Adágio Popular e Filosofia

Política é Política, Filosofia é Filosofia >

Paulo Ghiraldelli Jr

A filosofia acadêmica trouxe o texto filosófico para o interior dos formatos chamados de “dissertação” e de “tese”. Em geral, essa maneira de apresentar a filosofia tornou-a tediosa. Os filósofos estadunidenses estão tentando romper com isso; querem vê-la também como livro – livro comercial. Eles têm se dedicado à produção de livros que, ainda que se mantenham acadêmicos, aparecem na forma de conjuntos de ensaios de vários autores em debate ou como conjunto de artigos sobre um tema comum. São louvados, então, os filósofos que se portam como escritores profissionais, que se esmeram em escrever de modo claro e elegante, e não apenas para “fazer currículo” com suas publicações. O escritor profissional escreve para ser lido. Isso tem ajudado à ressurreição da filosofia como um gênero literário interessante. Começa-se então a reconstrução do que poderíamos chamar de um “público leitor de filosofia”. A Europa tem procurado imitar os americanos em tal empreendimento.

Muitos editores se perguntam: mas isso basta? Não poderíamos fazer algo maior? Não poderíamos realmente ganhar dinheiro com livros de filosofia de filósofos*? Afinal, no passado, não tínhamos professores e estudantes de filosofia como temos hoje e, no entanto, proporcionalmente havia um público consumidor de filosofia mais caudaloso.

No passado, havia um tipo especial de apresentação da filosofia que apetecia muitos leitores, que era o livro com ditos e provérbios. Aos poucos, as coletâneas de provérbios e ditos filosóficos foram deixadas como de direito apenas dos orientais. Seria uma forma própria deles, os orientais, de fazer filosofia, uma vez que a maneira como trabalham é próxima da religião ou de doutrinas para a vida prática (a vida moral). Somente eles teriam o direito à produção de frases únicas e, agrupando-as, chamá-las de filosofia. Nós, os filósofos ocidentais, não poderíamos criar frases singularizadas, solitárias, e nem mesmo aforismos. Talvez até mesmo ensaios curtos já servissem para recebermos punição. Um livro que contenha uma coletânea de “pensamentos”, como às vezes é denominado tal coisa, não raro pode causar má impressão aos quem realmente tem um trânsito sério com a filosofia.

Todavia, nem todo tipo de frase isolada ou conjunto de “pensamentos” podem ser tomados como não contendo algo de filosófico – efetivamente filosófico. Aliás, a filosofia ocidental tem uma grande dívida de origem para com esse tipo de apresentação. Por exemplo, sabemos que o Templo de Apolo, no qual funcionava o Oráculo de Delfos que, enfim, deu linha para o filosofar de Sócrates, possuía frases que teriam sido inscritas lá pelos chamados “Sete Sábios” da Grécia Antiga. Eis três delas: “Conhece-te a ti mesmo”, “Não prometas” e “Nada em excesso”. Ora, é claro que não vamos pegar cada uma dessas frases ou mesmo as três em conjunto e sair por aí em festas de aniversário, casamentos ou clínicas de terapias pouco sérias declamando-as como se estivéssemos de posse de alguma filosofia. Isso era a “cultura de verniz”. No entanto, tais frases eram algo ligado autenticamente à filosofia. Não só a primeira, as duas últimas frases também foram adotadas por Sócrates. E não aleatoriamente. Foram tomadas como uma forma de colaborar com a maneira pela qual ele procurou interpretar a manifestação do Oráculo de Delfos a seu respeito.

Como se sabe, o Oráculo, ao ser inquirido pelo amigo de Sócrates, Querofonte, sobre se havia alguém mais sábio que o filósofo grego, deu uma resposta negativa. Sócrates gastou então o resto de sua vida de forma comedida e com poucas promessas, investigando outros com perguntas morais, tentando ver se ele, encontrando quem fosse mais sábio, poderia então refutar o Oráculo. Assim, de certa forma, o que ele passou a fazer tinha muito a ver com uma tentativa de ser modesto e conhecer a si mesmo, para saber se de fato era sábio como o Oráculo havia dito. O conteúdo mesmo de sua filosofia ficou em dívida para com as frases – adágios – do templo délfico.

