Felicidade Privada e Felicidade Pública

Resta-nos explicar se a felicidade é idêntica para o Estado e para cada particular. Que devemos colocá-la entre os mesmos gêneros de bem é um ponto sobre o qual todos estão de acordo. Os que colocam a felicidade do homem nas riquezas só consideram felizes os Estados ricos. Os que a colocam no despotismo e na força pretendem que a suprema felicidade do Estado é dominar vários outros. Os que não veem outra felicidade para o homem que não a virtude chamam feliz apenas o Estado em que a virtude é honrada. Mas desde o primeiro passo surge uma questão para ser examinada: que vida preferir, a que toma parte do governo e dos negócios públicos ou a vida retirada e livre de todos os embaraços do gênero? Não entra no plano da Política determinar o que pode convir a cada indivíduo, mas sim o que convém à pluralidade. Em nossa Étíca, aliás, tratamos do primeiro ponto. Portanto, nós o omitiremos aqui para nos determos no outro. Não há nenhuma dúvida de que o melhor governo seja aquele no qual cada um encontre a melhor maneira de viver feliz. Mas aqueles mesmos que concordam em preferir a vida virtuosa não chegam a um acordo sobre se devemos preferir a vida ativa e política à vida contemplativa e livre da confusão dos negócios humanos, vida esta que alguns consideram como a única digna do filósofo. Com efeito, estes dois gêneros de vida, a vida filosófica e a carreira política, foram escolhidos por todos os que, tanto antigos quanto modernos, tiveram a ambição de se distinguir por seus méritos. E certamente não é de pouca importância saber onde está a verdade. É próprio da sabedoria, tanto a de cada homem em particular quanto a de todo Estado em geral, dirigir suas ações e sua conduta para o melhor fim. Ora, muitos pensam que comandar seus semelhantes, se praticado com despotismo, é uma grande injustiça, mas que, se se comanda politicamente, não é uma injustiça, mas somente um obstáculo à própria tranquilidade. Alguns, pelo contrário, julgam que a vida ativa e consagrada aos negócios públicos é a única digna do homem e que jamais se acharão na vida privada tantas ocasiões de exercer cada virtude quanto no trato dos negócios públicos e no governo do Estado. Outros chegam a sustentar que o despotismo e o império da força são, para um povo, a única maneira de ser feliz. Vemos, com efeito, que em alguns Estados o governo e as leis tendem à preocupação única de dominar os vizinhos. Por mais que consideremos todas as constituições espalhadas por diversas regiões, se suas leis, em sua maioria bastante confusas, têm um fim particular, este fim sempre é dominar. Na Lacedemônia e em Creta, a quase totalidade de sua disciplina e de suas numerosas regras é dirigida para a guerra. Em todas as nações que têm o poder de crescer, entre os citas, entre os persas, entre os trácios, entre os celtas, não há nenhuma profissão mais estimada do que a das armas. Em alguns lugares, existem leis para estimular a coragem guerreira. Em Cartago, as pessoas são decoradas com tantos anéis quantas foram as campanhas que fizeram. Na Macedônia, uma lei pretendia que aqueles que não houvessem matado nenhum inimigo tivessem que andar de cabresto. Entre os citas, aquele que estivesse nesse caso sofria a afronta de não beber à roda, na taça das refeições solenes. A Ibéria, nação belicosa, levanta ao redor das tumbas tantos obeliscos quantos inimigos o defunto matou. Em outras partes, encontramos instituições semelhantes, ordenadas pelas leis ou estabelecidas pelo costume.

