Carta 07

A QUE será que se destina a vida, senão pela busca incansável ao amor verdadeiro? Outra razão não teria, tão árdua itinerância. A dor no limite da parturiente, só se justifica pela luz que vai dar. A nova vida findará a tua dor.

Assim é também a vida que vem sem pedir e sem direito de dizer não, autoritariamente é colocada aqui e obrigada a carregar o peso da insuportabilidade da existência que se confunde com a dor para além do limite. Por isso, a vida precisa de uma finalidade maior que ela mesma, para justificá-la e torná-la suportável. Tal finalidade só pode ser o verdadeiro amor que alguns preferem chamar de felicidade.

Em vão procura os homens essa tal finalidade por toda a sua itinerância em lugares excêntricos e nas coisas efêmeras criadas por eles mesmos devido à incapacidade de abraçarem o fim último e maior de sua própria existência. Compram-no, vendem-no, alugam-no como se fossem proprietários ou posseiros únicos e particulares daquilo que não lhes pertence que, em verdade, não têm: o amor da felicidade, que nunca é nosso, é de ninguém, ele está no outro e não pode ser usufruído por ele e nem por nós isoladamente, ele só é possível ao par, ao Eu com o Outro.

Aquele que nos pertence, por assim dizer, é o amor próprio, individual, que ao contrário do amor da felicidade, nunca pode ser doado, nem permitido, pois ele se confunde com o próprio indivíduo. O amor próprio - aquele indisponível ao outro - é o que se torna no extremo, empecilho ao amor da felicidade – o que não pode ser negociado - que é doado e recebido justo por não haver pago a algo que é da vida finalidade última, maior em sua verdade que ela própria.

Uns em sua itinerância passam por ele sem acolhê-lo, ignorando-o seguem em suas estradas sem chegada, sem onde ir. Outros, só o percebem no ápice da sua decrepitude, quando então, lembram que não quiseram recebê-lo em sua mocidade, pois estavam apressados, com seus sentidos ocupados em objetos de prazeres fáceis e passageiros, senão alucinados pela obtenção da fortuna, hoje infortúnio em seu leito de morte.

Outros ainda, tão embevecidos estão em teu amor próprio, que sequer se dispõem a ele. - Dissabores que amargam os lábios em pleno beijo - e fazem arder os olhos em lágrimas frias e cortantes como fio invisível de navalha, além de mutilar primeiro o coração.

O amor próprio renega o amor da felicidade e faz o nosso corpo pesar o dobro a cada passo dado em direção a lugar nenhum. Ao contrário, o amor da felicidade tira-nos o peso do corpo e nos faz planar como a um pássaro de asas abertas por sobre as nuvens da tempestade.

Mas, para nossa angústia eterna, raramente o oferecemos e o recebemos em igual grau de verdade, pois se isso acontecer, tal qual a luz dada pela parturiente, que é a causa finda de tua dor, o amor da felicidade será a causa-mortis de nossas vidas, pois ao o doarmos e recebermos, a vida finda em sua finalidade e toda itinerância não terá mais a justificativa que a faz necessária. A dor da existência finda-se na aceitação desinteressada deste fim último que é o amor da felicidade.

Alcançar a finalidade da vida é morrer, é chegar ao fim do caminho, é não precisar mais caminhar, é parar para desfrutar, é a contemplação plena e eterna da realização do desejo maior da vida que é a felicidade, conteúdo único do amor verdadeiro, por isso é também antinomia da própria vida. É então este e somente este, o motivo de nossa negação ao amor da felicidade. Para que a busca continue é preciso negá-lo e é isso que faz nossa itinerância. Em outros termos: a felicidade é o fim da dor, e a dor é o que dá vida à existência, com o amor finda a dor, sem a dor finda a existência.

Por medo, por covardia, por incapacidade ou por conservação, o homem doa as suas, mas é incapaz de receber as incapacidades do outro. No outro o que queremos é a capacidade naquilo que não somos capazes, o outro por sua vez, o que quer de nós é também a capacidade naquilo que não é capaz. Estamos todos tentando suprir nossas incapacidades na capacidade do outro, sem, no entanto, aceitarmos as incapacidades humanas destes.

Não percebemos que é justamente essa negação que torna a vida insuportável a todos, por vivermos negando o motivo real e verdadeiro que a justifica , vivemos em busca do amor que nos traga a felicidade e, na eminência de encontrá-lo, o negamos para viver.

Aí reside a insuportabilidade da vida, uma “desnecessariedade” sem fim, já que a verdade dos extremos opostos, acaba por anular a validade da questão posta, que no caso é a vida.

De outro modo; vamos carregando o peso de nosso corpo e nos relacionando na lógica da negação enquanto passeamos por uma paisagem em contagem regressiva de tempo, tentando ocupar o vazio de nossas vidas com o nada que há no interior de cada coisa, já que o amor da felicidade não é para ser vivido e sim para ser pretendido.

Concordo com Sartre¹ em forma, quando disse que o outro é o nosso inferno, mas não em conteúdo, quando justifica, que por ser nosso juiz. Penso que o outro é o nosso inferno justamente por tirar nossa vida, não pela violência, mas sim pela ilusão do amor da felicidade.

Janeiro, de 2000

Westerley

1 - Jean-Paul Sartre. Fr. (1905-1980) Filósofo Existencialista

Carta Filosófica Nº 07