Carta 14

Da ignorância procede toda a desigualdade,

e desta provém toda a estupidez.

Até aquela em que os indivíduos

se sentem diferentes de sua própria espécie.

Carta Filosófica Nº 14

HOJE resolvi pensar sobre a desordem dos meus pensamentos. Talvez na intuita intenção de encontrar a causa do meu agir descoordenado do mundo dos homens. Talvez para entender porque estou sempre em conflito com aqueles que me cercam, ou ainda, para consolar-me diante de mim mesmo. Não sei!

Que conteúdo teria este fardo que sinto menos em minhas costas que em minha mente e que se revela nas expressões vincadas de meu rosto? Que causa teria tantas desilusões conseqüentes das relações com os homens, desde àquele a quem confio meu coração, àqueles em que Deus confiou o seu mundo? Seria meu descontentamento um sinal de que sou um estranho a mim mesmo, antes de sê-lo para todos?

Meus pensamentos não coadunam com o mundo dos homens. Creio, porque percebo que os homens já não se reconhecem mais uns nos outros. Meu agir me parece anacrônico, as ações dos homens deixaram de ser, em princípio, humanas, degeneram-se em ações técnicas, econômicas e estéticas.

Os homens agem hoje tecnicamente, não se reconhecem mais como sujeitos e sim como números, estatística, partes de um todo piramidal extremado em base e topo, pobres e ricos; somos massa, fatias de pizzas coloridas em belos gráficos tridimensionais, somos registros, matrículas, códigos. Não estamos mais voltados para fora, somos agora, internautas, interfaces; não há mais encontros, há conexões; não estamos mais juntos, estamos conectados; não entramos mais nas salas das casas uns dos outros, entramos nos “sites” das telas, não fazemos mais amor; fazemos sexo virtual.

Meus pensamentos não condizem mais com o mundo dos homens. Creio, porque os homens já não se reconhecem mais como indivíduos humanos, são, em princípio, objetos. Os homens agem hoje economicamente, não somos mais seres, somos entes; não somos mais sujeitos, somos clientes; não somos mais cidadãos, somos consumidores; não há mais sociedades, há mercados. Não somos mais movidos pelos desejos de trocar, vivenciar e de crescer com o outro; temos agora necessidades, de comprar e vender, investir, lucrar e vencer o outro.

Meus pensamentos não comungam com o mundo dos homens, creio, porque os homens já não se percebem mais em si mesmos. Em princípio, os homens agem esteticamente, não se contentam mais com o seu natural, criam clones; não são mais de carne, são de silicone; não são mais definidores, são agora definidos; não são mais sãos, são sarados; não se rejuvenescem mais nos afetos das relações, mas sim nas facas dos cirurgiões. Negam a luz natural do sol e douram-se como pílula em sessões de bronzeamento artificial.

Meus pensamentos não coincidem com o mundo dos homens, creio, porque os homens não agem mais impulsionados pelo amor, parece-me que o amor caiu em desuso e, não só, tornou-se um sentimento ininteligível aos corações dos homens deste tempo, a ponto de não saberem mais amar e agregarem ao amor, condicionante social. O amor não é mais transcendente ele é agora, equivalente.

Meu conflito não é com aqueles que me cercam, é sim, com o que cerca e aparece antes daqueles que me cercam. Meu conflito está na luta do cogito com os chips, do quid com o vip, do cór com o card, da liberdade com o cárcere, do andrógino com o humano.- Não sou contra os tempos em atitude rebelde, sou contra os relógios em atitude insubmissa.

Minha consolação está no meu ser e na minha busca, não de mudar o mundo dos homens, mas de não deixá-lo mudar o meu. É meu descontentamento que me faz agir desconforme deste mundo.

Meus pensamentos fora da ordem e meu agir descoordenado desta realidade são para mim, sinais vitais de que posso ser um estranho para o mundo dos homens, mas não para o mundo humano.

Julho, de 2000

Westerley