Contudo, se quisermos prestar atenção a isto, parecerá muito absurdo que a política ensine a dominar seus vizinhos, com ou sem a força. Com efeito, como erigirem máxima de Estado ou em lei o que não é nem mesmo lícito? Ora, é lícito comandar sem nenhum direito e ainda mais contra todo direito. Uma vitória injusta não pode ser um motivo justo. Este absurdo não se observa em nenhuma outra ciência. Não é ofício nem do médico, nem do piloto persuadir ou fazer violência, um a seus doentes, o outro a seus marinheiros. Mas muitos parecem considerar a dominação como 0 objeto da política, e aquilo que não cremos nem justo nem útil para nós não temos vergonha de tentar contra os outros. Eles não querem justiça no governo a não ser para eles próprios, mas, se se trata de comandar os outros, ela é a coisa com que menos se preocupam; absurdo revoltante, a menos que a natureza não tenha destinado uns a dominar e não tenha recusado a outros esta aptidão. Se ela estabeleceu esta distinção, pelo menos não se deve tentar dominar a todos, mas apenas aos que só servem para serem submetidos. É assim que não se vai à caça para pegar os homens e comê-los ou matá-los, mas apenas para pegar os animais selvagens que são comestíveis. Não existe Estado feliz por si mesmo senão o que se constitui sobre as bases da honestidade. É possível encontrar algum cuja posição não permita nem guerrear, nem pensar em vencer. Sua felicidade não deixará de estar garantida, desde que ele use de civilidade e de leis virtuosas. Portanto, se devemos considerar honestos os exercícios militares, não é enquanto fim último, mas como estabelecidos para um fim melhor. Um legislador sábio só deve considerar, no Estado, no gênero humano ou nas sociedades particulares de que é composto, a sua aptidão à vida feliz e o gênero de felicidade de que são capazes. Isto não significa que deva haver a mesma constituição e as mesmas leis em toda parte. Se houver povos vizinhos, é prudente cuidar da maneira de se comportar para com eles, dos exercícios militares que esta circunstância exige e dos serviços que podemos prestar-lhes. É o que examinaremos logo mais, ao tratar do fim a que deve tender uma boa constituição. A Vida Ativa, Fonte das Duas Felicidades Não tratamos aqui senão dos que concordam com o princípio de que devemos preferir a vida virtuosa a qualquer outra, mas que não estão de acordo sobre sua aplicação. Uns não dão nenhuma importância aos cargos políticos e consideram a vida de um homem livre muito superior à que se leva na confusão do governo; outros preferem a vida política, não acreditando que seja possível não fazer nada, nem portanto ser feliz quando não se faz nada, nem que se possa conceber a felicidade na inação. Uns e outros têm razão até certo ponto e se enganam sobre o resto. Os primeiros têm razão ao dizer que mais vale viver livre do que mandar. Não há nada de magnífico em se servir de um escravo, enquanto escravo, nem em ditar a lei a pessoas que são forçadas a obedecer. Mas não se deve acreditar que todo mando seja dominação. O domínio exercido sobre homens livres difere tanto do exercido sobre escravos quanto o homem nascido para a liberdade difere do homem naturalmente escravo, cuja definição demos no começo deste livro. Além disso, não é exato elevar a inação acima da vida ativa, já que a felicidade consiste em ação, e as ações dos homens justos e moderados têm sempre fins honestos. Não devemos concluir daí, como fazem os segundos, que nada disso ocorre quando se tem nas mão o poder, o meio mais seguro de executar projetos honestos; que, assim, aquele que pode mandar não deve deixar o mando com um outro, mas antes deve torná-lo dele, mesmo que seja o pai aos seus filhos, os filhos ao seu pai, os amigos a seus amigos, sem se preocupar com todas estas considerações; que devemos desejar exclusivamente o que há de melhor, e não há nada comparável à felicidade que nos proporcionam, mesmo contra nossa vontade. Isso poderia ser verdade, se as empresas e atos de autoridade que nos chocam pudessem proporcionar-nos efetivamente o que para nós é mais desejável. Ora, isso é impossível, e esses pretensos governos iludem-se a si mesmos. Para que seus procedimentos fossem toleráveis, seria preciso pelo menos que eles tivessem sobre nós o mesmo poder que tem o marido sobre a mulher, o pai sobre os filhos, o senhor sobre os escravos. Sem isso, qualquer que seja o sucesso ulterior, não podem justificar a injúria que nos fizeram antecipadamente ao violar nossa liberdade. Entre semelhantes, a honestidade e a justiça consistem em que cada um tenha a sua vez. Apenas isto conserva a igualdade. A desigualdade entre iguais e as distinções entre semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade. Se, porém, se encontrasse alguém que ultrapassasse todos os outros em mérito e em poder e tivesse provado seu valor com grandes façanhas, seria belo ceder a ele e justo obedecer-lhe. Mas não basta ter mérito, é preciso ter bastante energia e atividade para estar certo do êxito. Isto posto, sendo, aliás, indubitável que a felicidade consiste na ação, a melhor vida, tanto para o Estado inteiro como para cada um em particular, é, sem dúvida, a vida ativa. Ademais, não devemos, como alguns imaginam, restringir a vida ativa apenas às ações que terminam fora, nem aos projetos que nascem da ocasião. Ela abarca também as meditações que tratam dessas ações e desses projetos e que, além do contentamento que por si mesmos proporcionam, ainda tornam a execução mais perfeita. Jamais somos tão senhores da ação exterior do que quando ela foi precedida de exame e de reflexão; é assim que, em arquitetura, o mérito das obras procede da profunda meditação sobre as plantas. Os Estados mais isolados não podem permanecer na ociosidade mesmo que queiram, a não ser por frações de tempo e por intervalos. Se não têm comunicação com o exterior, há ao menos comunicação necessária de uma parte a outra. O mesmo ocorre com as cidades e com os indivíduos entre si.

