Dr. Google disse:

8. As raízes do paradigma indiciário segundo Carlo Ginzburg

Por marcoaydos

No ensaio que me inspirou a adotar o subtítulo desta teoria da prova, o historiador italiano Carlo Ginzburg sintetiza sua proposta dizendo que tentará

“mostrar como, por volta do século XIX, emergiu silenciosamente no âmbito das ciências humanas um modelo epistemológico (caso se prefira, um paradigma) ao qual até agora não se prestou suficiente atenção. A análise desse paradigma, amplamente operante de fato, ainda que não teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre ‘racionalismo’ e ‘irracionalismo’.” (Ginzburg, 2011, p. 143).

O ensaio de Ginzburg estrutura-se em duas partes: (1) descreve o paradigma indiciário, e (2) descreve a genealogia de um caso de conhecimento indiciário, contando as origens do conhecimento pericial que hoje conhecemos como papiloscopia.

O paradigma indiciário é descrito a partir do chamado “método morelliano” de atribuição de autoria nas artes plásticas. Entre 1874 e 1876, Giovanni Morelli publicou em alemão, sob pseudônimo de Ivan Lermolieff, suposto estudioso russo, uma série de artigos sobre a pintura italiana em que propôs um método novo de atribuição de autoria. Segundo Morelli, para atribuir corretamente autoria a obras não-assinadas e outras atribuídas de modo incorreto, mais que à visão total da obra seria preciso prestar atenção aos detalhes, aos “pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” (Ginzburg, 2011, p. 144).

Os escritos de Morelli apresentavam catálogos de orelhas típicas, com os quais o autor julgava atribuir corretamente um quadro que retratava uma orelha de Botticelli, por exemplo. O método foi considerado grosseiro, positivista e mecânico: estamos na idade de ouro da criminologia positivista: Cesare Lombroso publica em 1876 sua obra sobre O homem criminoso, cujo horizonte histórico é bem descrito em livro de Pierre Darmon, Médicos e assassinos na Belle Époque (1991, pp. 36ss). Mas Morelli não foi completamente ignorado: a pesquisa sobre a carreira do método morelliano leva Ginzburg a associação desse método à medicina, a partir de revelação de Sigmund Freud, em ensaio de 1914 sobre O Moisés de Michelangelo, cuja autoria Freud admitiu apenas mais tarde na edição de suas obras completas:

“Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar da psicanálise vim a saber que um especialista de arte russo, Ivan Lermolieff, cujos primeiros ensaios foram publicados em alemão entre 1874 e 1876, havia provocado uma revolução nas galerias de Europa recolocando em discussão a atribuição de muitos quadros a cada pintor (…) Foi depois muito interessante para mim saber que sob o pseudônimo russo escondia-se um médico italiano de nome Morelli (…) Creio que o seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas, através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou ‘refugos’ da nossa observação” (Freud, citado por Ginzburg, 2011, p. 147).

O método morelliano também havia sido comparado ao método atribuído, na mesma época, a Sherlock Holmes, por seu criador, Arthur Conan Doyle, o qual antes de dedicar-se à literatura havia sido médico.

Bem se vê que não é casual a confluência de três médicos na investigação de pistas normalmente negligenciadas dos fatos. A medicina hipocrática, lembra Ginzburg, “definiu seus métodos refletindo sobre a noção decisiva de sintoma (semeîon)” [transliteração alterada, MA]. Esse paradigma indiciário na medicina constituiu um paradigma implícito: “esmagado pelo prestigioso (e socialmente mais elevado) modelo de conhecimento elaborado por Platão” (Ginzburg, 2011, p. 155).

Ginzburg debita a marginalização do método indiciário à “cesura definitiva” sofrida pelas noções de “rigor” e “ciência” com o aparecimento da física galileana, pois “o grupo de disciplinas que chamamos de indiciárias (incluída a medicina) não entra absolutamente nos critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos, situações e documentos individuais, enquanto individuais“. Mais adiante, aponta a diferença em relação ao outro paradigma, pois:

“A ciência galileana tinha uma natureza totalmente diversa, que poderia adotar o lema escolástico individuum est ineffabile, do que é individual não se pode falar. O emprego da matemática e o método experimental, de fato, implicavam respectivamente a quantificação e a repetibilidade dos fenômenos, enquanto a perspectiva individualizante excluía por definição a segunda, e admitia a primeira apenas em funções auxiliares” (Ginzburg, 2011, p. 157).

