ENTREVISTA – PROF. FERNANDO REY PUENTE

ENTREVISTA – PROF. FERNANDO REY PUENTE

Fonte: Blog do Instituto HYPNOS

Dando continuidade à série de entrevistas que discute a filosofia em nosso país, conversamos com Fernando Rey Puente, professor da UFMG e autor, entre outros, de Os sentidos do tempo em Aristóteles (Ed. Loyola). Puente apresenta os aspectos positivos e negativos da popularização da filosofia, além de analisar criticamente os problemas que envolvem a sua inserção como disciplina obrigatória no ensino médio, sobretudo a preparação de professores e de material pedagógico. De acordo com ele, o que está em questão é a formação de “bons professores” e a capacidade de “traduzir” os temas filosóficos para o leigo sem que isso resulte numa redução ou mesmo banalização da filosofia. Com a mesma parcimônia, o professor chama a atenção para os usos indistintos do termo “filósofo” e as confusões que eles podem causar . Confira.

Hypnos - Hoje, no Brasil, existe uma necessidade pela reflexão filosófica. O crescente número de publicações que recorrem à filosofia e aos filósofos, como os diários, as revistas culturais, assim como os cursos livres de filosofia e até mesmo a sua volta como disciplina obrigatória no curso médio parecem demonstrar isso. Qual sua análise desse fenômeno: a filosofia está na “moda”? Trata-se de um aspecto positivo ou, antes, representa uma redução dos conteúdos discutidos e ensinados nos programas de filosofia das universidades?

Fernando Rey Puente – Acredito que esse fenômeno do retorno da filosofia seja, em geral, positivo, ainda que evidentemente isso também produza certa banalização da filosofia. Note-se, contudo, que a ampla divulgação de um tipo de atividade humana não é algo exclusivo de nossa área, pois ocorre o mesmo em relação a outras atividades fundamentais da vida humana, como, por exemplo, a arte ou a ciência. Em uma sociedade de massas, como a nossa, não se pode ignorar a força do mercado na divulgação das atividades culturais.

As editoras e os cursos livres de filosofia a que você se refere, por exemplo, querem vender seus produtos, lucrar, e muitas vezes fazem isso sem se preocupar suficientemente com o conteúdo que do que estão divulgando. Mas aqui é necessário separar o joio do trigo. Como todas as questões importantes da vida humana esse fenômeno de popularização da filosofia traz consigo aspectos negativos, mas também e sobretudo aspectos positivos.

A inclusão da filosofia como disciplina obrigatória no ensino médio no Brasil me parece ser um aspecto muito positivo, apesar das dificuldades e problemas operacionais que isso acarretará em um futuro próximo motivados seja pela falta de profissionais competentes no mercado seja pela falta de bons livros didáticos de filosofia direcionados para os alunos do ensino médio.

Evidentemente, é preciso adaptar a linguagem quando se escreve sobre a filosofia (ou sobre a ciência) para um público mais amplo e isso, em si mesmo, não deveria implicar uma redução do conteúdo tratado, mas apenas uma espécie de tradução do mesmo para um público não especializado. A filósofa francesa Simone Weil (1909-1943) dizia com muita clareza que era fundamental disponibilizar os clássicos gregos para o povo e que essa tarefa não engrandeceria o povo, como se costuma pensar, mas sim as próprias obras adaptadas. Ela chamava essa tarefa de “tradução” e ela mesma procurou realizá-la por meio de alguns textos que escreveu, a fim de divulgar algumas obras de arte da civilização grega como, por exemplo, o seu contundente ensaio sobre a Ilíada (“A Ilíada ou o poema da força”). Na verdade, como afirma um dos maiores novelistas da atualidade, Javier Marias, filho do conhecido filósofo espanhol Julián Marias, estamos sempre traduzindo. Isto é: quando falamos com nossos amigos não falamos do mesmo modo que quando falamos com nossos pais, com nossos filhos ou com nossos colegas de trabalho. Estamos sempre adaptando a linguagem a um uso específico e isso, em si mesmo, em nada a deveria diminuir. O problema, no entanto, consiste no fato de que a maior parte de nós não é mais capaz de dominar suficientemente a sua própria língua e isso dificulta imensamente a transmissão de um determinado conteúdo seja ele filosófico ou de outra natureza para públicos não especializados. Acredito, contudo, que seja plenamente possível falar de assuntos complexos e difíceis de modo claro e compreensível. Afinal, como dizia Ortega y Gasset, a clareza é a cortesia do filósofo.

Hypnos – Especialistas das mais diversas áreas se apresentam como filósofos talvez porque há, por parte dos estudiosos dessa disciplina, uma resistência em se auto-intitularem filósofos (até jornalistas fazem isso!). Afinal, a quem cabe o título de filósofo hoje?

