pertence somente a ele, e cujo nascimento não resolveu nem previu? Locke supõe, evidentemente, o que está em discussão, porque não se trata de saber a razão pela qual o homem ficará ligado à mulher depois do parto, mas, pela qual se ligará a ela depois da concepção. Satisfeito o apetite, e homem não tem mais necessidade de tal mulher, nem a mulher de tal homem. Este não tem a menor preocupação, nem talvez a menor idéia das conseqüências do sua ação. Um vai para um lado, e o outro para outro, não havendo aparência de que, após nove meses, tenham lembrança de se terem conhecido; porque essa espécie de lembrança, pela qual um indivíduo dá preferência a outro indivíduo para o ato da geração exige, como provo no texto, mais progressos ou corrupção no entendimento humano do que se pode supor existir no estado de animalidade de que tratamos. Uma outra mulher pode, pois, contentar os novos desejos do homem tão comodamente quanto aquela que ele já conheceu, e outro homem contentar do mesmo modo a mulher, supondo-se que ela seja premida pelo mesmo apetite durante o estado de gravidez, do que razoavelmente se pode duvidar. É que se, no estado de natureza, a mulher não sente mais a paixão do amor após a concepção do filho, o obstáculo à sua sociedade com o homem se torna ainda muito maior, pois que então ela não tem mais necessidade nem do homem que a fecundou, nem de nenhum outro. Não há, pois, no homem nenhuma razão para procurar de novo a mesma mulher, nem na mulher nenhuma razão para procurar de novo o mesmo homem. O raciocínio de Locke cai, pois, em ruínas, e toda a dialética desse filósofo não o livrou do erro que Hobbes e outros cometeram. Eles tinham que explicar um fato do estado de natureza, isto é, de um estado em que os homens viviam isolados, e em que um homem não tinha nenhum motivo para permanecer ao lado de outro, nem talvez os homens nenhum motivo para permanecer ao lado uns dos outros, o que é muito pior, e não pensaram em se transportar para além dos séculos de sociedade, isto é, além desses tempos em que os homens têm sempre uma razão para permanecer perto uns dos outros, e em que um homem tem muitas vezes uma razão para ficar ao lado de outro homem ou de outra mulher.

(13) — Terei bem cuidado em me não comprometer nas reflexões filosóficas que seria necessário fazer sobre as vantagens e os inconvenientes dessa instituição das línguas: não é a mim que se permite atacar os erros vulgares, e o povo letrado respeita demais os seus preconceitos para suportar pacientemente os meus pretensos paradoxos. Deixemos, pois, falar as pessoas às quais não imputamos o crime de tomarem algumas vezes o partido da razão contra as opiniões da multidão. Nec quidquam felicitati humani generis decederet, si, pulsa tot linguarum peste et confusione, unam artem callerent mortales, et signis, motibus, gestibusque, licitum foret quidvis explicare. Nunc vero ita comparatum est, ut animalium quoe vulgo bruta creduntur melior longe quam nostra hac in parte videatur conditio, utpote quoe promptius, et forsan felicius, sensus et cogitationes suas sine interprete significent, quam ulli queant mortales, proesertim si peregrino utantur sermone.(Is. Vossius, De Poemat. Cant. et Viribus Rhythmi, pag. 66.)

(14) — Platão, mostrando quanto as idéias da quantidade discreta e de suas relações são necessárias nas menores artes, ridiculariza com razão os autores do seu tempo que pretendiam que Palamedes inventara os números no cerco de Tróia, como se, diz o filósofo, Agamemnon pudesse ignorar, até então, quantas pernas tinha. Efetivamente, sente-se a impossibilidade de que a sociedade e as artes tivessem chegado aonde estavam já no tempo do cerco do Tróia, sem que os homens tivessem usado os números e os cálculos: mas, a necessidade de conhecer os números, antes de adquirir outros conhecimentos, não torna a sua invenção mais fácil de imaginar. Uma vez conhecidos os nomes dos números, é fácil explicar-lhes o sentido e excitar as idéias que esses nomes representam; mas, para os inventar, foi preciso, antes de conceber essas mesmas idéias, estar por assim dizer familiarizado com as meditações filosóficas, exercitado em considerar os seres só por sua essência e independentemente de qualquer outra percepção. Essa abstração é muito penosa, muito metafísica, muito pouco natural, e, no entanto, sem ela, essas idéias nunca teriam podido se transportar de uma espécie ou de um gênero a outro, nem os números tornarem-se universais. Um selvagem podia considerar separadamente sua perna direita e sua perna esquerda, ou as olhar em conjunto sob a idéia indivisível de um par, sem jamais pensar que tivesse duas; porque uma coisa é a idéia representativa que nos pinta um objeto, e outra coisa a idéia numérica que o determina. Menos ainda podia ele calcular até cinco, e, embora aplicando as mãos uma sobre a outra, pudesse notar que os dedos se correspondiam exatamente, estava bem longe de pensar na sua igualdade numérica; não sabia mais a soma dos seus dedos que a dos seus cabelos; e, se, depois de lhe haver feito entender o que são os números, alguém lhe dissesse que ele tinha tantos dedos nos pés quanto nas mãos, talvez tivesse ficado surpreendido, comparando-os, de ver que era verdade.

