Carta 30

Westerley

ME REFUTEI até quando pode suportar minha razão, até ceder às forças de minhas paixões que insistiam em externar minhas inquietações mais íntimas. Conquanto, não posso mais evitar dize-las a todos, do modo que as vejo e sinto, pois são elas responsáveis pelo que sou e penso de mim mesmo.

Esta carta é especial por estar nela, talvez, os fundamentos psicológicos e principalmente ontológicos de todas as outras. Não direi de quem sou, mas de como sou quem sou.

Mas que pode isso interessar a alguém?

Não sei, só sei que pode haver quem sofra do mesmo mal que me acompanha intimamente, o de saber como fui impelido a ser quem sou pelas circunstancias de uma formação desregrada e abandonada ao acaso de modo irresponsável, por quem não sabia sequer cuidar de si mesma e, não alcançando a propriedade do ser mãe, utilizou mesmo assim deste título para se manter servida em suas vaidades individuais e excêntricas as vezes tragicômicas, as vezes paranóicas.

A tragédia grega já nos apresentou sua progenitora mais conhecida que para se vingar de seu amado que o abandonara, alimentou a perversidade de seu espírito com o gosto do sadismo e do masoquismo impelidos na relação com seus próprios filhos. Devorando-os aos próprios dentes.

Quem sabe esses escritos que são mais a expressão dos conflitos humanos que propriamente dos meus, encontrem quem a partir deles, reflita sobre si mesmo e até alcance ao menos, meios para evitar o sofrimento perene que comumente são passados de geração a geração, de mães para filhos e de filhos para filhos, por falta, creio de refletir sobre eles?

É assim que estes escritos me servem. È esta a intenção primeira de todo eles, provocar a reflexão de si, do outro, do mundo e de nossas relações neste espaço de conflitos para que através dessa reflexão, quem sabe, encontremos um modo de entender como se é cada um de nós, por que somos o que somos e para que estamos aqui neste palco das vicissitudes eternas.

É nesse sentido que esses escritos podem interessar a alguém. Se assim for, já valeu a pena me dedicar a eles com tanta sinceridade de sentimentos.

Longe de ser uma pretensão antropológica ou mesmo ontológica sobre o homem, mas perto de ser uma provocação, um estímulo para se pensar sobre si mesmo no mundo dos homens digo de como me percebo neste mundo.

O vulgo poderá me condenar pelo que vou dizer, mas como sabe bem quem me seguiu até aqui, digo sempre o que sinto porque o que sinto é sempre o que vivo. Não na intenção de que seja a verdade, mas com a certeza de que é toda a verdade dos meus sentimentos.

Feitas essas advertências iniciais, digo que ao contrário do que se pensa, nem toda progenitora é mãe, assim como nem toda mãe é a progenitora.

Entendo mãe como sendo uma atitude. Ser mãe é antes de um título de família, dado por uma presunção social de que a progenitora desde a gestação, assumirá uma nova atitude perante si mesma, a sociedade e ao outro imediato que é seu filho. O filho gestado traz consigo, o título de mãe que invariavelmente, nasce antes dele mesmo.

E o que exige este novo título? Que a progenitora assuma uma nova atitude perante a vida, pois, agora, em geral, uma outra vida dependerá dela em boa parte. Por isso, é preciso um novo olhar sobre si mesma, o mundo e o outro e este novo olhar, será eterno e conduzirá de agora em diante toda sua atitude e relação com o outro e com o mundo. O olhar e a titude serão agora, maternos.

Ser mãe então exige uma mudança de atitude; primeiro consigo mesma. É preciso que se pense e aja não só como mulher mas, acima de tudo como mãe. Não fui eu quem determinou esta regra, foi a natureza.

A mãe deixa de ser um indivíduo simples e passa a ser “duo”, passa a ser um indivíduo composto. Não se é mais um, agora, se é dois e, não estou falando de partes como se pensa no senso comum; meu filho é parte de mim, é mais que isso, o filho sou eu fora e diferente de mim. É um outro Eu que me torna duo sendo um.

Esta visão faz com que, a mãe na atitude materna, ponha o filho como número um na escala de prioridade da existência, acima da própria existência inclusive.

Pois, ele seu filho, agora é ela também e, alem disso, é ele mesmo. Logo, entre ela mesma e o filho, a mãe numa atitude materna deve sempre e em qualquer caso, escolher o filho à ela própria. Esta é uma atitude materna.