Nem mesmo o próprio Deus e o mundo inteiro seriam felizes se, além de seus atos internos, eles não se manifestassem exteriormente pelos seus benefícios. É, portanto, claro que a fonte da felicidade é a mesma para os Estados e para os particulares.

Da Eugenia e da Educação

Como é a própria virtude que, em nosso sistema, faz o bom cidadão, o bom magistrado e o homem de bem, e como é preciso começar obedecendo antes de comandar, o legislador deve cuidar principalmente de formar pessoas honestas, procurar saber por quais exercícios tornará honestos os cidadãos e sobretudo conhecer bem qual é o ponto capital da vida feliz. Há na alma duas partes distintas, das quais uma, por si mesma, possui a razão, e outra não participa dela, mas pode obedecer-lhe. Pertencem a estas duas partes as virtudes que caracterizam o homem de bem. Conforme esta distinção, é fácil decidir em qual das duas reside o fim a que todo homem se deve propor. O menos bom está sempre subordinado ao melhor por sua destinação. Observa-se isto tanto nas obras de arte quanto nas da natureza. Ora, a parte que goza da razão é sem dúvida a melhor. Segundo nosso sistema, esta parte se subdivide em duas outras: a parte ativa e a parte contemplativa. Ora, os atos devem corresponder a suas faculdades e seguir a mesma divisão. Aqueles que provêm da parte mais excelente são, por conseguinte, preferíveis, quer os comparemos em bloco, quer o confronto se faça de um por um. Toda a vida se divide entre o trabalho e o repouso, a guerra e a paz, e todas as nossas ações se dividem em ações necessárias, ações úteis ou ações honestas. Devemos estabelecer entre elas a mesma ordem que entre as partes de nossa alma e seus atos, subordinar a guerra à paz, o trabalho ao repouso e o necessário ou útil ao honesto. Um legislador deve levar tudo isso em consideração ao escrever suas leis; respeitar a distinção das partes da alma e de seus atos; ter especialmente em vista o que há de melhor, assim como o fim que deseja alcançar; conservar a mesma ordem na divisão da vida e das ações; dispor tudo de tal maneira que se possa tratar dos negócios e guerrear, mas que se prefira sempre o repouso aos negócios, a paz à guerra, e as coisas honestas às coisas úteis e até às necessárias. É de acordo com este plano que se deve dirigir a educação das crianças e a disciplina de todas as idades que dela precisam.

Fim Pacífico da Educação

Acho que nem aqueles dentre os povos da Grécia que hoje são considerados os mais bem constituídos politicamente, nem os autores de suas constituições viram qual era o melhor objetivo da vida social e não dirigiram a ele nem suas leis, nem suas instituições. Longe de voltar a educação pública para a universalidade das virtudes, eles propenderam exageradamente para o que lhes parecia útil e capaz de fortalecê-los às custas dos outros. Os que escreveram depois sobre isto tiveram opinião mais ou menos parecida.

