Do Contrato Social - Livro III

LIVRO III

Antes de falar das diversas formas de governo, tratemos de fixar o sentido exato desta palavra, não perfeitamente explicado ainda.

I – Do governo em geral.

Advirto o leitor de que este capítulo deve ser lido pausadamente; desconheço a arte de ser claro para quem não deseje ser atento.

Toda ação livre tem duas causas, que concorrem para produzi-la: uma, moral, a saber, a vontade que determina o ato; outra, física, isto é, o poder que a executa. Quando caminho na direção de um objeto, faz-se primeiramente necessário que eu lá queira ir; em segundo lugar, que meus pés me levem. Que um paralítico deseje correr e um homem ágil não queira, dá na mesma: ambos permanecerão no mesmo sítio. O corpo político possui móbiles idênticos: distinguem-se igualmente aí a força e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo, a outra sob o nome de poder executivo. Sem o concurso de ambas, nada se faz ou se deve fazer.

Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e só a ele pode pertencer. E, ao contrário, é fácil ver pelos princípios anteriormente expostos, que o poder executivo não pode pertencer ao maior número como legislador ou soberano, pelo fato de este poder só consistir em atos particulares que não são de modo algum da jurisdição da lei, e, por conseguinte, do soberano cujos atos não podem ser senão leis.

Necessita, pois, a força pública de um agente próprio que a reuna e a ponha em funcionamento segundo os rumos da vontade geral, que sirva à comunicação do Estado e do soberano, e faça de alguma forma na pessoa pública o que a união da alma e do corpo faz no homem. Eis em que consiste no Estado a razão do governo, enganosamente confundida com o soberano, da qual não é senão ministra.

Que é, portanto, o governo? Um corpo intermediário, estabelecido entre os vassalos e o soberano, para possibilitar a recíproca correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política.

Os membros desse corpo chamam-se magistrados, ou reis, governadores, e o corpo, em seu conjunto, recebe o nome de príncipe (16). Assim sendo, têm muita razão os que pretendem que o ato pelo qual o povo se submete a chefes não constitui um contrato. Tal coisa não passa de uma comissão, ou de um emprego, através do qual simples oficiais do soberano exercem, em seu nome, o poder de que são depositários, e que ele, soberano, pode limitar, modificar e retomar, quando bem lhe aprouver; porque a alienação de um tal direito é incompatível com a natureza do corpo social e contrária ao fim da associação.

Chamo, pois, governo, ou suprema administração, ao exercício legítimo do poder executivo; e príncipe ou magistrado, ao homem ou ao corpo incumbido dessa administração.

É no governo que se encontram as forças intermediárias cujas relações compõem a do todo ao todo, ou a do soberano ao todo. Pode-se representar essa última relação pela dos extremos de uma proporção contínua, cuja média proporcional é o governo. Do soberano recebe o governo as ordens a serem dadas ao povo, e para que o Estado se mantenha em perfeito equilíbrio, se faz mister, tudo compensado, haja igualdade entre o produto ou o poder governamental, tomado em si mesmo, e o produto ou o poder dos cidadãos, que, de um lado, são soberanos, e vassalos de outro.

Além disso, não seria possível alterar nenhum dos três termos, sem imediatamente romper a proporção. Se o soberano quiser governar, ou se o magistrado quiser legislar, ou se os vassalos recusarem obedecer, a desordem sucederá à regra, a força e a vontade não mais agirão de acordo, e o Estado, uma vez desunido, tombará no despotismo ou na anarquia. Enfim, como não há senão uma média proporcional entre cada relação, não há também senão um bom governo possível num Estado. Entretanto, como acontecimentos mil podem vir a mudar as relações de um povo, não apenas diferentes governos são passíveis de serem bons para diversos povos, como também para o mesmo povo em diferentes épocas.

A fim de dar uma idéia das diversas relações capazes de imperar entre esses dois extremos, tomarei para exemplo a quantidade do povo, como uma relação mais fácil de exprimir.

Suponhamos seja o Estado composto de dez mil cidadãos. O soberano não deve ser considerado senão coletivamente e em corpo. Cada partícula; porém, na qualidade de vassalo, é considerado como indivíduo. Assim, o soberano está para o vassalo na proporção de dez mil para um, isto é, cada membro do Estado possuí a décima milésima parte da autoridade soberana, embora esteja todo inteiro a ela submetido. Seja o povo constituído de cem mil homens, o estado dos vassalos não muda, e cada qual suporta igualmente todo o império das leis, ao passo que o seu sufrágio, reduzido a um centésimo-milésimo, é dez vezes menos influente na sua relação. Então, como o vassalo permanece sempre um, aumenta a relação do soberano em razão do número dos cidadãos; de onde se segue que quanto mais o Estado cresce, mais diminui a liberdade.

Quando eu digo que a relação aumenta, entendo que se afasta da igualdade. De maneira que quanto maior é a relação, no conceito dos geômetras, menos relação existe no conceito comum; no primeiro caso, a relação, considerada consoante a quantidade, é medida pelo exponente; e no segundo, considerada conforme a identidade, é avaliada pela similitude.

Ora, quanto menos as vontades particulares se relacionam com a vontade geral, isto é, os costumes, as leis, tanto mais deve aumentar a força repressiva. Portanto, para ser bom, deve o governo ser relativamente mais forte à medida que o povo seja mais numeroso.

Por outro lado, dando o engrandecimento do Estado aos depositários da autoridade pública maior número de tentações e meios de abusar de seu poder, de mais força necessita o governo para conter o povo, e mais força requer o soberano para conter o governo. Não falo aqui de uma força absoluta, mas da força relativa das diversas partes do Estado.

Segue-se dessa dupla relação que a proporção contínua entre o soberano, o príncipe e o povo, não constitui em absoluto uma idéia arbitrária, mas uma conseqüência lógica da natureza do corpo político. Segue-se ainda que, estando um dos extremos, isto é, o povo, na qualidade de vassalo, fixo e representado pela unidade, todas as vezes que a razão duplicada aumenta ou diminui, a razão simples, do mesmo modo, aumenta ou diminui, e, por conseguinte, o meio-termo é mudado; o que demonstra não haver apenas uma constituição de governo único e absoluto, mas tantos governos de distinta natureza quantos Estados de diferentes grandezas.

Se, ridicularizando esse sistema, se dissesse que para achar a média proporcional e formar o corpo do governo, é preciso, como entendo, extrair a raiz quadrada do número do povo, eu responderia que não tomo aqui o número a não ser por um exemplo, que as relações de que falo não se medem apenas pelo número de homens, mas em geral pela quantidade de ação, que se combina por infinidades de causas; que, de resto, se, para me expressar em menos palavras, tomo de empréstimo alguns termos de Geometria, nem por isso ignoro que a precisão geométrica não tem lugar nas quantidades morais.

O governo é, em pequena escala, o que o corpo político, que o encerra, é em grande escala. Constitui uma pessoa moral, dotada de determinadas faculdades, ativa como o soberano, passiva como o Estado, suscetível de ser decomposta em outras relações semelhantes: de onde nasce, por conseguinte, uma nova proporção, e ainda outra nesta aqui, segundo a ordem dos tribunais, até que se chegue a um meio-termo indivisível, isto é, a um único chefe ou magistrado supremo, que podemos representar. em meio dessa progressão, como a unidade entre a série das frações e a dos números.

Sem nos embaraçarmos nessa multiplicação de termos, contentemo-nos de considerar o governo como um novo corpo no Estado, distinto do povo e do soberano, e intermediário entre um e outro.

Entre esses dois corpos ocorre esta diferença essencial: é que o Estado existe por si mesmo, ao passo que o governo só existe devido ao soberano. Assim, a vontade dominante do príncipe só é ou só deve ser a vontade geral da lei; sua força é a força de todos concentrada em si; tão logo pretenda ele extrair de si mesmo algum ato absoluto e independente, a ligação do todo começa a afrouxar. Se enfim acontecesse ter o príncipe uma vontade particular mais ativa que a do soberano para exigir obediência a essa vontade particular, fizesse uso da força pública que tem em mãos, de sorte a que houvesse, por assim dizer, dois soberanos, um de direito e outro de fato, a união social se esvaeceria no próprio instante, e o corpo político seria dissolvido.

Todavia para que o corpo do governo tenha uma existência uma vida real que a distinga do corpo do Estado, a fim de que todos os seus membros possam agir de acordo e responder ao objetivo para o qual foi instituído, é-lhe necessário um eu particular, uma sensibilidade comum a seus membros, uma força, uma vontade própria, tendentes à sua conservação. Tal existência particular supõe assembléias, conselhos, um poder de deliberar, de resolver, direitos, títulos, privilégios exclusivos do príncipe, que tornam a condição do magistrado mais honorável à proporção que mais penosa. As dificuldades estão na maneira de ordenar, no todo, nesse todo subalterno, de forma a nada alterar na constituição geral, em afirmando a sua; que distinga sempre sua força particular, destinada à própria conservação, da força coletiva destinada à conservação do Estado, e que, numa palavra, se mostre sempre prestes a sacrificar o governo ao povo, e não o povo ao governo.