Fernando Rey Puente – Bem, a linguagem é pública e, portanto, do ponto de vista do uso coloquial que dela se faz, inúmeras pessoas no Brasil seriam “Doutores”. De modo geral, em nosso país, qualquer um, por exemplo, que vai abastecer seu carro passa a ser chamado de “Doutor” pelo funcionário do posto. Igualmente, muitos médicos e dentistas, dentre outros profissionais, se auto-intitulam “Doutores” e são assim tratados por suas secretárias e pelos seus pacientes sem que de fato eles tenham realmente defendido uma tese de doutorado. Ou seja: a linguagem é viva e cria modos de tratamento que muitas vezes não coincidem com a realidade institucional que preside o uso legalizado da linguagem. De um ponto de vista estritamente institucional, por exemplo, somente quem defendeu um doutorado poderia e deveria usar o título de Doutor. E, no Brasil, em função de um Decreto imperial de 1827, até hoje não revogado (!), também os que possuem graduação em um curso de Direito podem oficialmente usar esse título.

A digressão acima é apenas para ilustrar que o título de filósofo, como outros, tem pelo menos dois usos distintos: um estritamente institucional e regularizado e outro popular. Do ponto de vista estritamente jurídico, filósofo é o profissional que se formou em um curso superior de Filosofia, mas cotidianamente usa-se o termo para se referir a quem quer que pareça ter novas ideias ou que escreva sobre temas ditos “filosóficos”. Uma complicação adicional vem do fato que os profissionais da área, não se sentem confortáveis de assumir o título de filósofos, pois associam a esse termo nomes como Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Kant e tantos outros célebres pensadores, preferindo então se autodenominarem apenas como “professores” de filosofia. Agrega-se aos dois sentidos acima referidos, um terceiro, havendo, portanto, pelo menos três acepções distintas do termo “filósofo” – o profissional formado em Filosofia, o filósofo no sentido popular e o grande pensador – e ao usá-las indistintamente, produz-se uma confusão terminológica.

Quando se faz um paralelo com outras áreas, parece-me que ocorre o mesmo. Alguém formado em Letras, por exemplo, não se auto-intitula escritor ou poeta. Por outro lado, muitos jornalistas podem se auto-intitular escritores e ainda podemos pensar que o termo escritor só possa ser usado adequadamente ao nos referirmos aos grandes escritores.

Em minha opinião, me parece salutar reconhecer uma distância entre nosso trabalho de divulgação e ensino de filosofia e o trabalho de criação conceitual propriamente dito de um pensador. Por vezes, alguns grandes pensadores foram, e, é claro, ainda podem ser, professores de Filosofia (essa conjunção se deu inicialmente nas nascentes universidades medievais e será retomada, posteriormente, com mais força ainda nas universidades modernas), mas, note-se, isso não é uma condição necessária. Ou seja: podemos pensar, por um lado, em grandes pensadores da humanidade que nunca foram professores no sentido estrito que podemos dar ao termo e, por outro, temos uma vasta legião de professores de Filosofia que nunca foram verdadeiramente pensadores criativos. O trabalho desses últimos, porém, longe de ser desprezível me parece de grande importância. Aqui também basta pensar em analogia com outras áreas para se perceber esse fato. Nem todo musicista, por exemplo, é um compositor inovador, mas se não fossem os primeiros, ou seja, se não houvesse professores de música e músicos que tocassem diversos instrumentos não poderia haver novos criadores da linguagem musical e nem novas composições sendo executadas.

Com tudo isso quero dizer apenas que nossa profissão de professores de Filosofia, quer do ensino médio quer do superior, é fundamental para que possam surgir pensadores originais e profundos dentre nós e que possam desempenhar o papel fundamental de refletir filosoficamente sobre a língua portuguesa.

Hypnos – Quais os problemas que os cursos de Filosofia enfrentam para preparar professores e material para o ensino médio? Em sua opinião, a academia está interessada em discutir esse aspecto? A impressão que tenho é que os especialistas veem essas questões como menos importantes – isso quando chegam a pensá-las -, por preocuparem-se mais em desenvolver suas pesquisas.

Fernando Rey Puente – Acho que esse é o grande desafio nesse momento para nós no Brasil. Após muitos anos, nossos mais importantes centros de pesquisa em Filosofia se mostram plenamente capazes de formar o aluno com o perfil do pesquisador, ou seja, o profissional que vai tentar ser professor em uma universidade, mas acho que ainda não sabemos bem como formar o professor do ensino médio e isso me parece uma questão fundamental, pois com a inclusão do ensino obrigatório da Filosofia no ensino médio, haverá nos próximos anos uma demanda imensa por profissionais qualificados e por textos adequados com os quais esses profissionais deverão trabalhar.

Não podemos, contudo, isolar o debate sobre essa questão de um âmbito político-econômico maior no qual ele se insere. Se os profissionais do ensino médio, por exemplo, ganhassem tanto quanto os profissionais do ensino superior, nós certamente estaríamos diante de um outro panorama. Hoje em dia, os jovens filósofos (no sentido institucional do termo) querem ingressar nas universidades porque sabem que nelas eles ganharão muito mais do que se trabalharem no ensino médio e principalmente porque nelas eles poderão desenvolver as suas pesquisas dentro de um quadro de progressão salarial e profissional.