Ginzburg aproxima a medicina à ciência da historiografia porque ambas descartam o paradigma galileano e assumem que “quando as causas não são reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos” (2011, p. 169). Na segunda parte do ensaio, Ginzburg busca na origem da papiloscopia a vertente marginal do paradigma indiciário, um tipo de saber que não se afeiçoa por abstrações mas por detalhes do evento único, irrepetível, individual. Relata como o método indiciário de identificação de criminosos surgiu na Europa por conta de uma necessidade social: a extinção do estigma. Antes, o criminoso reincidente, por exemplo, era marcado no corpo com o estigma do crime. Com a abolição do estigma (na França em 1832), surgiu um problema: como identificar o reincidente? E com o problema surgiram propostas de solução, entre elas a antropometria, a constituição do chamado “retrato falado”, por Bertillon (p. 174). Até que Willian Herschel, administrador do distrito de Hooghly, em Bengala, descobriu que no Oriente costumava-se “imprimir nas cartas e documentos uma ponta de dedo borrada de piche ou tinta”. Essa prática estava associada ao desenvolvimento de uma sensibilidade para a leitura dos sinais individuais, únicos, de cada indivíduo. A descoberta foi relatada por Herschel em 1880, na revista Nature, ao contar como “depois de dezessete anos de experiências, as impressões digitais foram introduzidas oficialmente no distrito de Hooghly, onde já eram usadas havia três anos com ótimos resultados” (p. 176). Desse artigo surgiu inspiração para a elaboração sistemática da papiloscopia por Galton, depois o método de identificação foi introduzido na Inglaterra, e gradualmente em todo o mundo (p. 177).

A conclusão junta as duas partes do ensaio. Interessado na revalorização da prova na historiografia, Ginzburg opõe ao paradigma dominante da abstração/quantificação/reprodubitilidade das ciências físicas – que ele chama de paradigma galileano – o paradigma da qualidade/individuação/irreprodutibilidade, do saber indiciário médico e policial (que associa ao conhecimento historiográfico). Ao descrever o método indiciário, Ginzburg conclui que aqui “entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição”. E é interessante registrar como o autor fugia e de repente libera o uso dessa palavra perigosa: intuição.

“Até aqui abstivemo-nos, escrupulosamente, de empregar esse termo minado. Mas, se se insiste em querer usá-lo, como sinônimo de processos racionais, será necessário distinguir entre uma intuição baixa e uma intuição alta. A antiga fisiognomia árabe estava baseada na firasa: noção complexa, que designava em geral a capacidade de passar imediatamente do conhecido para o desconhecido, na base de indícios. (…) Essa ‘intuição baixa’ está arraigada nos sentidos (mesmo superando-os) – e enquanto tal não tem nada a ver com a intuição supra-sensível dos vários irracionalismos dos séculos XIX e XX. É difundida no mundo todo, sem limites geográficos, históricos, étnicos, sexuais ou de classe – e está portanto muito distante de qualquer forma de conhecimento superior, privilégio de poucos eleitos. É patrimônio dos bengaleses, expropriados do seu saber por sir Willian Herschel, dos caçadores, dos marinheiros, das mulheres. Une estreitamente o animal homem às outras espécies animais” (Ginzburg, 2011, p. 179).

Problemática

Se descontarmos a retórica politicamente correta da conclusão anti-eurocêntrica de Ginzburg, o ensaio é interessante, principalmente porque, no contexto do que desenvolvemos até aqui nesta teoria da prova, suscita mais problemas que soluções. Pois: 1. Será possível falar num “paradigma indiciário” que resolva o problema da contraposição entre racionalismo/irracionalismo? 2. Que tipo de racionalidade está envolvida nessa capacidade identificada pelo tal paradigma indiciário? 3. Se esse paradigma é aplicável à medicina e às investigações policiais, em que medida estas duas práticas são parecidas com a historiografia, para que nos seja autorizado associá-las na mesma classe? 4. Isso que Ginzburg identifica como modo indiciário é um paradigma ou uma epistemologia? Não será preciso discutir antes em que sentido se pode falar em epistéme na historiografia? 5. E outro problema que não é pequeno: que sentido pode ter falar em “intuição” numa teoria da prova? 6. Que é intuição e como funciona? 7. Como é possível, enfim, seguir usando de empréstimo a expressão de Ginzburg de modo consistente com a moldura filosófica geral de nossa teoria da prova? 8. Mas qual era mesmo a moldura filosófica de nossa teoria da prova?

Referências:

Darmon, Pierre 1991: Médicos e assassinos na “Belle Époque”: a medicalização do crime. Tradução de Regine Grisse de Agostino. Rio de Janeiro, Paz e Terra; Ginzburg, Carlo 2011: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras.

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