De resto, apesar de o corpo artificial do governo ser obra de um outro corpo artificial, e, de algum modo, ter apenas uma vida emprestada e subordinada, isso não impede possa ele agir com mais ou menos vigor ou celeridade; desfrutar, por assim dizer, de uma saúde mais ou menos robusta; e, enfim, sem se afastar diretamente do objetivo de sua instituição, dele se manter mais ou menos distante, segundo a maneira por que está constituído.

É de todas essas diferenças que nascem as diversas relações do governo com o corpo do Estado, conforme as relações acidentais e particulares pelas quais este mesmo Estado vem a modificar-se; porque o melhor governo em si, se tornará freqüentemente o mais vicioso, se as relações se tiverem alterado, de acordo com os defeitos do corpo político a que pertencem.

II – Do princípio que constitui as diversas formas de governo.

A fim de expor a causa geral dessas diferenças, urge distinguir aqui o príncipe e o governo, como distingui anteriormente o Estado e o soberano.

O corpo do magistrado pode ser composto de um maior ou menor número de membros. Dissemos já que a relação do soberano com os vassalos era tanto maior quanto mais numeroso fosse o povo, e, por evidente analogia, o mesmo podemos dizer do governo em relação aos magistrados.

Ora, desde que a força total do governo continue a ser do Estado, em absoluto não varia; de onde se segue que, quanto mais ele use essa força sobre seus próprios membros, menos força lhe resta para agir sobre todo o povo.

Portanto, os magistrados são tão mais numerosos quanto mais débil se mostre o governo. E como esta máxima é fundamental, apliquemo-nos a melhor esclarecê-la.

E possível distinguir na pessoa do magistrado três vontades essencialmente diferentes. De início, a vontade própria do indivíduo, que só propende em favor de seu interesse particular; em segundo lugar, a vontade comum dos magistrados, que apenas se relaciona ao que ao príncipe interessa, ou se a, a vontade do corpo como pode ser chamada, a qual é geral em relação ao governo, e particular relativamente ao Estado, de que o governo faz parte; em terceiro lugar, a vontade do povo ou a vontade soberana, que é geral não só em relação ao Estado, considerado como um todo, como também em relação ao governo, considerado como parte desse todo.

Numa legislação perfeita, a vontade particular ou individual deve ser nula; a vontade do corpo, própria ao governo, bastante subordinada; e, por conseguinte, a vontade geral ou soberana sempre dominante é a regra única de todas as outras.

Contrariamente, de acordo com a ordem natural, essas diversas vontades se tornam mais ativas à medida que se concentram. Assim, a vontade geral revela-se sempre a mais débil, a vontade do corpo a segunda em categoria, e a vontade particular a primeira de todas; de sorte que, no governo, cada membro e, antes de mais nada, ele mesmo, e depois magistrado, e em seguida cidadão, graduação diretamente oposta à exigida pela ordem social.

Posto isto, ponha-se o governo por inteiro nas mãos de um só homem e eis completamente reunidas a vontade particular e a vontade do corpo, e reunidas, em conseqüência, no mais alto grau de intensidade que possa existir. Ora, como é do grau da vontade que depende o uso da força, e como a força absoluta do governo em nada varia, infere-se que o mais ativo dos governos é o exercido por uma só pessoa.

Em sentido contrário, unamos o governo à autoridade legislativa, façamos o príncipe soberano, e de todos os cidadãos outros tantos magistrados; então a vontade do corpo, confundida com a vontade geral, não será mais ativa que esta e deixará à vontade particular toda a sua força. O governo, desse modo, sempre de posse da mesma força absoluta, se encontrará em seu minimum de força relativa ou de atividade.

São incontestáveis essas relações, e outras considerações servem ainda para as confirmar. Vê-se, por exemplo, que cada um dos magistrados é mais ativo em seu corpo que cada cidadão no seu, e que, por conseguinte, a vontade particular tem muito mais influência nos atos do governo que nos do soberano; isto pelo fato de que cada um dos magistrados está quase sempre incumbido de alguma função governamental, enquanto que cada cidadão, tomado à parte, não possui nenhuma função de soberania. De resto, quanto mais o Estado se estende, mais sua força real aumenta, embora não aumente por motivo de sua extensão; ao passo que, permanecendo o Estado estacionário, por mais que se multipliquem os magistrados, não adquire o governo maior força real, pois que esta força é a força do Estado, cuja medida é sempre igual. Assim sendo, diminui a força relativa ou a atividade do governo, sem que sua força absoluta ou real possa aumentar.

É ainda certo que a expedição dos negócios se torna mais lenta, à medida que maior número de pessoas é disso encarregada; que, fazendo-se maiores concessões à prudência, não se concede o bastante à fortuna, e se permite que fuja a oportunidade; e que, à força de deliberar, perde-se por vezes o fruto da deliberação.

Venho de provar que o governo enfraquece à medida que os magistrados se multiplicam, e demonstrei mais acima que quanto mais o povo é numeroso, mais a força repressiva deve aumentar: infere-se daí que a relação entre os magistrados e o governo deve ser o inverso das relações entre os vassalos e o soberano, isto é, quanto mais se amplia o Estado, tanto mais deve o governo restringir-se, da mesma maneira que o número de chefes diminui em razão do aumento numérico do povo.

Ademais, não falo aqui senão da força relativa do governo, e não de sua retitude; porque, ao contrário, quanto mais numerosos são os magistrados, mais a vontade do corpo se aproxima da vontade geral; enquanto que, sob um magistrado único, essa mesma vontade do corpo, como eu o disse, não é senão uma vontade particular. Perde-se assim por um lado o que se vem a ganhar por outro, e a arte do legislador consiste em saber fixar o ponto em que a força e a vontade do governo, sempre em proporção recíproca, se combinem na relação que ofereça mais vantagens ao Estado.

III – Divisão dos governos.

Vimos, no capítulo precedente, por que se distinguem as diversas espécies ou formas de governos pelo número dos membros que os compõem; resta ver agora em que momento se opera essa divisão.

O soberano pode, de início, confiar o depósito do governo ao povo em conjunto ou à maioria do povo, de modo a haver maior número de cidadãos magistrados que simples cidadãos particulares. Dá-se a essa forma de governo o nome de democracia.

Ou pode então restringir o governo entre as mãos de um pequeno número, de sorte a haver maior número de cidadãos particulares que de magistrados, e esta forma de governo recebe o nome de aristocracia.

Finalmente, pode o soberano concentrar todo o governo em mãos de um magistrado único, do qual todos os demais recebem o poder. Esta terceira forma é a mais comum de todas, e chama-se monarquia, ou governo real.

Devo assinalar que todas essas formas, ou ao menos as duas primeiras, são suscetíveis de maior ou menor e mesmo de grande latitude, porque a democracia pode abarcar todo o povo, ou então restringir-se até a metade. A aristocracia, por sua vez, pode restringir-se da metade do povo até indeterminadamente ao menor número. A própria monarquia é suscetível de alguma partilha. Esparta, de acordo com sua constituição, sempre teve dois reis, e houve, no Império romano, até oito imperadores simultaneamente, sem que por isso se pudesse dizer que o Império estava dividido. Assim sendo, existe um ponto em que cada forma de governo se confunde com a seguinte, e vê-se que apenas sob três formas de domínio já se mostra o governo capaz de adquirir tantos aspectos diversos quantos cidadãos possui o Estado.

Há mais: podendo um mesmo governo, subdividir-se, por diversos motivos, em várias partes, uma administrada de certa maneira, outra de maneira diversa, pode resultar dessas três formas combinadas uma infinidade de formas mistas, cada uma das quais suscetível de ser multiplicável por todas as formas simples.

Discutiu-se em todos os tempos a melhor forma de governo, sem considerar que cada uma delas é a melhor em determinados casos e a pior em outros.

Se, nos diferentes Estados, o número de supremos magistrados deve estar constituído em razão inversa do número dos cidadãos, segue-se que, em geral, o governo democrático é o que mais convém aos pequenos Estados; o aristocrático aos Estados médios; e a monarquia aos grandes. Extrai-se esta regra imediatamente do princípio; mas como contar a infinidade de circunstâncias capazes de fornecer as exceções?

IV – Da democracia.

Quem faz a lei sabe melhor que ninguém como deve ser ela executada e interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que essa em que o poder executivo está unido ao legislativo; mas é justamente isso que torna esse governo sob certos aspectos insuficiente, uma vez que as coisas que deveriam ser diferenciadas não o são, e o príncipe e o soberano, sendo a mesma pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo.

Não é conveniente que quem redija as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção dos alvos gerais para a concentrar nos objetos particulares. Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos; e o abuso das leis por parte do governo constitui um mal menor que a corrupção por parte do legislador, continuação infalível dos alvos particulares. Então, alterado o Estado em sua substância, toda reforma se torna impossível. Um povo que jamais abusaria do governo, também jamais abusaria da independência; um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de ser governado.

Rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá. Contraria a ordem natural o grande número governar, e ser o pequeno governado. É impossível admitir esteja o povo incessantemente reunido para cuidar dos negócios públicos; e é fácil de ver que não poderia ele estabelecer comissões para isso, sem mudar a forma da administração.

Creio, com efeito, poder assentar em princípio que, quando as funções governamentais são partilhadas entre diversos tribunais, os menos numerosos adquirem cedo ou tarde a maior autoridade, se por outro motivo não fosse, pela facilidade com que expedem os negócios, ali levados naturalmente.

