Filosofia e Economia

Frei Betto

A história é repleta de mentiras bem contadas. Tão bem contadas que soam como verdades inquestionáveis. É o caso da filosofia, que muitos acreditam ter nascido na Grécia. Claro, a Grécia fica na Europa e o que de bom poderia vir de outra parte do mundo antes do descobrimento da América?

A ótica eurocentrista apossou-se da filosofia como, hoje, o presidente Bush arvora-se em intérprete da vontade divina e acredita que o Senhor dos Exércitos o inspira a combater, em defesa do Bem, o Mal encarnado em Saddam Hussein e seus súditos. A propósito, vale lembrar o que disse o profeta Isaías, que viveu há 2.800 anos: "Ai dos que dizem que o mal é bem, e o bem é mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo!" (5, 20).

Só quem ignora a sabedoria da literatura oriental, dos vedas aos textos bíblicos, pode acreditar que a filosofia é filha dos gregos. Como se a lógica e a ética, a matemática e a epistemologia, já não deitassem raízes no pensamento e nos escritos de sábios chineses e indianos, sumérios e egípcios. Se o Oriente fosse tão pouco lógico como tenta impingir-nos a arrogância eurocêntrica, os chineses não teriam inventado a bússola e o timão, o cultivo em fileiras e o alto-forno, a pólvora e o estribo, o mastro múltiplo e o carrinho de mão, o papel e a imprensa (centenas de anos antes de Gutenberg).

A filosofia, como busca do conhecimento pela via racional, é tão antiga como o ser humano. Embora tenha alcançado seu esplendor na Grécia, isso não significa que os povos antigos a ignorassem. Nem a ciência, nem a técnica são frutos exclusivos do solo europeu. Os maias, na América Central, detinham conhecimentos científicos, como em matemática e meteorologia, tão precisos como os que são, hoje, comprovados por sofisticados instrumentos.

Filosofia vem de filo, amizade, e sofia, sabedoria. O filósofo é amigo da sabedoria, termo que encerra duas noções complementares, a de saber (racional) e a de sabor (experimental). Sábio não é o erudito. É quem procura a verdade para tornar a humanidade mais feliz. E a verdade quase nunca reside nas aparências e nem é necessariamente captada pelos sentidos.

Pode-se aplicar à economia e à política essa mesma desconfiança que mascara a filosofia como criação grega. Haveria outra lógica econômica além da que adota o mercado como paradigma supremo? Se há, ela ainda é tão desconhecida como os escritos de Sócrates. Bem que o socialismo tentou e incorreu no mesmo erro da economia capitalista: divorciou-se da política. Assim, não conseguiu articular direito econômico e liberdade política. Restringiu esta para assegurar aquela. Saciou a fome de pão, mas não a de beleza.

Hoje, a economia de mercado prossegue tributária deste pecado original: garante o seu êxito graças ao sacrifício da política, ou seja, do bem-estar da população. Submetida à perversidade dessa lógica econômica, que protege os ricos e penaliza os pobres, a política transforma-se em mera legitimadora da economia. É como a árvore que se vê cortada pelo machado e percebe que o seu cabo é de madeira!

Como inverter a polaridade e submeter a economia à política e, sobretudo, aos direitos sociais? Eis um desafio a ser enfrentado pelos governantes, o que implica deparar com outro dilema, para o qual ainda não há solução: optar pela centralização do poder político, como faz a China para domar a ferocidade do mercado e obrigar a economia a andar nos trilhos de sua estratégia nacional, ou promover tamanha descentralização (algo como o orçamento participativo em nível nacional) capaz de transferir efetivamente o poder do Estado à nação.

A democracia é, ainda hoje, representativa. Para se tornar participativa seria preciso que a sociedade civil abandonasse sua atitude de beneficiária do Estado para assumir o papel de protagonista. Ou, como diria Platão, que o cidadão deixasse de mirar as sombras da caverna e, livre das amarras, encarasse a realidade de que a sociedade é ato primeiro e, o Estado, ato segundo. Esta é ferramenta daquela.

Acredito que o fortalecimento dos movimentos sociais e do Terceiro Setor tende a fortalecer esse ideal. Tomara que surja um novo Maquiavel que nos brinde, não com O Príncipe, mas com O Povo. E quem sabe Platão já não se sentisse tão frustrado se visse resgatada a sua utopia: a sabedoria do povo fazendo da política a mestra da economia, instruindo-a como ciência da vida, e vida para todos.

Talvez a economia (administração da casa) até mude de nome. Será então conhecida como bionomia (administração da vida).

* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto ­ Autobiografia Escolar" (Ática), entre outros livros

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