Da Propriedade e dos Meios de Adquiri-Ia - Aristóteles

O talento para adquirir um bem difere claramente da ciência do governo ou da do serviço. Parece-se mais com a arte militar ou com a caça. Ao expor a teoria, porém, seguiremos o plano que traçamos mais acima, em que o escravo só entra como coisa ou instrumento.

A arte de adquirir bens será idêntica à ciência do governo doméstico? Faz parte dela ou será apenas um de seus meios? E, caso seja apenas um de seus meios, será como a arte de fazer lançadeiras serve à do tecelão ou como a forja do bronze serve à arte do fundidor de estátuas? Pois não é o mesmo gênero de trabalho, já que uma dessas artes só fornece o instrumento e as outras, só a matéria. (Entendo por matéria aquilo de que se faz a obra, como a lã para o fabricante de tecidos e o bronze para o fundidor de estátuas.)

É claro que a arte de aprovisionar uma casa não é a mesma coisa que a arte de governar. A primeira só traz os meios, a segunda faz uso deles; pois a que pertenceria o uso dos bens da casa a não ser à ciência do governo doméstico?

Mas uma faz parte da outra ou é uma espécie à parte? Isto oferece dificuldade, pois, se para adquirir for preciso saber de onde vêm as riquezas e os bens de todos os gêneros, não podemos deixar de reconhecer um grande número de propriedades diferentes.

A Aquisição Natural ou "Economia"

É uma primeira questão dizer se a agricultura, que é apenas uma maneira de obter os alimentos necessários à vida, ou alguma outra indústria que também tenha os alimentos como objeto, pertencem à arte de se enriquecer.

Existem várias espécies de alimentos, e esta diversidade introduziu vários gêneros de vida, tanto entre os homens quanto entre os outros animais. Pois não se pode viver sem alimentos. Ora, é sua diversidade que torna dessemelhante o gênero de vida dos animais.

Alguns dentre eles se reúnem em bandos, outros levam uma vida solitária, conforme seja mais conveniente para obter alimento. Uns são carnívoros, outros frugívoros e alguns comem de tudo. A natureza, portanto, distinguiu seu gênero de vida conforme a espécie de alimentos e a facilidade que têm para obtê-los.

Nem todos gostam do mesmo alimento: tal agrada a alguns, outro aos: demais.

Eis por que os carnívoros e os frugívoros não têm o mesmo gênero de vida.

Todas estas diferenças também se notaram na vida dose, homens. Os que amam o repouso preferiram a vida pastoral. Sem que isto lhes custe nenhum trabalho, eles: tiram sua subsistência de animais domesticados e só mudam de lugar com seus rebanhos, exercendo uma espécie de cultura de seres vivos.

Outros vivem de suas presas: os caçadores, de presas terrestres; os pescadores, de presas aquáticas; estes,: à margem dos pântanos, das lagoas, dos rios e do mar; aqueles, nas planícies e nos bosques onde habitam os pássaros e os animais selvagens.

Mas a maioria dos homens tira seu alimento do seio da terra e vive de seus frutos, adoçados pela cultura.

Numa palavra, existem tantos gêneros de vida quanto operações naturais para obter víveres, sem contar os que se adquirem por troca ou compra. Vida pastoral, vida agrícola, vida aventureira baseada nas capturas da caça ou da pesca, todos estes são gêneros que se misturam e se combinam na maior parte dos povos, conforme a necessidade, a fantasia ou o prazer, para suprir através de um a falta do outro, sendo tal povo pastor e salteador, tal outro agrícola e caçador, ou vivendo conforme a necessidade.

Assim, a natureza proveu todos os animais, tanto no momento de sua geração como quando atingiram a perfeição: aqueles, por exemplo, que nascem de ovos, colocando sob o próprio invólucro o alimento suficiente até que nasçam; aqueles que pertencem à espécie vivípara, enchendo de leite o seio de sua mãe até a hora em que podem dispensá-lo.

Da mesma forma, a natureza proveu as suas necessidades depois do nascimento; foi para os animais em geral que ela fez nascerem as plantas; é aos homens que ela destina os próprios animais, os domesticados para o serviço e para a alimentação, os selvagens, pelo menos a maior parte, para a alimentação e para diversas utilidades, tais como o vestuário e os outros objetos que se tiram deles. A natureza nada fez de imperfeito, nem de inútil; ela fez tudo para nós.