Ademais, que de coisas difíceis de reunir não supõe tal governo? Primeiramente, um Estado bastante pequeno, em que seja fácil congregar o povo, e onde cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes, que antecipe a multidão de negócios e as discussões espinhosas; em seguida, bastante igualdade nas classes e nas riquezas, sem o que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e na autoridade; enfim, pouco ou nenhum luxo; porque ou o luxo é o efeito das riquezas, ou as torna necessárias, já que corrompe ao mesmo tempo ricos e pobres, uns pela posse, outros pela cobiça, vende a pátria à lassidão e à vaidade, e afasta do Estado todos os cidadãos, submetendo-os uns aos outros, e todos à opinião.

Eis por que um célebre autor afirmou que a virtude é o princípio da República, pois todas essas condições não subsistiriam sem a virtude; mas, à falta de haver feito as distinções necessárias, faltou por vezes a este belo talento precisão, e inclusive clareza, pois não viu que, sendo a autoridade soberana em toda parte a mesma, o mesmo princípio deve nortear qualquer Estado bem constituído, mais ou menos, é certo, de acordo com a forma de governo.

Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações intestinas como o democrático ou popular, pois que não há nenhum outro que tenda tão freqüente e continuamente a mudar de forma, nem que demande mais vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa constituição de governo que o cidadão se deve armar de força e constância, e dizer em cada dia de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino na dieta da Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium.

Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito governo não convém aos homens.

V – Da aristocracia.

Temos aqui duas pessoas morais distintas, a saber, o governo e o soberano, e, por conseguinte, duas vontades gerais: uma, concernente a todos os cidadãos; outra, apenas aos membros da administração. Assim sendo, embora possa o governo regulamentar sua polícia interior como bem lhe aprouver, só poderá falar ao povo em nome do soberano, isto é, em nome do próprio povo, coisa que jamais se deve esquecer.

As primeiras sociedades governaram-se aristocraticamente. Os chefes de família deliberavam entre si sobre os negócios públicos. Os jovens cediam sem dificuldade perante a autoridade da experiência. Daí os nomes de padres, anciãos, senado, gerontes. Os selvagens da América setentrional ainda assim se governam em nossos dias, e são muito bem governados.

Mas, à medida que a desigualdade de instituição sobrepujou a desigualdade natural, a riqueza ou o poder foi preferido à idade, e a aristocracia passa a ser eletiva. Finalmente, o poder, transmitido juntamente com os bens dos pais aos filhos, enobrecendo as famílias, torna o governo hereditário, e viram-se então senadores de apenas vinte anos.

Há, pois, três espécies de aristocracia: natural, eletiva e hereditária. A primeira não convém senão a povos simples; a terceira é o pior de todos os governos; a segunda é a melhor: é a aristocracia propriamente dita.

Afora a vantagem da distinção dos dois poderes, possui a da escolha de seus membros; porque, no governo popular, todos os cidadãos nascem magistrados, mas este os limita a um pequeno número, o qual é escolhido através de eleição, meio pelo qual a probidade, as luzes, a experiência, e todas as demais razões preferenciais e de estima pública, constituem outras tantas novas garantias de que seremos sabiamente governados.

Além disso, as assembléias se fazem mais comodamente, os negócios são melhor discutidos, o expediente é executado com maior ordem e diligência; o crédito do Estado é melhor garantido no estrangeiro por veneráveis senadores que por uma multidão desconhecida e menosprezada.

Numa palavra, a ordem mais justa e natural é a em que os mais sábios governem a multidão, quando estamos seguros de que a governarão em benefício dela, e não em benefício próprio. Não é de nenhum modo necessário multiplicar em vão as alçadas, nem fazer com vinte mil homens o que cem homens escolhidos fazem ainda melhor. Deve-se, porém, assinalar que o interesse do corpo começa aqui a dirigir com menos eficiência a força do público no que tange à vontade geral, e que outro declive inevitável subtrai às leis uma parte do poder executivo.

A respeito das conveniências particulares, não convém nem um Estado tão pequeno, nem um povo tão simples e reto, que a execução das leis resulte imediatamente da vontade pública, como numa boa democracia. Também não convém uma tão grande nação em que os chefes esparsos para a governar possam decidir à revelia do soberano, em seus respectivos departamentos, e começar por se tornarem independentes e virem a ser, em seguida, os senhores.

Contudo, se exige a aristocracia menos virtudes que o governo popular, requer, em troca, outras que lhe são próprias, tais como a moderação por parte dos ricos, e o contentamento por parte dos pobres; porque, parece, uma rigorosa igualdade estaria aí deslocada: nem mesmo Esparta a observou.

De resto, se esta forma de governo comporta certa desigualdade de riqueza, isto acontece para que em geral a administração dos negócios públicos seja confiada aos que vem dela cuidar, empregando todo o seu tempo, e não como pretende Aristóteles, por serem os ricos sempre os preferidos. Ao contrário, é conveniente que uma escolha oposta ensine por vezes ao povo que há, no mérito dos homens, razões de preferência mais importantes que a riqueza.

VI – Da monarquia.

Até aqui, consideramos o príncipe como uma pessoa moral e coletiva, unida pela força das leis, e depositária no Estado do poder executivo. Temos agora a considerar este poder reunido em mãos de uma pessoa natural, de um homem real, único investido do direito de dele dispor segundo as leis. É o que se chama um monarca ou um rei.

Ao contrário das outras administrações, em que um ser coletivo representa um indivíduo, nesta aqui é um indivíduo que representa um ser coletivo; desse modo, a unidade moral que constitui o príncipe é simultaneamente uma unidade física, na qual todas as faculdades que a lei reuniu na outra, com tantos esforços, se achem naturalmente reunidas.

Assim, a vontade do povo, e a vontade do príncipe, e a força pública do Estado, e a força particular do governo, tudo enfim responde ao mesmo móbil; todas as molas da máquina estão na mesma mão, tudo caminha para o mesmo objetivo: não há movimentos adversos que se destruam mutuamente, e não se pode imaginar nenhuma espécie de constituição em que um esforço menor produza uma ação mais considerável. Arquimedes, tranqüilamente sentado na praia, sirgando sem dificuldade um grande navio, representa a meu ver um hábil monarca, a dirigir de seu gabinete seus vastos Estados, e a fazer com que tudo se mova dando a impressão de que permanece imóvel.

Mas se governo não há mais rigoroso que este, também outro não há em que a vontade particular seja mais respeitada e mais facilmente domine as outras: tudo caminha para o mesmo objetivo, é verdade, mas esse objetivo não é o da felicidade pública; e a própria força da administração gira sem cessar em prejuízo do Estado.

Os reis desejam ser absolutos, e de longe lhes bradamos que a melhor maneira de o serem consiste em se fazerem amar por seus povos. Esta máxima é muito bela e verdadeira em certo sentido. Infelizmente, sempre rirão disso nas cortes. O poder oriundo do amor dos povos é sem dúvida o maior, mas precário e condicional; os príncipes jamais se contentarão com ele. Os melhores reis desejam ser malvados, quando lhes apetece, sem cessarem de ser os senhores. Por mais que se esforce um orador político em adverti-los de que a força do povo é a sua própria e de que seu maior interesse deve consistir em que o povo seja florescente, numeroso, temível, eles sabem perfeitamente que tal coisa não é verdade.

Seu interesse pessoal está, antes de mais nada, em que o povo seja débil, miserável, e jamais lhes possa resistir. Confesso que, imaginando os vassalos sempre inteiramente submissos, me parece que o interesse dos príncipes residiria na existência de um povo poderoso, a fim de que, sendo dele tal poder, o tornasse temido de seus vizinhos; como, porém, tal interesse é secundário e subordinado, e as duas suposições se mostram incompatíveis, é natural que os príncipes dêem sempre preferência à sentença mais imediatamente útil para eles; é o que Samuel, com vigor, apontava aos hebreus, é o que Maquiavel demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as ele, e grandes, aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.

Vimos, através das relações gerais, que a monarquia só é conveniente aos vastos Estados, e o mesmo acharemos examinando-a em si mesma. Quanto mais numerosa for a administração pública, mais a relação entre o príncipe e os vassalos diminui e se aproxima da igualdade, de sorte que tal relação é uma ou a própria igualdade na democracia. Essa mesma relação aumenta à medida que o governo se contrai, e atinge o seu maximum quando o governo se acha em mãos de uma única pessoa. Passa a haver então uma enorme distância entre o príncipe e o povo, e o Estado carece de ligação. Para formá-la, são necessárias as ordens intermediárias: príncipes, grandes, nobreza, que as devem preencher. Ora, nada do que foi dito convém a um pequeno Estado, pois, antes, o arruínam.

Contudo, se é difícil que um grande Estado seja bem governado, é mais difícil ainda sê-lo por um só homem, e todos sabemos o que sucede quando o rei nomeia substitutos.