(15) — É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes por sua natureza e por seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar por sua própria conservação, e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra. Bem entendido isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe; porque, cada homem em particular olhando a si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no universo que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito, não é possível que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é capaz de fazer possa germinar em sua alma. Pela mesma razão, esse homem não poderia ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida. E, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e não o mal, que constitui a ofensa, homens que não sabem se apreciar nem se comparar podem fazer-se muitas violências mútuas para tirar alguma vantagem, sem jamais se ofenderem reciprocamente. Em uma palavra, cada homem, vendo seus semelhantes apenas como veria os animais de outra espécie, pode arrebatar a presa ao mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, sem encarar essas rapinagens senão como acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de despeito, e sem outra paixão que a dor ou a alegria de um bom ou mau sucesso.

(16) — É uma coisa extremamente notável que, após tantos anos que os europeus se atormentam para conduzir os selvagens de diversas regiões do mundo à sua maneira de viver, não tenham podido ainda ganhar um só item mesmo a favor do cristianismo; porque os missionários têm feito algumas vezes cristãos, mas jamais homens civilizados. Nada pode sobrepujar a invencível repugnância que têm eles em tomar os nossos costumes e em viver à nossa maneira. Se esses pobres selvagens são tão desgraçados como se pretende, por que inconcebível depravação de julgamento recusam constantemente policiar-se como nós, ou aprender a viver felizes entre nós, quando se lê, em milhares de passagens, que os franceses e outros europeus se refugiaram voluntariamente nessas nações e nelas passaram a vida inteira sem poder mais deixar tão estranha maneira de viver, e quando se vêem até missionários sensatos ter saudades dos dias calmos e inocentes que passaram entre povos tão desprezados. Se se responde que eles não têm bastantes luzes para julgar de maneira sã o seu estado e o nosso, replicarei que a estima da felicidade é menos negócio da razão que do sentimento. Aliás, essa resposta pede voltar-se contra nós com mais força ainda; porque as nossas idéias estão mais longe da disposição de espírito necessária para conceber o gosto que encontram os selvagens na sua maneira de viver do que as idéias dos selvagens das que lhes podem fazer conceber a nossa. Com efeito, depois de algumas observações, é-lhes fácil ver que todos os nossos trabalhos se dirigem para dois únicos objetivos, a saber: as comodidades da vida para si, e a consideração para os outros. Mas, para nós, qual é o meio de imaginar a espécie de prazer que um selvagem tem em passar a vida só no meio das florestas, ou pescando, ou soprando em uma péssima flauta, sem jamais saber tirar dela um único som e sem se importar de aprendê-lo?

Muitas vezes, têm-se trazido selvagens a Paris, a Londres e a outras cidades, e tido pressa em lhes expor o nosso luxo, as nossas riquezas e todas as nossas artes mais úteis e mais curiosas: tudo isso lhes despertou uma admiração estúpida, sem o menor movimento de cobiça. Lembro-me, entre outras, da história de um chefe de alguns americanos setentrionais levados à corte da Inglaterra, há uns trinta anos: fizeram-lhe passar milhares de coisas diante dos olhos, para lhe fazerem presente do que lhe pudesse agradar, sem que se achasse nada que parecesse impressioná-lo. Nossas armas lhe pareciam pesadas e incômodas, nossos sapatos lhe feriam os pés, nossas roupas o incomodavam, e tudo ele recusava. Finalmente, percebeu-se que, tendo tomado um cobertor de lã, parecia sentir prazer em envolver com ele os ombros. — “Convence-se ao menos, — perguntaram-lhe, — da utilidade disso,” — “Sim, — respondeu, — isso me parece quase tão bom como uma pele de animal”. Mas, nem isso diria se tivesse levado as duas coisas à chuva.

— Dir-me-ão, talvez, que é o hábito que, ligando cada um à sua maneira de viver, impede os selvagens de sentir o que há de bom na nossa: e, sendo assim, deve parecer ao menos bem extraordinário que o hábito tenha mais força para manter os selvagens no gosto de sua miséria do que os europeus no gozo de sua felicidade. Mas, para dar a essa última objeção uma resposta para a qual não haja uma palavra que replicar, sem alegar todos os jovens selvagens que inutilmente se tem procurado civilizar e sem falar dos groenlandeses e dos habitantes da Islândia, que se tentou educar e nutrir na Dinamarca, e que morreram todos de tristeza e desespero, ou por causa do langor, ou no mar, porque tentaram fugir a nado, contentar-me-ei de citar um só exemplo bem atestado, e que dou aos admiradores da polícia européia para examinar.