A idéia de deixar “pensamentos” ao vento pode, sim, ser um modo gostoso e ao mesmo tempo sério de apresentar a filosofia – basta saber fazer. E há duas vias nisso, que valem uma retomada: uma, que é a de mostrar o caminho que algumas expressões tipicamente filosóficas fizeram ao conseguir popularidade; outra, que é partir de alguns ditos populares cuja origem é tipicamente filosófica.

No primeiro caminho, entre tantos exemplos, pode-se pensar aqui em expressões como “o homem é o lobo do homem”, “dividir para governar”, “o homem é naturalmente bom, mas a sociedade o corrompe” e “saber é poder”. Poucos são os escolarizados que não ouviram isso, não é verdade?

“O homem é o lobo do homem” é do âmbito do helenismo, e foi usada nos tempos modernos por Thomas Hobbes para, em sua teoria, justificar a idéia de um estado capaz de gerenciar uma sociedade que não fosse mais o chamado “estado de natureza” – neste sim, o homem poderia exercer sua condição natural de “lobo do homem”.

A segunda frase, “o homem é naturalmente bom, mas a sociedade o corrompe”, é de Jean Jacques Rousseau. Exatamente em oposição à frase de Hobbes, Rousseau dizia que o estado, a sociedade e a cultura, que aparecem para quebrar o “estado de natureza”, levariam o homem ao que ele não é, ou seja, a uma condição em que teríamos de condená-lo moralmente.

A frase “dividir para governar” é também da antiguidade (romana), e foi usada na modernidade por Maquiavel, na sua formulação clássica em que buscou fazer um exame realista da política.

Por fim, “saber é poder” foi cunhada por Bacon: virou um emblema para caracterizar a modernidade.

Pode-se tentar lembrar mais frases desse tipo.

No segundo caminho, há o problema do idioma. Partimos de ditos populares e esperamos encontrar algum rastro da filosofia dos filósofos em tais sentenças. Mas aí, nem sempre o que é falado em português, mesmo que tenha algo a ver com a filosofia dos filósofos, tem um correspondente fácil de ser identificado nos idiomas dos filósofos, em especial, é claro, os filósofos modernos, que em geral vieram a usar o francês e, cada vez mais, o inglês. Quem sabe um pouco de línguas, ou até mesmo quer uma motivação gostosa para estudar línguas, pode seguir esse caminho.

Uma boa parte dos nossos ditos populares que foram inspirados na filosofia de filósofos não é moderno; são adágios que se fizeram a partir de frases da antiguidade ou dos tempos medievais, e em geral estão ligados às filosofias que se articularam mais abertamente com a religião.

Tomás de Aquino é apontado pelos historiadores como um dos principais responsáveis por ditos populares atuais, inclusive os que usamos em português (os ditos feitos por filósofos que escreveram em latim tiveram mais sucesso na sua universalização, é claro). Há alguns ditos dele que realmente fizeram sucesso: “crie a fama e deite na cama”, “uma andorinha sozinha não faz verão”, “para frente é que se anda” e “cada ovelha com sua parelha”. Não é difícil perceber, com um pouco de leitura (usando um manual de filosofia), como essas frases fazem sentido no campo filosófico de fusão entre o cristianismo e a cultura aristotélica. E o segredo delas terem sucesso é que, mesmo fora do campo filosófico dos filósofos, podem se transformar em “filosofia popular”. Competem de igual para igual com o que seria o típico apenas da filosofia oriental. Por exemplo, podemos lembrar aqui de Confúcio: “Transportai um punhado de terra todos os dias e fareis uma montanha”. Não tem a ver com as frases de Aquino?