Um defeito essencial e inevitável, que sempre porá o governo monárquico abaixo do republicano, está em que, neste, último, a voz pública quase nunca eleva aos primeiros postos homens que não sejam esclarecidos e capazes e não os ocupem com dignidade; ao passo que, nas monarquias os que se elevam são, as mais das vezes, pequenos rixentos, pequenos velhacos, pequeno intrigantes, cujos pequenos engenhos, que permitem, nas cortes, alcançar os grandes postos, só lhes servem para demonstrar ao público o quanto são ineptos, tão logo aí consigam chegar. No tocante a essa escolha, o povo se engana bem menos que o príncipe, de sorte que é quase tão raro encontrar um homem de real mérito no ministério quanto um tolo à testa de um governo republicano. Quando acontece, por um desses felizes acasos, que um desses homens nascidos para governar toma o timão dos negócios, numa monarquia quase arruinada por esses acervos de belos regentes, fica-se surpreso dos recursos por ele encontrados, e tal coisa faz época no país.

Para que um Estado monárquico possa ser bem governado, seria preciso que sua grandeza ou extensão fosse mensurada conforme as faculdades de quem governa. É mais fácil conquistar que administrar. Com uma alavanca adequada pode-se abalar o mundo; mas, para o sustentar, são necessários os ombros de Hércules. Por pequena que seja a grandeza de um Estado, o príncipe é sempre demasiado pequeno. Quando, ao contrário, acontece de o Estado ser muito pequeno para o porte de seu chefe, o que, de resto, é muito raro, é ainda assim mal governado, porque o chefe, seguindo sempre a grandeza de seus alvos, esquece os interesses dos povos, e não os faz menos infelizes, pelo abuso do excessivo talento, que um chefe limitado, por carecer de talento. Seria preciso, por assim dizer, que um reino se expandisse ou se restringisse, em cada reinado, de acordo com a capacidade do príncipe; ao passo que os dotes de um senado, tendo medidas mais fixas, podem impor ao Estado constantes limitações e não prejudicar a administração.

O inconveniente mais sensível do governo de uma única pessoa consiste na falta dessa sucessão contínua, que forma nos dois outros uma ligação ininterrupta. As eleições abrem intervalos perigosos; são tempestuosos; e a menos que os cidadãos sejam de um desinteresse, de uma integridade acima dos méritos desse governo, as disputas e a corrupção se misturam. É difícil que aquele, a quem o Estado foi vendido, não o venda por seu turno, e não se indenize, à custa dos fracos, do dinheiro, que os poderosos lhe extorquiram. Cedo ou tarde, tudo se torna venal sob semelhante administração, e a paz de que se desfruta sob o governo dos reis passa a ser então pior que a desordem dos interregnos.

Que foi feito para prevenir esses males? Fez-se com que, em certas famílias, as coroas se tornassem hereditárias, e estabeleceu-se uma ordem de sucessão que previne qualquer disputa em conseqüência da morte dos reis; isto é, substituindo-se o inconveniente das regências ao das eleições, preferiu-se uma aparência tranqüila a uma administração sábia, e se achou melhor correr o risco de ter por chefes crianças, monstros e imbecis, a ter de questionar sobre a escolha de bons reis. Não se considerou que, expondo-se assim aos riscos da alternativa, colocam-se quase todas as oportunidades contra si mesmo. Tratava-se de uma idéia muito sensata, igual à do jovem Dionísio, a quem o pai, reprovando uma ação vergonhosa, disse: “Dei-te o exemplo disso?” – “Ah! – respondeu o filho – vosso pai não era rei!”

Tudo concorre para privar de justiça e razão um homem elevado ao comando dos outros. Cansa demais, segundo se diz, ensinar os jovens príncipes a reinar, e não me parece que tal educação lhes seja proveitosa. Far-se-ia melhor começar por ensinar-lhes a arte de obedecer. Os maiores reis, já celebrados na História, não foram educados para reinar. É esta uma ciência que tanto menos se possui quanto mais se a aprendeu, e que melhor se adquire obedecendo que dirigindo. Nam utilissimus idem ac brevissimus bonarum malarumque rerum delectus, cogitare quid aut nolueris sub alio principe, aut volueris.

Uma seqüência dessa falta de coerência é a inconstância do governo real, que, regulando-se, ora por um plano, ora por outro, segundo o caráter do príncipe que reina ou dos que reinam por ele, não pode ter por muito tempo um objetivo fixo nem uma conduta conseqüente, variação que faz o Estado flutuar permanentemente de máxima em máxima, de projeto em projeto, e que não tem lugar nas outras formas de governo em que o príncipe é sempre o mesmo. Vê-se também, em geral, que, se há mais astúcia numa corte, há mais sabedoria num senado, e que as repúblicas perseguem seus objetivos por meios mais constantes e melhor seguidos; isso porque, cada revolução no ministério provoca outra, e a máxima comum a todos os ministros e a quase todos os reis é a de fazer em tudo o contrário de seu predecessor.

Dessa mesma incoerência tira-se ainda a solução dum sofisma muito familiar aos políticos realistas: não apenas a de comparar o governo civil ao governo doméstico, o príncipe ao pai de família, erro já refutado, como ainda a de dar liberalmente a esse magistrado todas as virtudes de que ele necessitaria, e a de sempre supor que o príncipe é de fato o que deveria ser, suposição com a ajuda da qual o governo do rei é evidentemente preferível a qualquer outro, pois que é sem contestação o mais forte, e, para ser também o melhor, só lhe falta uma vontade de corpo mais conforme com a vontade geral.

Mas, se consoante Platão, o rei, por natureza, é um personagem tão raro, quantas vezes concorrem a Natureza e a fortuna para o coroar? E se a educação real corrompe necessariamente os que a recebem, que se deve esperar de uma seqüência de homens distinguidos para reinar? É, portanto, querer iludir-se confundir o governo real com o governo de um bom rei. Para ver o que é esse governo em si mesmo, deve-se considerá-lo sob o mando de príncipes limitados ou perversos, pois como tais chegarão ao trono ou o trono os tornará tais.

Essas dificuldades não escaparam aos nossos autores; mas eles não se embaraçaram nisso. O remédio consiste, disseram eles, em obedecer sem murmurar. Deus, em sua cólera, dá os maus reis, e é preciso suportá-los como castigos do céu. Tal opinião é sem dúvida edificante; mas, parece-me, que calharia melhor no púlpito que num livro de política. Que dizer de um médico que promete milagres, e cuja arte reside apenas em exortar o doente à paciência? Sabe-se perfeitamente que é preciso padecer um mau governo, quando se o tem; a questão consistirá em encontrar um bom.

VII – Dos governos mistos.

Propriamente falando, não há governo simples. É necessário a um chefe único possuir magistrados subalternos; é indispensável a um governo popular ter um chefe. Assim, na partilha do poder executivo, há sempre gradação do grande número ao menor, com a diferença que ora é o grande número que depende do pequeno, ora é o pequeno que depende do grande.

Algumas vezes ocorre uma divisão igual, seja quando as partes constitutivas estão em mútua dependência, como no governo da Inglaterra, seja quando a autoridade de cada parte é independente, mas imperfeita, como na Polônia. Esta última forma é má, pelo fato de não haver unidade no governo e de ao Estado faltar ligação.

Qual é melhor, um governo simples ou um misto? E uma questão muito debatida entre os políticos e à qual se deve dar a mesma resposta dada anteriormente a propósito de toda forma de governo.

O governo simples é melhor em si, pelo simples fato de ser simples. Entretanto, quando o poder executivo pouco depende do legislativo, isto é, quando há mais relação entre o príncipe e o soberano que entre o povo e o príncipe, é necessário remediar essa falta de proporção dividindo o governo; porque, então, todas as suas partes têm igual autoridade sobre os vassalos, e a divisão delas torna-as, todas em conjunto. menos fortes contra o soberano.

Previne-se ainda o mesmo inconveniente estabelecendo magistrados intermediários, que, deixando o governo em sua inteireza, servem apenas para criar o equilíbrio entre os dois poderes e conservar seus respectivos direitos. O governo, então, deixa de ser misto, para ser temperado.

Pode-se remediar, por meios semelhantes, o inconveniente oposto, e quando o governo é excessivamente frouxo, erigir tribunais a fim de o reforçar. Tal coisa se pratica em todas as democracias. No primeiro caso, divide-se o governo para o enfraquecer, e no segundo, para fortalecê-lo; porque o maximum de força e de fraqueza encontra-se igualmente nos governos simples, enquanto que as formas mistas produzem uma força média.

VIII – Nem toda forma de governo é apropriada a todos os países.

Não sendo a liberdade um fruto de todos os climas, não está ao alcance de todos os povos. Quanto mais se medita sobre esse princípio estabelecido por Montesquieu, mais se lhe percebe a veracidade. Quanto mais se a contesta, tanto mais se lhe dá oportunidade para estabelecer-se através de novas provas.

Em todos os governos do mundo, a pessoa pública consome e nada produz. De onde lhe vem, pois, a substância consumida? Do trabalho de seus membros. É o supérfluo dos particulares que produz o necessário do público: segue-se daí que o estado civil só pode subsistir enquanto o trabalho dos homens rende mais que as suas necessidades.

Ora, esse excedente não é o mesmo em todos os países do mundo. Em inúmeros deles, é considerável; em outros, medíocre, em outros ainda, nulo; em alguns, negativo. Essa relação depende da fertilidade do clima, do tipo de trabalho exigido pelo solo, da natureza de suas produções, da força de seus habitantes, da maior ou menor consumição necessária, e de numerosas outras relações semelhantes das quais são os países compostos.