Esta atitude exprime uma outra visão de si, diferente das demais, que só a mãe pode ter. É a essência do ser mãe, é o ser da mãe. Por isso, a mãe sente o sofrimento e as dores do filho e prefere senti-las por ele. Por isso também, a mãe se felicita com a felicidade do filho e viceja os prazeres dele. Isso porque, para a mãe a realização plena do filho é em essência, a sua própria.

Deste modo a mãe numa atitude materna, protege o filho contra todo sofrimento, ainda que signifique o seu próprio, protege-o contra toda dor, ainda que cause alguma a si mesma, defende a existência e a felicidade do filho ainda que lhe custe a sua própria.

Estes são efeitos da mudança de atitude com relação a si mesma.

Outra mudança causada pela atitude materna, é com relação ao outro. E o primeiro e singular outro é o próprio filho.

O filho é o outro mas, não é um outro qualquer, ele é para a mãe em atitude materna, o seu Eu no outro. O que ela vê no filho, é o outro Eu dela própria. - Este outro que é meu filho, sou Eu e é ele próprio.

Esta nova visão do outro coloca a mãe em um estágio superior entre todos os mortais, é como se ela tivesse morada no olimpo , isso por que ela mesma passa a ver os outros indivíduos não só como pessoas, seres humanos comuns, mas com um olhar de solidariedade materna digna apenas ao espíritos iluminados.

O outro que não é seu filho, passa a ser visto como o filho de alguém, naquele outro inicialmente estranho, há também, uma identidade materna por ser ele o filho de uma igual, de uma outra mãe.

Há para a mãe em atitude materna, naquele outro que ali sofre no frio da calçada, não um mendigo, há para esta mãe, naquele que sofre as dores de uma doença e a solidão dos leitos de um hospital, não um enfermo. Há para esta mãe, naquele que rouba e é trancafiado nas celas frias do esquecimento, não um ladrão ou um condenado, há para a mãe em todos estes outros, o sofrimento e a amargura de uma outra mãe, por não ter podido evitar o sofrimeto de seu filho. Ela se condói com a dor dele como se fosse ela própria sua mãe e clama por compaixão e perdão sentimentos dignos apenas aos deuses. Por isso ser mãe é compartilhar da compaixão divina.

Já a progenitora, esta é a que pariu a cria e não absorveu em suas atitudes perante a si, ao outro e ao mundo, a atitude de ser mãe.

A progenitora ao contrário da mãe, se vangloría de ter dado a luz e até alimentado sua cria, não por sentimento materno que é de solidariedade mas, por autodefesa que é um individualismo. Em outros termos: a progenitora pensa antes em si própria, defende antes seus interesses próprios, quer antes o seu bem mesmo que isso signifique o mal e o sofrimento daquele que ela deu a luz.

A progenitra usa do título de mãe vindo da gestação de sua cria, para se beneficiar, ainda que isso custe o malefício, a vida ou a felicidade daquele que chama de filho.

Ser mãe para a progenitora não é amar é sim ser amada pelos seus, mas não um amor de sentimento apenas mas um “amor” que lhe gere algum lucro ou vantagem, pois para a progenitora sua cria é um eterno devedor e deve pagar-lhe por ter sido ela sua progenitora.

Toda esforço da progenitora é para que sua cria cuide dela, a proteja, a sustente, se submeta aos seus desejos, caprichos, vaidades e vontades pois, sua cria é seu servo-eterno e lhe deve um favor hereditário, o de ter nascido de suas entranhas.

Sem compreender bem a dimensão de ser mãe a progenitora troca Olimpo pelo Hades e lá, mantêm aprisionada todas suas crias até sugar delas a última gota de sua existência.

E aquele que ousar a se desvencilhar das amarras da dominação e do extermínio de seu ser por parte de sua progenitora, será para sempre amaldiçoado por esta que jamais admitirá perder um de seus servos-eterno pois ela precisa alimentar suas avarezas, se alimentando da própria vida destes e para isso usa das armas dos covardes que são as únicas que dispõe os ímpios; a chantagem quase sempre emocional, a mentira que provoca a injustiça e o sufrimento dos outros e a falta de autocrítica, que a impede de perdoar e ter compaixão, primeiro consigo mesma, depois para com os outros.

Todos estes elementos impedem a progenitora de ser mãe, ainda que use as benesses de ser, o que acaba por distanciá-la de seus filhos e do filho de Deus.

Abril/2008

Carta Filosófica Nº 30

[Inacabada]