De modo geral, acho que sua impressão é correta, isto é, para muitos dos profissionais do ensino superior parece-lhes uma questão menor a adoção da Filosofia no ensino médio. Mas, não se pode ignorar tampouco que há muitos professores universitários realmente interessados em pensar nas questões didáticas e nos problemas que o ensino da Filosofia no ensino médio produzem. E sobretudo há muitos jovens, como você mesmo, que já estão enfrentando a realidade do ensino da Filosofia no ensino médio e de quem, espero, possam vir novas ideias e novas abordagens tanto do ponto de vista das aulas quanto dos livros que os alunos poderiam adotar.

Hypnos – Recentemente, você publicou O tempo, livro que faz parte da coleção Filosofias: o Prazer do Pensar, da editora VMF Martins Fontes. Ele foi preparado pensando tanto nos cursos introdutórios de filosofia como nos cursos do ensino médio. Surpreenderia se eu dissesse a você que a maioria dos alunos da rede pública de ensino não consegue seguir a abordagem do tema, porque lhes falta formação básica para isso (leitura e interpretação de textos, matemática e ciências, literatura etc.)? Será que um professor universitário tem a dimensão da carência de nossos alunos? Como fazer filosofia nesse contexto?

Fernando Rey Puente – Não, isso não me surpreenderia nem um pouco porque ao lecionar na UFMG para alunos dos dois primeiros semestres do curso de Filosofia, tenho praticamente a mesma experiência que você tem com esses alunos do ensino médio e conheço, portanto, bastante bem o imenso despreparo com o qual eles chegam às universidades. Não há nenhum passe de mágica que faça com que os alunos do ensino médio se transformem totalmente ao passarem em um vestibular, de modo que todo professor universitário que tenha a possibilidade de lecionar nos primeiros semestres do curso sabe perfeitamente a deficiência e o limite dos alunos do ensino médio porque esses são, na realidade, seus próprios alunos.

Mais especificadamente, em relação à menção que você faz a meu livro, queria apenas dizer que ele pertence a uma coleção e que os autores que nela escrevessem teriam de seguir um modelo de apresentação do material proposto pelos organizadores, de modo a que se obtivesse certa padronização no tratamento de temas tão distintos escritos por autores tão diversos. Só posso dizer em minha defesa que tentei realizar dentro desse padrão o melhor que pude. Caso, entretanto, o livro não seja adequado aos alunos, não vejo problema algum nisso, pois outros livros mais adequados com certeza surgirão. Todavia, queria apenas advertir-lhe que é preciso muita cautela em relação ao tema do despreparo dos alunos. Na minha opinião, temos de oferecer mais para eles, mesmo que eles não possam assimilar tudo aquilo que queremos no momento que queremos. Para mim, não há outro modo de crescermos intelectualmente ou de estimular o crescimento intelectual dos demais. Além disso, acredito que mais importante do que os livros, é a figura do professor do ensino médio e mesmo o do ensino superior. E aqui novamente não podemos ignorar a “cobrança” a que estamos submetidos por parte das agências de fomento, enquanto professores universitários, para produzir, orientar, participar e organizar eventos, etc. Note-se, contudo, que somos muito menos “cobrados” qualitativamente por nossas aulas. Com relação às revistas e agora também em relação aos livros, as agências de fomento usam critérios de qualificação para avaliar esse material, mas e em relação às aulas? Como qualificá-las? Aqui sim acho que entramos em território proibido, pois todos nós acreditamos que somos bons professores. Mas o que é de fato ser um bom professor de Filosofia? Como saber se podemos nos aproximar desse ideal? Como avaliar isso sem causar constrangimentos e embaraços em um ambiente já tão melindrado por vaidades e vanglorias? Por fim, gostaria apenas de relembrar-lhe que Sócrates nunca escreveu nenhum livro e que nós o consideramos, graças evidentemente ao seu discípulo mais genial, Platão, como o eterno patrono dos filósofos. De modo que, em minha opinião, mesmo se durante um tempo mais ou menos longo ainda não pudermos contar com bons livros didáticos de filosofia voltados para o ensino médio no Brasil, poderemos sempre contar com bons profissionais formados para incitar a reflexão e o pensamento crítico em seus alunos. Creio que é por isso mesmo que nos é tão importante e urgente repensar a formação dos futuros filósofos não apenas como pesquisadores, mas sobretudo como professores do ensino médio ou até mesmo do superior. Bons professores, creio, podem ser formados mais rapidamente do que bons livros podem ser escritos. Logo, os bons professores é que devem ser o esteio principal do ensino da filosofia no ensino médio, os livros devem servir-lhe apenas como um apoio e um suporte para as suas aulas.

categorias: Comunicação, CulturaGeral, Educação, Juventude, Opinião, VeredaFilosófica

Local original de onde a entrevista foi copiada

Data de criação desta página: 16 de nov de 2013 - 10:28

Todos os LINKS acima estão quebrados -um problema recorrente na internet. Ainda bem que copiei e preservei a entrevista.

José Antônio da Conceição

em 10/05/2019 - 01:08