Por outro lado, nem todos os governos possuem a mesma natureza; há os dotados de maior ou menor voracidade, e as diferenças estão baseadas neste princípio: quanto mais as contribuições públicas se distanciam de sua fonte, tanto mais se tornam onerosas. Não é pela quantidade de imposições que se deve medir essa carga, mas pelo caminho a ser feito por elas a fim de regressarem às mãos de que saíram. Quando essa circulação é realizada e bem estabelecida, pague-se pouco ou muito, o povo é sempre rico e as finanças caminham sempre a contento. Quando, ao contrário, por pouco que contribua, esse pouco não retorna às suas mãos, em contribuindo sempre o povo depressa se exaure; o Estado jamais será rico, e o povo será sempre indigente.

Infere-se daí que quanto mais aumenta a distância entre o povo e o governo, mais se tornam onerosos os tributos. Assim sendo, na democracia, o povo é o menos sobrecarregado; na aristocracia, ele o é um pouco mais; na monarquia, carrega o maior peso. A monarquia, portanto, só convém às nações opulentas; a aristocracia, aos Estados medíocres em riqueza, bem como em tamanho; a democracia, aos Estados pequenos e pobres.

Com efeito, na medida em que mais nisso refletimos, melhor vamos percebendo a diferença entre os Estados livres e os monárquicos: nos primeiros, tudo é empregado no sentido do interesse comum; nos segundos, as forças públicas e particulares funcionam de maneira recíproca, e o aumento de uma corresponde ao enfraquecimento da outra; enfim, ao invés de governar os vassalos para os fazer felizes, o despotismo torna-os miseráveis a fim de os governar.

Eis, portanto, em cada clima, causas naturais, que permitem indicar a forma de governo a que a força do clima conduz, e mesmo dizer que espécie de habitantes deve ele possuir. Os sítios ingratos e estéreis, onde o produto não compensa o trabalho, devem permanecer incultos e desertos, ou povoados unicamente por selvagens; os lugares em que o trabalho dos homens não produz senão o necessário devem ser habitados pelos povos bárbaros, pois qualquer política aí seria impossível; as regiões em que o excesso do produto sobre o trabalho é medíocre convém aos povos livres; e aquelas, cujo solo fértil e abundante fornece grande quantidade de produtos em troca de pouco trabalho, devem ser governadas monarquicamente, para que o luxo do príncipe consuma o excesso do supérfluo dos vassalos; porque mais convém seja esse excesso absorvido pelo governo a ser dissipado pelos particulares. Há exceções, eu o sei; mas justamente essas exceções confirmam a regra, nisso em que, cedo ou tarde, produzem revoluções, as quais reconduzem as coisas à ordem natural.

Distingamos sempre as leis gerais das causas particulares capazes de modificar o efeito delas. Mesmo que todo o Meio-Dia estivesse coberto de repúblicas e todo o Norte de Estados despóticos, não seria menos verdade que, por motivo do clima, conviria o despotismo aos países quentes, a barbárie aos países frios, e a boa civilização às regiões intermediárias. Vejo, igualmente, que, aceitando o princípio, podemos discutir a sua aplicação; podemos dizer que há países frios bastante férteis e meridionais muito ingratos. Mas tal dificuldade somente existe para quem não examina o fato em todas as suas relações. É preciso, como já deixei dito, contar com as de trabalho, de forças, de consumo, etc.

Suponhamos que, de dois terrenos iguais, um produza cinco e outro dez. Se os habitantes do primeiro consumirem quatro e os do segundo nove, o excesso do primeiro produto será um quinto, e o do segundo um décimo. A relação desses dois excessos será, portanto, inversa da dos produtos, e o terreno que não produzirá mais que cinco dará um duplo supérfluo do terreno que produzirá dez.

Mas não se trata de um produto duplo, e eu não creio haja alguém que ouse, em geral, colocar a fertilidade dos países frios em confronto com a dos países quentes. Todavia, admitamos essa igualdade: deixemos, se quisermos, a Inglaterra em equilíbrio com a Sicília, e a Polônia com o Egito; mais ao Meio-Dia, teremos a África e as Índias; mais ao Norte, nada mais teremos. Para essa igualdade de produção, que diferença de cultura! Na Sicília, basta arranhar o solo; na Inglaterra, que de cuidados para a trabalhar! Ora, no lugar em que se faz necessário maior número de braços para se obter a mesma produção, o supérfluo deve necessariamente ser menor.

Considerai, além disso, que a mesma quantidade de homens consome muito menos nos países quentes. O clima exige que sejamos sóbrios para nos sentirmos bem: os europeus que ali pretendem viver como em seus próprios países, perecem todos de disenteria e indigestões. “Somos”, diz Chardin, “feras carniceiras, lobos comparados com os asiáticos. Alguns atribuem a sobriedade dos persas ao fato de seu país ser menos cultivado; quanto a mim, creio, ao contrário, que há ali menos abundância de gêneros, porque deles menos necessitam os habitantes. Se sua frugalidade”, contínua Chardin, “fosse um efeito da penúria do país, então apenas os pobres comeriam pouco, em lugar de todos geralmente jejuarem, e, em cada província, segundo a fertilidade do solo, seria maior ou menor o consumo de gêneros, ao invés de a mesma sobriedade ser idêntica em todo o reino. Os persas se vangloriam de sua maneira de viver, dizendo que basta olhar-lhes a pele para reconhecer quanto é melhor que a dos cristãos. Na verdade, a tez dos persas é lisa, é bela, fina e lustrosa; ao passo que a dos armênios, seus vassalos, que vivem à maneira européia, é rude, avermelhada, e eles têm o corpo grosso e pesado.”

Quanto mais se aproximam do Equador, tanto mais vivem os povos com menos. Raramente comem carne; o arroz, o milho, o cuscuz, a mandioca constituem seus alimentos vulgares. Há na Índia milhões de homens cuja alimentação não custa um soldo por dia. Mesmo na Europa, vemos sensíveis diferenças, no que concerne ao apetite, entre os povos do Norte e os do Meio-Dia. Um espanhol viverá oito dias do jantar de um alemão. Nos países em que os homens são mais vorazes, também o luxo se volta para as coisas de consumo. Na Inglaterra, mostra-se numa mesa sobrecarregada de carnes; na Itália, sereis regalados com açúcar e flores.

O luxo dos trajes também oferece semelhantes diferenças. Nos climas em que as mudanças das estações são rápidas e violentas, usam-se roupas melhores e mais simples; naqueles em que a gente se veste apenas para enfeitar-se, procura-se mais efeito que utilidade; os próprios trajes constituem aí um luxo. Em Nápoles, vereis todos os dias, no Posilipo, homens a passear em vestes douradas, e sem meias. O mesmo acontece no tocante aos edifícios; tudo se emprega na magnificência, quando nada se tem a temer das injúrias do ar. Em Paris, em Londres, quer-se estar alojado cálida e comodamente; em Madri, têm-se salões soberbos, mas nenhuma janela que feche, e dorme-se em ninhos de ratos.

Os alimentos são muito mais nutritivos e suculentos nos países quentes; é uma terceira diferença que não pode deixar de influir sobre a segunda. Por que se consomem tantos legumes na Itália? Porque são ali excelentes, nutritivos e saborosos. Em França, onde apenas são nutridos de água, também não alimentam quem os consome e são perfeitamente dispensáveis na mesa. Não ocupam, portanto, menor extensão de terreno, e dão em todo caso tanto trabalho para serem cultivados. Sabe-se, por experiências realizadas, que os trigos da Barbaria, de resto inferiores aos de França, rendem muito mais em farinha, e que os de França, por sua vez, dão maior rendimento que os trigos do Norte: de onde se pode inferir que semelhante gradação é geralmente observada no mesmo rumo do equador ao pólo. Ora, não constitui visível desvantagem haver em igual produto uma menor quantidade de alimentos?

A todas essas diversas considerações posso acrescentar uma outra que delas decorre e as fortifica: a de que os países quentes não necessitam de tantos habitantes como os países frios, podendo alimentá-los por mais tempo, o que produz um duplo supérfluo, sempre vantajoso para o despotismo. Quanto maior o número de homens a ocupar uma grande superfície, mais difícil se tornam as revoltas, porque não se as pode concertar nem pronta nem secretamente, sendo sempre fácil ao governo descobrir os projetos e cortar as comunicações; mas, quanto mais um povo numeroso se aproxima, menos pode o governo usurpar a soberania. Os chefes também deliberam em seus gabinetes com a mesma segurança com que os príncipes o fazem em seu conselho, e a turba reúne-se com tanta presteza nas praças quanto as tropas em seus quartéis. A vantagem de um governo tirânico está, pois, em agir a grandes distâncias.

Com a ajuda de pontos de apoio que a si mesmo se dá, sua força aumenta de longe como a das alavancas (17). A do povo, ao contrário, só age quando concentrada. Evapora-se e perde-se esta, se se estender, como o efeito da pólvora espalhada por terra, que só pega fogo grânulo por grânulo. Os países menos povoados são assim os mais apropriados à tirania, os animais ferozes imperam somente nos desertos.

IX – Dos sinais de um bom governo.