Tais expressões recebem o nome de “ditos”, “adágios”, “provérbios” ou simplesmente “tiradas”. Uma boa parte delas vem não da filosofia dos filósofos, mas da filosofia ligada à religião – embora a maior parte dos adágios populares seja fruto da linguagem da literatura, em especial as narrativas da poesia e do teatro.

Um dito popular que veio diretamente da Bíblia é o “santo da casa não faz milagre”. Outro, também de inspiração bíblica: “melhor um cachorro vivo que um leão morto”. E mais um: “daí a César o que é de César”. Os historiadores dizem que os livros de boas maneiras dos ingleses, próprios do início da modernidade, modificaram esse dito para “mais vale uma andorinha na mão que duas voando”. Aliás, esses manuais, escritos por filósofos-pedagogos e moralistas, foram hábeis na operação de “reciclagem” de ditos filosóficos e religiosos. Talvez venha daí certa confusão feita pelo leigo que, não raro, acredita que todo filósofo deve ser “uma moça”, com boas maneiras. A confusão de filosofia como “aprendizado de boas maneiras”, não raro, aparece em cobranças de alguns, via Internet, querendo que nós, os filósofos, os tratemos com mais hipocrisia do que podemos.

Esses dois caminhos que citados acima poderiam ser acoplados – prometendo talvez algum sucesso editorial – se desenvolvidos de modo a conhecermos a “fortuna crítica de uma obra”, isto é, qual o destino que algumas filosofias ganharam a ponto delas ficarem inseridas no imaginário ou na mentalidade de uma população. Valeria a pena ver como que tais adágios podem ou não estar ligados a filosofias que tiveram os seus núcleos, mal ou bem, enraizados no saber popular. Podemos lembrar aqui de algumas filosofias que geraram noções difíceis de um escolarizado desconhecer, como o “amor platônico” ou o “maquiavelismo” ou o “complexo de Édipo” ou “bom selvagem” ou “sadismo”.

Mas tudo isso não é novidade. Pode ser tomado como novidade apenas em um sentido: podemos aproveitar da filosofia dos filósofos para produzir literatura de maior consumo. O que verdadeiramente vingou no passado para tal, inclusive no Brasil, foram os livros com frases de filósofos que, embora não muito conhecidas – ou até mesmo desconhecidas – podiam servir para uma “reflexão matinal” ou uma colaboração para o “exame de consciência noturno”. Isso foi em um tempo em que a “reflexão matinal” não era alimentada pela notícia do crime estampada no jornal e o “exame de consciência” do final do dia não era a novela tediosa da TV e nem mesmo um jornal televisivo altamente ideologizado. Há espaço, ainda hoje, para esse tipo de literatura? Creio que sim, pois se bem cuidada, ela é instrutiva e bastante engraçada. E a própria TV vai acabar se aproveitando dela, como a literatura de folhetim já o fez no passado. Cito alguns exemplos abaixo.

“Nada é tão dificilmente perdoado quanto o talento”, frase do filósofo Denis Diderot. Não é uma verdade isso? E não está escrito de uma maneira bela? Pois o talento não é ele, sempre, uma vítima que incomoda? Não está o talentoso, não raramente, na condição de réu altivo? Não é o talento um desafio aos que não raro estão no poder, mas não possuem talento a não ser para ficar no poder – ilegitimamente?

Uma frase desse tipo, como a de Diderot, faz lembrar aquela situação de Getúlio Vargas diante do incômodo Monteiro Lobato. O ditador, escritor medíocre, querendo esconder o petróleo brasileiro, mandou prender Lobato, homem de letra fácil e elegante, dotado de extraordinária inteligência, que insistia que tínhamos petróleo. Anos depois, Vargas passou a ser o patrono do nacionalismo brasileiro e a Petrobrás o símbolo disso. Vargas foi membro da Academia Brasileira de Letras. Lobato também foi indicado, mas recusou a oferta. Quantas e quantas vezes não deve ter valido, como punição para Vargas, a imagem de Lobato na sua cabeça, não é? Se Vargas tivesse realmente sido um homem de letras, poderia ter conhecido a frase de Diderot, que teria atormentado ele ainda mais.