“Todos os esforços dos missionários holandeses do Cabo da Boa Esperança jamais foram capazes de converter um só hotentote. Van der Stel, governador do Cabo, tendo tomado um desde a infância, fê-lo educar nos princípios da religião cristã, e na prática dos usos da Europa. Vestiram-no ricamente, ensinaram-lhe diversas línguas, e seus progressos corresponderam muito bem aos cuidados tomados com sua educação. O governador, esperando muito de seu espírito, enviou-o às Índias com um comissário geral que o empregou utilmente nos negócios da companhia. Ele voltou ao Cabo depois da morte do comissário. Poucos dias depois da sua volta, em uma visita que fez a uns hotentotes sem parentes, tomou a decisão de se despojar dos seus ornamentos europeus para se vestir com uma pele de carneiro. Voltou ao forte nesses novos trajes, carregando um pacote contendo as suas roupas; e, apresentando-as, ao governador, lhe disse:

Tende a bondade, senhor, de prestar atenção a que renuncio para sempre, a todo esse aparelhamento; renuncio também, para toda a vida, à religião cristã; minha resolução é viver e morrer na religião, maneiras e usos dos meus ancestrais. A graça único que vos peço é deixar-me o colar e o cutelo que trago; eu os guardarei por amor a vós. Logo que acabou de falar, sem esperar a resposta de Van der Stel, saiu em fuga, e jamais foi visto no Cabo.” (História das Viagens, tomo V, pag. 175.)

(17) — Poderiam objetar-me que, em uma semelhante desordem, os homens, em vez de se degolarem mútua e obstinadamente, se dispersariam, se não houvesse limites à sua dispersão; mas, primeiramente, esses limites seriam pelo menos os do mundo; e, se se pensa na excessiva população que resulta do estado de natureza, julgar-se-á que a terra, nesse estado, não tardaria a ser coberta de homens assim forçados a se manter reunidos. Aliás, eles se dispersariam se o mal fosse rápido, e se a mudança fosse feita da noite para o dia: mas, nasciam sob o jugo; tinham o hábito de o conduzir, quando lhe sentiam o peso, e se contentavam em esperar a ocasião de o sacudir. Enfim, já acostumados a mil comodidades que os forçavam a se manter reunidos, a dispersão não era assim tão fácil como nos primeiros tempos, em que, ninguém tendo necessidade senão de si mesmo, cada qual tomava seu partido sem esperar o consentimento do outro.

(18) — O marechal de Villars contava que, em uma de suas campanhas, as excessivas ladroeiras de um comissário de víveres tendo feito sofrer e murmurar o exército, ele o repreendeu rudemente e o ameaçou de mandar enforcá-lo. “Essa ameaça nada tem que ver comigo, — respondeu-lhe ousadamente o velhaco, e me é muito fácil dizer-lhe que não se enforca um homem que dispõe de cem mil escudos.” — “Não sei como foi, — acrescenta ingenuamente o marechal, — mas, com efeito, ele não foi enforcado, embora tivesse merecido cem vezes o castigo.”

(19) — A justiça distributiva se oporia mesmo a essa igualdade rigorosa do estado de natureza, quando fosse praticável na sociedade civil; e, como todos os membros do Estado lhe devem serviços proporcionais aos seus talentos e às suas forças, os cidadãos, por sua vez, devem ser distinguidos e favorecidos à proporção dos seus serviços. É nesse sentido que é preciso compreender uma passagem de Isócrates na qual louva ele os primeiros atenienses por terem sabido bem distinguir qual era a mais vantajosa das duas espécies de igualdade, uma das quais consiste em conceder as mesmas vantagens a todos os cidadãos indiferentemente, e a outra em distribuí-las segundo o mérito de cada um. Esses hábeis políticos, acrescenta o orador, banindo essa injusta igualdade que não estabelece nenhuma diferença entre os maus e os bons, apegaram-se inviolavelmente àquela que recompensa e pune cada um segundo o seu mérito. Mas, primeiramente, jamais existiu sociedade, por maior que tenha sido o grau de corrupção a que tivesse podido chegar, na qual não se fizesse nenhuma diferença entre os maus e os bons; e, em matéria de costumes, em que a lei não pode fixar medida bastante exata para servir de regra ao magistrado, é muito sabiamente que, para não deixar a sorte ou a posição dos cidadãos à sua discrição, ela lhe não permite o julgamento das pessoas, para só lhe deixar o das ações. Não há costumes tão puros, como os dos antigos romanos, que possam suportar censores; e semelhantes tribunais logo teriam transtornado tudo entre nós. Cabe à estima pública estabelecer a diferença entre os maus e os bons. O magistrado só é juiz do direito rigoroso: mas, o povo é o verdadeiro juiz dos costumes, juiz íntegro e mesmo esclarecido sobre esse ponto, do qual se abusa algumas vezes, porém que jamais se consegue corromper. As posições dos cidadãos devem, pois, ser reguladas, não segundo o seu mérito pessoal, o que seria deixar ao magistrado o meio de fazer uma aplicação quase arbitrária da lei, mas segundo os serviços reais que prestam ao Estado, e que são suscetíveis de uma estimação mais exata.

©2001 — Ridendo Castigat Mores

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