Quando então se pergunta qual é o melhor governo, propõe-se uma questão insolúvel e indeterminada; ou, se se quiser, que possui tantas boas soluções quantas combinações possíveis nas posições absolutas, e relativas dos povos.

Mas, se se perguntasse por que sinais é possível conhecer se um determinado povo está sendo bem ou mal governado, a coisa seria outra, e a questão de fato poderia ser resolvida.

Entretanto, de nenhum modo a resolvemos, porque cada qual deseja resolvê-la à sua maneira. Os vassalos elogiam a tranqüilidade pública, os cidadãos a liberdade dos particulares; um prefere a segurança das possessões, e outro a das pessoas; um pretende que o melhor governo é o mais severo, outro sustenta que é o mais brando; este quer que se punam os crimes, e aquele que se os previnam; um é de opinião que se deve ser temido dos vizinhos, outro prefere ser ignorado; um mostra-se contente quando o dinheiro circula, outro exige que o povo tenha pão. E mesmo no caso de se obter entendimento sobre esses e outros pontos semelhantes, ter-se-ia avançado mais? Faltando a medida precisa às quantidades morais, embora se concorde quanto ao sinal, como fazê-lo no tocante ao julgamento?

De minha parte, sempre me assombro de que se desconheça um sinal tão simples, ou de que se tenha a má fé de nisso não concordar. Qual é o objetivo da associação política? É a conservação e a prosperidade de seus membros. E qual é o mais seguro sinal de que eles se conservam e prosperam? É o seu número e a sua população. Não busqueis, portanto, alhures esse sinal tão disputado. Sendo todas as coisas semelhantes, o governo sob o qual, sem meios estranhos, sem naturalização, sem colônias, os cidadãos habitam e se multiplicam por mais tempos é infalivelmente o melhor; aquele sob o qual um povo diminui e perece, é o pior. Calculadores, agora é vossa tarefa: contai, medi, comparai (18).

X – Do abuso do governo e de sua tendência a degenerar.

Assim como a vontade particular atua continuamente contra a vontade geral, assim se esforça incessantemente o governo contra a soberania. Quanto mais aumenta esse esforço, mais se altera a constituição, e como não há aqui outra vontade de corpo que, resistindo à vontade do príncipe, faça equilíbrio com ela, deve acontecer cedo ou tarde venha o príncipe oprimir enfim o soberano e romper o tratado social. Está aí o vício inerente e inevitável que, desde o nascimento do corpo político, tende sem afrouxamento a destruí-lo, assim como a velhice e a morte destroem por fim o corpo do homem.

Há dois caminhos gerais que conduzem um governo à degenerescência, a saber: quando se restringe ou quando o Estado se dissolve. Restringe-se o governo, quando passa do grande número ao pequeno, isto é, da democracia à aristocracia, e da aristocracia à realeza. É esse seu pendor natural (19). Se ele retrogradasse do pequeno número ao grande, poder-se-ia dizer que se debilita; mas tal progresso em sentido inverso é impossível.

O governo, com efeito, só muda de forma quando, perdida a elasticidade da mola, esta o deixa excessivamente enfraquecido para poder conservar aquela. Ora, se se estendendo, ela afrouxasse mais ainda, sua força se tornaria inteiramente nula e ela não teria condições de subsistir. É necessário, pois, remontar e comprimir a mola, à medida que esta cede; de outro modo, o Estado que ela sustém desabaria em ruína.

O caso da dissolução do Estado pode-se dar de duas maneiras: primeiramente, quando o príncipe não mais o administra conforme as leis, e usurpa o poder soberano. Então, acontece uma mudança considerável: é que, não mais o governo, mas o Estado se restringe. Quero dizer que o grande Estado se dissolve, e que se forma um outro no seio daquele, apenas composto dos membros do governo, e que nada mais é em relação ao resto do povo senão o senhor e o tirano. De sorte que, no instante da usurpação da soberania por parte do governo, é rompido o pacto social, e todos os simples cidadãos, recolados de direito em sua liberdade natural, são forçados, mas não obrigados a obedecer.

O mesmo sucede também quando os membros do governo usurpam separadamente o poder, que só devem exercer em conjunto, e que não constitui menor infração das leis, e produz ainda maior desordem. Têm-se então, por assim dizer, tantos príncipes quantos magistrados, e o Estado, não menos dividido que o governo, perece ou muda de forma.

Quando o Estado se dissolve, seja qual for o abuso do governo, toma o nome de anarquia. Fazendo a distinção: a democracia degenera em ociocracia, a aristocracia em oligarquia: Posso ainda acrescentar que a realeza degenera em tirania; mas este último termo é equívoco e exige explicação.

No sentido vulgar do termo, o tirano é um rei que governa com violência e sem respeito à justiça e às leis. No sentido preciso, um tirano é um particular que se arroga a autoridade real sem a ela ter direito. É assim que os gregos entendiam o termo tirano: davam-no indiferentemente aos bons ou maus príncipes cuja autoridade não era legítima (20). Assim sendo, tirano e usurpador são dois termos perfeitamente sinônimos.

Para dar diferentes nomes a diferentes coisas, chamo tirano ao usurpador da autoridade real, e déspota ao usurpador do poder soberano. O tirano é aquele que se decide contra as leis a governar segundo as leis; o déspota é o que se põe acima das leis. Assim, o tirano pode não ser déspota, mas o déspota é sempre tirano.

XI – Da morte do corpo político.

Tal é o pendor natural e inevitável dos governos melhor constituídos. Se Esparta e Roma pereceram, qual o Estado que pode esperar durar eternamente? Se quisermos constituir um estabelecimento durável, não pensemos em absoluto em fazê-lo eterno. Para sermos bem sucedidos, não devemos tentar o impossível, nem nos vangloriarmos de dar à obra dos homens uma solidez que as coisas humanas não comportam.

O corpo político, bem como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento e contém em si mesmo as causas de sua destruição. Mas um e outro podem ter uma constituição mais ou menos robusta e adequada a conservá-los por um longo tempo. A constituição do homem é obra da Natureza; a do Estado é obra da arte. Não depende dos homens a prolongação de sua vida; mas depende deles prolongar a do Estado tanto quanto possível, dando-lhe a melhor constituição que possa existir. O melhor constituído será mais duradouro que outro, se nenhum incidente imprevisto provocar sua perda com o tempo.

O princípio da vida política está na autoridade soberana. O poder legislativo é o coração do Estado; o poder executivo é o cérebro que põe em movimento todas as partes. O cérebro pode ser atingido pela paralisia e o indivíduo continuar a viver ainda. O homem torna-se imbecil e vive ainda; mas tão logo o coração deixe de funcionar, o animal perece. Não é em virtude das leis que o Estado subsiste, mas devido ao poder legislativo. A lei de ontem não obriga o dia de hoje; mas o consentimento tácito é presumido do silêncio, e o soberano confirma implicitamente as leis que não revoga, podendo fazê-lo. Tudo quanto declarou desejar uma vez, ele o deseja sempre, a menos que o invalide.

Por que, pois, atribuímos tanto respeito às antigas leis? Pelo fato mesmo de serem antigas. Deve-se crer que somente à excelência das antigas vontades puderam elas sobreviver tão longo tempo; se o soberano não as tivesse considerado salutares, ele as teria mil vezes ab-rogado. Eis por que, longe de se enfraquecerem, as leis adquirem de contínuo uma força nova em todos os Estados bem constituídos; o preconceito da antigüidade torna-as mais veneráveis a cada dia que passa; ao passo que, quando as leis se debilitam, envelhecendo, o fato constitui uma prova da inexistência de poder legislativo e de que o Estado já não vive.

XII – Como se mantém a autoridade soberana.

Não dispondo de outra força senão o poder legislativo, o soberano só atua pelas leis; e, não sendo as leis mais que atos autênticos da vontade geral, não poderia o soberano agir senão quando o povo se encontra reunido. O povo reunido, dir-se-á: que quimera! Hoje é uma quimera, mas não o era há dois mil anos. Terão os homens mudado de natureza?

Os limites do possível, nas coisas morais, são menos estreitos do que nós pensamos; são nossas fraquezas, nossos vícios, nossos preconceitos que os constringem. As almas mesquinhas não acreditam nos grandes homens; os vis escravos sorriem com ar zombeteiro da palavra liberdade.

Pelo que foi feito consideremos o que se pode fazer. Não falarei das antigas repúblicas gregas; mas a República romana, parece-me, era um grande Estado, e a cidade de Roma uma grande cidade. O último recenseamento deu a Roma quatrocentos mil cidadãos em armas, e o último censo do Império enumerou mais de quatro milhões de cidadãos, sem contar os vassalos, os estrangeiros, as mulheres, as crianças, e os escravos.

Que dificuldade não haveria para reunir em assembléia o povo imenso dessa Capital e arredores? Entretanto, raramente passavam semanas sem que o povo romano se reunisse, inclusive várias vezes.

O povo não somente exercia os direitos de soberania, mas também uma parte dos governamentais. Cuidava de certos negócios, julgava determinadas causas, e permanecia na praça pública, freqüentemente, quase na qualidade de magistrado, afora o ser na de cidadão.

Remontando aos primeiros tempos das nações, verificar-se-ia que a maior parte dos antigos governos, inclusive os monárquicos, tais como os da Macedônia e dos francos, possuía semelhantes conselhos. Seja como for, esse único fato incontestável responde a todas as dificuldades; do existente ao possível, a conseqüência parece-me boa.