Mil exemplos e mil histórias vêem à mente quando lemos a frase de Diderot. No popular, e certamente mais geral, ela teria tradução nesta daqui: “a inveja é uma merda”. Esta, por sua vez, é reconhecidamente do âmbito que denominamos de “filosofia de pára-choque de caminhão”. Há como negar que a inveja é uma merda? Quando vemos alguém na prisão (principalmente na prisão política), com a vida inteirinha destroçada, e ainda assim invejado por quem está lá fora, em liberdade (e que o colocou na prisão), não é o caso de dizer “a inveja é uma merda?” Quando vemos alguém feliz e bem amado, sendo caçado pelo Poder de déspotas pequenos e grandes que, enfim, gastam uma vida fazendo isso, há como negar a frase “a inveja é uma merda”? Quando vemos aquele escritor que está no governo e fica remoído quando criticado por outro escritor – melhor que ele ou mais jovem ou mais promissor – e, então, pega o telefone e tenta pressionar o jornal para arrancar o crítico do seu emprego, há como negar a verdade da frase “a inveja é uma merda”? Não! Frases como “nada é tão difícil de ser perdoado quanto o talento”, da filosofia dos filósofos, e frases como “a inveja é uma merda”, da filosofia do caminhoneiro, têm o quê em comum? Uma coisa preciosa: elas não conseguem ser desmentidas. Não temos força contra elas. Quanto mais pensamos nelas, mais exemplos a seu favor surgem aqui e acolá. Uma boa reflexão filosófica seria esta: de onde vem a força de tais frases? Também aqui, uma boa resposta poderia significar um sucesso editorial.

Há filósofos que se esmeraram na produção de pequenos trechos, de aforismos e frases que podem muito bem sobreviver solitárias, sem perder conteúdo. Michael de Montaigne foi um deles (Nietzsche não!). Veja esta, de autoria dele: “Do mesmo papel em que lavrou a sentença contra um adúltero, o juiz rasgará um pedaço para nele escrever umas linhas amorosas à esposa de um colega”. Ela não se basta? Deveríamos comentá-la? Claro que não! É como um quadro que impacta: nada se deve dizer dele. É como aquele tipo de filme que é tão bom que não pode ser nem mencionado quando, após o cinema, vamos para o restaurante da pizza costumeira. Qualquer menção seria uma afronta à arte. Uma frase desse tipo, como a de Montaigne, se desprende de sua filosofia, de qualquer filosofia e literatura, e ao mesmo tempo se agarra a tudo e a tudo agarra. Quem ousar dizer qualquer coisa a mais que ela a respeito do assunto que ela parece abordar, está perdido – será inevitavelmente medíocre. Irá ficar com a cara (de débil mental) daquele tipo de homem de TV que, após fazer as perguntas ao entrevistado e tendo escutado uma resposta sofisticada, tenta “traduzir” para o telespectador o que supostamente este não teria entendido.

Os adágios são importantes na vida de cada um, tanto é que, para o mal ou para o bem, sempre acreditamos que podemos conhecer uma pessoa se soubermos a sua frase predileta. E os próprios filósofos dizem frases mostrando que são suas prediletas. William James pronunciou três que, se não eram suas principais, eram bem suas queridas. Primeira: “há uma única coisa que um filósofo pode contar como sendo o que ele faz, que é contradizer um outro filósofo”. Segunda: “a filosofia de um filósofo nada mais é que uma expressão de seu temperamento”. Terceira: “o senso comum e o senso de humor são a mesma coisa, movendo-se em diferentes velocidades. Um senso de humor é apenas o senso comum dançando”. Todas podem ser lidas solitariamente, mas não devem ser lidas assim. Vale a pena vê-las no contexto do pragmatismo de James.

© 2007/08

Paulo Ghiraldelli Jr. e Francielle Maria Chies, pelo CEFA

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