A própria guerra é um meio natural de adquirir; a caça faz parte dela; usa-se desse meio não apenas contra os animais, mas também contra os homens que, tendo nascido para obedecer, se recusam a fazê-lo. Este tipo de guerra nada tem de injusto, sendo, por assim dizer, declarada pela própria natureza.

Conforme esta breve exposição, é evidente que o governo, tanto o das famílias particulares como o dos Estados, contém como parte integrante todas as maneiras naturais de adquirir as coisas necessárias ou úteis à vida. Ele deve encontrar sob sua mão todas as coisas, ou senão saber onde tomá-las.

As verdadeiras riquezas são essas; não é difícil determinar a quantidade necessária para o bem-estar. Sólon não se referia a elas quando dizia: O homem quer acumular sem fim e sem medida.

Exprimia-se, então, mais como poeta do que como filósofo, pois nesta como em todas as coisas existem limites. Em qualquer arte possível, nenhum gênero de instrumento é infinito em número ou em grandeza. Ora, quer nas casas particulares, quer nas lojas públicas as riquezas naturais são apenas um acervo de instrumentos para sustentar a vida humana.

A Aquisição Artificial ou "Crematística"

Existe, portanto - mostramos agora a razão disso -, um gênero de riquezas naturais próprio à economia doméstica tanto quanto à economia política. Mas existe também um outro gênero de bens e de meios que comumente chamamos, e com razão, especulativo, e que parece não ter limites.

Alguns os confundem com as riquezas de que acabamos de falar, por causa da sua afinidade. Embora elas não estejam muito distantes, não são a mesma coisa: as primeiras são naturais, enquanto as segundas são um produto da arte e da experiência.

Comecemos pela seguinte observação: cada coisa que possuímos tem dois usos, dos quais nenhum repugna a sua natureza; porém, um é próprio e conforme a sua destinação, outro desviado para algum outro fim. Por exemplo, o uso próprio de um sapato é calçar; podemos também vendê-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão, ou alguma outra coisa, isto sem que ele mude de natureza; mas este não é o seu uso próprio, já que ele não foi inventado para o comércio. O mesmo acontece com as outras coisas que possuímos. A natureza não as fez para serem trocadas, mas, tendo os homens uns mais, outros menos do que precisam, foram levadas por este acaso à troca.

Tampouco foi a natureza que produziu o comércio que consiste em comprar para revender mais caro. A troca era um expediente necessário para proporcionar a cada um a satisfação de suas necessidades. Ela não era necessária na sociedade primitiva das famílias, onde tudo era comum.

Tornou-se necessária apenas nas grandes sociedades e após a separação das propriedades. É até mesmo corrente ainda hoje entre vários povos bárbaros. Quando uma tribo tem de sobra o que falta a outra, elas permutam o que têm de supérfluo através de trocas recíprocas; vinho por trigo ou outras coisas que lhes podem ser de uso, e nada mais. Trata-se de um gênero de comércio que não está nem fora das intenções da natureza, nem tampouco é uma das maneiras naturais de aumentar seus pertences, mas sim um modo engenhoso de satisfazer as respectivas necessidades.

Foi esse comércio que, dirigido pela razão, fez com que se imaginasse o expediente da moeda. Não era cômodo transportar para longe as mercadorias ou outras produções para trazer outras, sem estar certo de encontrar aquilo que se procurava, nem que aquilo que se levava conviria. Podia acontecer que não se precisasse do supérfluo dos outros, ou que não precisassem do vosso.

Estabeleceu-se, portanto, dar e receber reciprocamente em troca algo que, além de seu valor intrínseco, apresentasse a comodidade de ser mais manejável e de transporte mais fácil, como o metal, tanto o ferro quanto a prata ou qualquer outro, que primeiramente se determinou pelo volume ou pelo peso e a seguir se marcou com um sinal distintivo de seu valor, a fim de não se precisar medi-lo ou pesá-lo a toda hora.