XIII – Continuação.

Não basta que o povo reunido tenha uma vez fixado a constituição do Estado, sancionando um corpo de leis; não basta que tenha constituído um governo perpétuo, ou provido de uma vez por todas a eleição dos magistrados. Além das assembléias extraordinárias, que casos imprevistos podem exigir, é necessário havê-las fixas e periódicas que não possam ser abolidas nem adiadas, a fim de que, em dia marcado, seja o povo legitimamente convocado pela lei, sem que se faça preciso para tanto nenhuma outra convocação formal.

Contudo, afora essas assembléias jurídicas, por terem data certa, qualquer outra assembléia popular não convocada pelos magistrados, nomeados para esse efeito segundo as fórmulas prescritas, deve ser tida por ilegítima, e por nulo tudo quanto nela se faça; porque a própria ordem de reunir-se deve emanar da lei.

Quanto aos retornos mais ou menos freqüentes das assembléias legítimas, dependem de tantas considerações, que não saberíamos fornecer acerca disso regras precisas. Podemos apenas dizer, generalizando, que quanto mais força tem o governo, mais se deve mostrar o soberano.

Isto, dir-se-me-á, pode ser bom quando se trata de uma única cidade; mas que fazer quando o Estado compreende numerosas? Dividir-se-á a autoridade soberana, ou se deverá então concentrá-la numa única cidade e submeter todas as outras?

Respondo que não se deve fazer nem uma nem outra coisa. Em primeiro lugar, a autoridade soberana é simples e indivisa, e não se pode reparti-la sem a destruir. Em segundo lugar, uma cidade, bem como uma nação, não pode ser legitimamente submetida a uma outra, porque a essência do corpo político está no acordo da obediência e da liberdade, e estes termos vassalo e soberano são correlações idênticas cuja idéia se reúne sob um único conceito: cidadão.

Respondo ainda que sempre constitui um mal unir inúmeras cidades numa só Cidade, e que, insistindo em realizar tal união, não nos poderemos vangloriar de evitar os seus inconvenientes naturais. Não é necessário objetar o abuso dos grandes Estados a quem só os deseja pequenos. Mas como dar aos pequenos Estados força suficiente para resistir aos grandes, como resistiram outrora as cidades gregas ao Grande Rei, e como, mais recentemente, a Holanda e a Suíça resistiram à casa da Áustria?

Todavia, se não podemos reduzir o Estado aos justos limites, resta ainda um recurso: é o de não impor uma Capital, sediando o governo alternativamente em cada uma das cidades, e aí, também de modo alternado, reunir todos os Estados do país.

Povoai por igual o território, estendei por toda parte os mesmos direitos, levai a todos os lugares a vida e a abundância. É assim que o Estado se tornará a um tempo o mais forte e o melhor governado possível. Recordai-vos de que as muralhas da cidade se formam das minas das casas camponesas. Em cada palácio construído na Capital creio ver todo um país transformado em ruínas.

XIV – Continuação.

No instante em que o povo está legitimamente reunido em corpo soberano, cessa toda e qualquer jurisdição do governo, o poder executivo fica suspenso, e a pessoa do último dos cidadãos é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro magistrado, porque onde se encontra o representado deixa de haver o representante. A maioria dos tumultos ocorridos em Roma, durante os comícios, originou-se de se haver ignorado ou negligenciado essa regra. Os cônsules não eram então senão os presidentes do povo; os tribunos, simples oradores (21); o senado não era coisa alguma.

Esses intervalos de suspensão em que o príncipe reconhecia ou devia reconhecer um superior atual, foram sempre temíveis, e as assembléias do povo, que são a égide do corpo político e o freio do governo, foram em todos os tempos o horror dos chefes, os quais também jamais economizam cuidados, objeções, dificuldades ou promessas a fim de desanimarem os cidadãos. Quando estes são avaros, frouxos, pusilânimes, mais amantes do repouso que da liberdade, não resistem longamente aos redobrados esforços do governo; quando a força da resistência aumenta de contínuo, a autoridade soberana por fim se dissipa, e a maioria das cidades tomba e perece com o tempo.

XV – Dos deputados ou representantes.

Assim que o serviço público cessa de ser a principal preocupação dos cidadãos, ao qual melhor preferem servir com a bolsa que pessoalmente, já se encontra o Estado próximo da ruína. Se é preciso seguir para o combate, eles pagam as tropas e permanecem em casa; se é preciso ir à assembléia, eles nomeiam os deputados e continuam em casa. À força de dinheiro e preguiça, eles dispõem de soldados para servir a pátria e de representantes para a venderem.

É a confusão do comércio e das artes, é o ávido interesse do ganho, é a lassidão e o amor das comodidades que trocam os serviços pessoais por dinheiro. Cede-se uma parte do lucro para aumentá-los a bel-prazer. Dai dinheiro e em breve tereis grilhões. A palavra fazenda é um termo de escravo; é desconhecido na cidade. Num Estado verdadeiramente livre, os cidadãos tudo fazem com seus próprios braços, e nada com o dinheiro; longe de pagarem para se isentar de tais serviços, pagarão para os executar pessoalmente. Estou bem distante das idéias comuns, pois acho as borvéias menos contrárias à liberdade que as taxas.

Quanto melhor estiver o Estado constituído, tanto mais os negócios públicos prevalecerão sobre os particulares no espírito dos cidadãos. Chega mesmo a haver muito menor número de negócios privados, porque a soma de felicidade comum fornece maior porção à felicidade de cada indivíduo, de modo que menos lhe resta a procurar em suas ocupações particulares. Numa cidade, bem dirigida, todos votam nas assembléias; sob um mau governo, ninguém aprecia dar um passo para isso fazer, porque ninguém se toma de interesse pelo que se faz, prevendo que a vontade geral não prevalecerá, e porque, enfim, os cuidados particulares tudo absorvem. As boas leis permitem que se façam outras melhores; as más conduzem às piores. Tão logo diga alguém, referindo-se aos assuntos do Estado, que me importo? pode-se ter a certeza de que o Estado está perdido.

O entibiamento do amor à pátria, a atividade do interesse privado, a imensidade dos Estados, as conquistas, os abusos do governo, fizeram imaginar a criação de deputados ou representantes do povo nas assembléias da nação. É a isso que, em certos países, se ousa chamar de terceiro estado. Assim, o interesse particular de duas ordens é posto no primeiro e no segundo plano; o interesse público é relegado ao terceiro.

A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade de modo algum se representa; ou é a mesma ou é outra; não há nisso meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são quando muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente. São nulas todas as leis que o povo não tenha ratificado; deixam de ser leis. O povo inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição dos membros do Parlamento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo, não é nada. Pelo uso que faz da liberdade, nos curtos momentos em que lhe é dado desfrutá-la, bem merece perdê-la.

A idéia dos representantes é moderna; vem do governo feudal, desse iníquo e absurdo governo, no qual a espécie humana é degradada e o nome de homem constitui uma desonra. Nas antigas repúblicas, e inclusive nas monarquias, jamais o povo teve representantes: não se conhecia sequer esse nome. É bastante singular o fato de, em Roma, onde os tribunos eram tão sagrados, sequer se haver imaginado pudessem eles usurpar as funções do povo, e, em meio de uma tão grande multidão, nunca terem tentado passar um só decreto oriundo de sua própria cabeça. Julgue-se, entretanto, pelo que acontecia no tempo dos Gracos, o embaraço causado por vezes pela turba, quando uma parte dos cidadãos dava o voto de cima dos telhados. Onde o direito e a liberdade tudo representam, os inconvenientes nada são. No seio desse povo sábio, tudo estava posto em sua justa medida; ele permitia aos lictores fazerem o que os tribunos não teriam ousado, pois não receava daqueles a veleidade de o representar.

Todavia, para explicar de que forma os tribunos por vezes representavam o povo, basta conceber como o governo representa o soberano. Não sendo a lei senão a declaração da vontade geral, claro está que no poder legislativo não pode o povo ser representado; mas pode e deve sê-lo no poder executivo, que outra coisa não é senão a força aplicada à lei. Isto permite ver que, examinando-se bem as coisas, muito pequeno número de nações possuem efetivamente leis: Seja como for, é certo que, não dispondo os tribunos de nenhuma das partes do poder executivo, não podem jamais representar o povo romano pelos direitos de seus cargos, a não ser usurpando os do Senado.

Entre os gregos, tudo quanto o povo tinha a fazer, fazia-o por si mesmo; vivia constantemente reunido na praça pública. Habitava ele um clima suave, não era ávido, dispunha de escravos para os trabalhos; sua grande ocupação era a própria liberdade. Não mais possuindo as mesmas regalias, como conservar os mesmos direitos? Vossos climas mais duros vos impõem maiores necessidades (22); durante seis meses do ano, a praça pública não é suportável; vossas línguas surdas não se podem fazer entender ao ar livre; dais maior atenção ao vosso ganho que à vossa liberdade, e receais menos a escravidão que a miséria.

Como! Só se mantém a liberdade graças ao apoio da servidão? Talvez. Os dois excessos se tocam. Tudo que não se contém nos limites da Natureza tem os seus inconvenientes, e a sociedade civil mais que tudo o resto. Há tais posições infelizes nas quais é impossível conservar a liberdade, a não ser às expensas da de outrem, e em que o cidadão só pode ser perfeitamente livre, se o escravo for perfeitamente escravo: era assim a condição de Esparta. Quanto a vós, povos modernos, não possuís escravos, porém o sois; e pagais a liberdade deles sacrificando a vossa. Vós vos vangloriais dessa preferência, mas eu vejo nisso mais covardia que humanidade.

Não concebo, pelo exposto, a necessidade de se ter escravos, nem que o direito de escravatura seja legítimo, uma vez que provei o contrário. Exponho apenas as razões pelas quais os povos modernos, que se acreditam livres, têm representantes, e por que os povos antigos não os tinham. Seja como for, no instante em que um povo se dá representantes, deixa de ser livre, cessa de ser povo.

Tudo bem examinado, não vejo ser, daqui por diante, possível ao soberano conservar entre nós o exercício de seus direitos, se a cidade não for pequena. Mas, sendo muito pequena, será ela subjugada? Não. Demonstrarei em seguida (23) como é possível reunir o poderio exterior de um grande povo com o fácil policiamento e a boa ordem de um pequeno Estado.

XVI – Quando a instituição do governo não é um contrato.

Uma vez bem estabelecido o poder legislativo, trata-se de estabelecer igualmente o poder executivo; porque este último, que só opera através de atos particulares, não sendo a essência do outro, está naturalmente dele separado. Se fosse possível que o soberano, como tal considerado, tivesse o poder executivo, o direito e o fato seriam de tal modo confundidos que não mais se saberia o que é lei e o que não o é; e o corpo político, assim desnaturado, cedo seria presa da violência contra a qual havia sido instituído.

Sendo os cidadãos todos iguais em virtude do contrato social, todos podem prescrever o que todos devem fazer, ao passo que ninguém tem o direito de exigir que outro faça aquilo que ele mesmo não faz. Ora, é esse direito propriamente, indispensável para fazer viver e mover o corpo político, que o soberano outorga ao príncipe ao instituir o governo.

Muitos pretenderam que o ato desse estabelecimento constituía um contrato entre o povo e os chefes por ele nomeados, contrato pelo qual se estipulava entre as duas partes as condições que obrigavam um a comandar e outro a obedecer. Há que convir, estou certo, que esta é uma estranha maneira de contratar. Mas vejamos se esta opinião é sustentável.

De início, a autoridade suprema não pode modificar-se nem alienar-se; limitá-la eqüivale a destruí-la. É absurdo e contraditório que o soberano se outorgue um superior; obrigar-se a obedecer a um senhor, é repor-se em plena liberdade.

Além disso, é evidente que o contrato do povo com tais e tais pessoas seria um ato particular; segue-se daí que tal contrato não poderia ser uma lei nem um ato de soberania, e que, por conseguinte, se tornaria ilegítimo.

Vê-se ainda que as partes contratantes se encontrariam entre si sujeitas à única lei natural e sem nenhum fiador de suas obrigações recíprocas, o que repugna de todos os modos ao Estado civil. Quem tem a força na mão seria sempre o senhor da execução; de pouco valeria, portanto, dar o nome de contrato ao ato de um homem que poderia dizer a outrem: “Dou-te tudo o que possuo, com a condição de que me restituas o que bem te aprouver.”

Só há um contrato no Estado: é o da associação, que exclui qualquer outro. Não seria possível imaginar nenhum contrato público que não constituísse uma violação do primeiro.

XVII – Da instituição do governo.

Sob que idéia deve-se, pois, conceber o ato pelo qual o governo é instituído? Assinalarei, de início, que tal ato é complexo ou composto de dois outros: o do estabelecimento da lei e o da sua execução.

Para o primeiro, estatui o soberano que haverá um corpo de governo, estabelecido sob esta ou aquela forma e está claro que este ato constitui uma lei.

Para o segundo, o povo nomeia seus chefes que serão encarregados do governo estabelecido. Ora, sendo essa nomeação um ato particular, não constitui uma lei, mas apenas uma continuação da primeira, e uma função do governo.

A dificuldade consiste em compreender como pode haver um ato de governo antes de existir o governo, e como pode o povo, que só é soberano ou vassalo, tornar-se príncipe ou magistrado em determinadas circunstâncias.

É ainda aqui que se descobre uma dessas surpreendentes propriedades do corpo político, pelas quais este concilia operações contraditórias na aparência; isso é feito em virtude de uma súbita conversão da soberania em democracia, de sorte que, sem nenhuma mudança sensível, é somente através de uma nova relação de todos a todos, os cidadãos, mudados em magistrados, passam dos atos gerais aos atos particulares, e da lei à execução da mesma.

Essa mudança de relação não representa uma sutileza de especulação, desprovida de exemplo na prática; tem lugar todos os dias no Parlamento da Inglaterra, onde a Câmara baixa, em certas ocasiões, se reúne com todo o corpo político, para melhor discutir os negócios, e, de corte soberana, que era no instante precedente, se torna simples comissão, a qual em seguida, faz a si mesma o relatório, como Câmara dos Comuns, do que vem de ajustar na qualidade de comissão, e delibera novamente, sob um título, a respeito do que já decidiu sob outro.

É esta a superioridade do governo democrático: poder estabelecer-se de fato por um simples ato da vontade geral. Depois disso, esse governo é empossado, se tal é a forma adotada ou estabelecida em nome do soberano, passa a prescrever a lei, e tudo entra novamente na normalidade. Não é possível instituir o governo de nenhuma outra maneira legítima, sem renunciar aos princípios acima referidos.

XVIII – Meios de prevenir as usurpações do governo.

Resulta desses esclarecimentos, confirmando o capítulo XVI, que o ato instituidor do governo não constitui um contrato, mas uma lei; que os depositários do poder executivo não são em absoluto os senhores do povo, mas apenas seus oficiais; que o povo dispõe do direito de os nomear e os substituir quando bem lhe aprouver; que o problema, para eles, não consiste em contratar, mas em obedecer, e que, incumbindo-se das funções que lhes são impostas pelo Estado, outra coisa não fazem senão cumprir com seu dever de cidadãos, sem terem de maneira alguma o direito de discutir as suas condições.

Quando, pois, acontece que um povo institui um governo hereditário, seja monárquico, numa família, seja aristocrático, numa ordem de cidadãos, não constitui o fato uma obrigação assumida; trata-se de uma forma provisória dada por ele à administração, até que se compraza em a substituir por outra.

É verdade que essas mudanças são sempre perigosas, e que não convém tocar jamais no governo estabelecido, exceto quando este se torna incompatível com o bem público; mas tal circunstância é uma máxima política e não uma regra de direito, e o Estado não é mais constrangido a deixar a autoridade civil em mãos de seus chefes ou a autoridade militar em mãos de seus generais.

É ainda verdade que, em semelhante caso, não seria possível observar com excessivo cuidado todas as formalidades requeridas para se distinguir um ato regular e legítimo de um tumulto sedicioso ou a vontade de todo um povo dos clamores de uma facção. É sobretudo neste ponto que só se deve dar ao caso odioso o que não se lhe pode recusar em todo o rigor do direito, e é também desta obrigação que retira o príncipe a superioridade que lhe permite conservar o poder, malgrado a oposição do povo, sem que se possa dizer que ele o tenha usurpado; porque, parecendo fazer apenas uso de seus direitos, é muito fácil para ele estender esses direitos, e impedir, sob o pretexto de tranqüilidade pública, as assembléias destinadas a restabelecer a boa ordem, de forma a prevalecer-se de um silêncio, que ele mesmo não permite se rompa, ou das irregularidades que faz cometer a fim de mudar em seu favor a opinião dos que se calam por receio e punir os que ousam falar. É assim que os decênviros, eleitos de início por um ano, com mandato em seguida prorrogado por mais um ano, tentaram manter perpetuamente seu poder, não permitindo que o povo se reunisse em comícios; e é também por esse meio fácil que todos os governos do mundo, uma vez revestidos da força do público, usurpam cedo ou tarde a autoridade soberana.

As assembléias periódicas, de que falei anteriormente, são apropriadas para prevenir ou espaçar esse infortúnio, mormente se independem de convocação formal; porque então o príncipe não pode impedi-las, sem se declarar abertamente infrator das leis e inimigo do Estado.

A abertura dessas assembléias, cujo único objetivo é a manutenção do tratado social, deve sempre fazer-se por duas proposições que não possam jamais ser suprimidas e sejam separadamente sufragadas.

A primeira consiste em saber: Se apraz ao soberano conservar a presente forma de governo; e a segunda: Se ao povo apraz deixar a administração aos que dela estão atualmente incumbidos.

Suponho nesta altura haver já demonstrado que não existe no Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem mesmo o pacto social; porque, se todos os cidadãos se reunissem com o fim de romper esse pacto, ninguém poderia duvidar de que tal rompimento não fosse legítimo. Grotius chega mesmo a pensar que cada qual tem o direito de renunciar ao Estado de que é membro e retomar sua liberdade natural e seus bens, retirando-se do país (24). Ora, seria absurdo não poderem decidir os cidadãos reunidos o que pode cada um deles separadamente.

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