Tendo a moeda sido inventada, portanto, para as necessidades de comércio, originou-se dela uma nova maneira de comerciar e adquirir. A princípio, era bastante simples; depois, com o tempo, passou a ser mais refinada, quando se soube de onde e de que maneira se podia tirar dela o maior lucro possível. É este lucro pecuniário que ela postula; ela só se ocupa em procurar de onde vem mais dinheiro: é a mãe das grandes fortunas. De fato, comumente se faz consistir a riqueza na grande quantidade de dinheiro.

No entanto, o dinheiro é somente uma ficção e todo seu valor é o que a lei lhe dá. Mudando a opinião dos que fazem uso dele, não terá mais nenhuma utilidade e não proporcionará mais a menor das coisas necessárias à vida.

Mesmo se se tiver uma enorme quantidade de dinheiro, não se encontrarão, por meio dele, os mais indispensáveis alimentos. Ora, é absurdo chamar "riquezas" um metal cuja abundância não impede de se morrer de fome; prova disso é o Midas da fábula, a quem o céu, para puni-lo de sua insaciável avareza, concedera o dom de transformar em ouro tudo o que tocasse. As pessoas sensatas, portanto, colocam em outra parte as riquezas e preferem (e nisto estão certas) outro gênero de aquisição. As verdadeiras riquezas são as da natureza; apenas elas são objeto da ciência econômica.

A outra maneira de enriquecer pertence ao comércio, profissão voltada inteiramente para o dinheiro, que sonha com ele, que não tem outro elemento nem outro fim, que não tem limite onde possa deter-se a cupidez.

Em geral, todas as artes querem indefinidamente seu fim. A medicina, por exemplo, que tem por objeto a saúde, abarca todos os casos que levam ao seu restabelecimento, que são inúmeros. Mas cada um dos meios de cada arte tem seus limites e está consumado quando chega ao seu fim, isto é, ao último termo que deve alcançar.

O fim a que se propõe o comércio não tem limite determinado. Ele compreende todos os bens que se podem adquirir; mas é menos a sua aquisição do que seu uso 0 objeto da ciência econômica; esta, portanto, está necessariamente restrita a uma quantidade determinada.

Não ignoramos que neste ponto a teoria é desmentida pela prática. Todos, e principalmente os comerciantes, amam o dinheiro, não julgam ter o suficiente e sempre acumulam. De um ao outro, é apenas um passo.

O dinheiro serve-lhes para dois usos análogos e alternativos: um, para comprar as coisas e revendê-las mais caro; outro, para emprestar e retirar, após o prazo estabelecido, seu capital com juros. Estes dois ramos do seu tráfico não diferem, como se vê, senão porque um interpõe as coisas para aumentar o dinheiro, enquanto o outro o faz servir imediatamente ao seu próprio aumento.

Alguns acham que as duas operações convêm ao governo doméstico e que é preciso não somente conservar o que se tem, mas também multiplicar o dinheiro ao infinito. O princípio desta disposição de espírito é que eles só pensam em viver e não em bem viver', paixão que não tem limites e não refreia de modo algum a escolha dos meios.

Aqueles mesmos que desejam bem viver não deixam de procurar também os prazeres da vida animal e, como isso depende das faculdades pecuniárias, põem todo seu zelo em obtê-los. Este é o princípio de uma outra espécie de tráfico cujos recursos só foram imaginados para o luxo.

Aqueles que considerações particulares impedem de correr atrás da fortuna através do comércio tentam consegui-la por outros meios, às vezes até pelo mais monstruoso abuso de suas qualidades superiores e de suas faculdades. A coragem, por exemplo, não foi dada ao homem pela natureza para acumular bens, mas para proporcionar tranqüilidade. Não é esse tampouco o objeto da profissão militar, nem o da medicina, tendo uma por objeto vencer, e outra curar.

Converteram-nas, porém, em meios de obter riqueza: elas se tornam o único fim da maioria das pessoas que entram nessas carreiras e subordinam tudo à meta que se propuseram.

Vemos quais são os meios artificiais e não necessários de adquirir bens, e as causas que determinam que se recorra a eles; vemos também quais são os meios naturais e necessários que têm por objeto garantir a subsistência e que pertencem ao governo doméstico, gênero de aquisição que tem limites e é muito diferente daquele que não os tem.

Local original do texto:

RECORTE do arquivo A Política - Aristóteles -.-www.LivrosGratis.net-.-.pdf disponível para download na internet

Acesso em 24/maio/2011