Ao fazer o elogio da constituição lacedemônia, admiram o legislador por ter relacionado todas as suas leis à guerra e à vitória. O erro é fácil de refutar pelo raciocínio, e os acontecimentos deste século o desgastaram ainda mais. Como a maioria dos homens tem mania de dominar os outros para obter todas as comodidades, Tíbron e todos os que escreveram sobre o governo da Lacedemônia parecem admirar seu legislador por ter aumentado muito seu império, tendo exercitado a nação nos perigos da guerra. Mas, agora que os lacedemônios não dominam mais, deixaram de ser felizes e seu legislador, de merecer sua reputação. Não é ridículo que, persistindo sob as leis de Licurgo e não tendo nada que os impedisse de valer-se delas, eles tenham deixado escapar sua felicidade? Vemos, pois, que eles não têm ideias muito sadias sobre a honra que um legislador deve atribuir ao comando. Exercendo-se sobre pessoas livres, é incomparavelmente mais estimável e mais conforme à justiça do que o despotismo.

Não é, sobretudo, nem uma felicidade para o Estado, nem um sinal de sabedoria para o legislador treinar seu povo para vencer seus vizinhos. Disso só podem resultar grandes males, e aquele que for bem-sucedido não vai deixar de investir contra a sua própria pátria e, se puder, de assenhorear-se dela. Essa é a censura que os lacedemônios fazem ao rei Pausânias, cuja ambição não se contentou com este alto grau de honra. Não há, pois, nem política, nem utilidade, nem bom senso em semelhantes concepções, nem numa tal legislação. Um legislador deve imprimir profundamente no espírito de seu povo que o que é muito bom para cada um em particular o é também para o Estado; que não convém entregar-se ao treinamento militar a fim de sujeitar os que não o merecem; que tais exercícios devem ter como objeto apenas preservar a si mesmo da servidão e também tornar-se útil aos vencidos. O objetivo não é dominar toda a terra, mas apenas os que não são capazes de bem usar de sua liberdade e mereceram a escravidão por sua maldade.

Que todo legislador deva subordinar a guerra e todas as suas outras leis ao repouso e à paz é o que prova a experiência, juntamente com a razão. Ao fazer a guerra, vários Estados se conservaram, mas, assim que conquistaram a superioridade, entraram em decadência, semelhantes ao ferro que se enferruja pela inação. Deve-se, então, criticar o legislador que não lhes ensinou como viver em paz.

Sendo o fim o mesmo tanto para a vida pública quanto para a vida privada, a perfeição dos Estados não pode definir-se de modo diferente da dos particulares. Não resta dúvida, portanto, de que se devam cultivar de preferência as virtudes pacíficas.

Como já se disse muitas vezes, a paz deve ser o fim da guerra, e o repouso, o do trabalho. Ora, nada de mais útil ao repouso e à direção da vida do que as virtudes que têm uso não apenas no repouso, mas sobretudo na ocupação. Com efeito, é preciso ter o necessário para depois poder gozar de algum lazer. O Estado precisa de temperança, mas ainda mais de coragem e de paciência. "Não há repouso para os escravos", diz o provérbio. Ora, os que não têm coragem para se expor aos perigos tornam-se escravos de seus agressores. É preciso, portanto, coragem e constância para os negócios, filosofia para o lazer, temperança e justiça em ambos os tempos, mas sobretudo em tempo de paz e de repouso. Pois a guerra nos força a ser justos e temperantes. Pelo contrário, na paz e no repouso, é comum que a prosperidade nos torne indolentes. Portanto, os que parecem felizes e, semelhantes aos habitantes das ilhas Afortunadas de que falam os poetas, gozam de tudo o que pode contribuir para a felicidade precisam mais do que os outros de justiça e de temperança. Quanto mais opulência e lazer tiverem, mais precisarão de filosofia, de moderação e de justiça, e o Estado que quiser ser feliz e florescente deve inculcar-lhes estas virtudes o máximo possível. Se há algo de ignóbil em não saber gozar das riquezas, há bem mais ainda em fazer mau uso delas quando só se tem isso para fazer. É revoltante que homens, aliás, dignos de estima nos trabalhos e nos perigos da guerra se comportem como escravos no descanso e na paz.

Não convém exercer a virtude à maneira dos lacedemônios. Na verdade, estes não diferem dos outros pela opinião sobre o soberano bem, mas pela espécie de meios ou de virtudes que escolheram para chegar a ele. já que os verdadeiros bens, vale dizer, os da paz e do repouso, são maiores do que os da guerra, o gozo deles também é preferível a qualquer outro e estes só têm valor em relação àqueles. Trata-se, portanto, de examinar como e por que meios devemos obtê-los.

Dissemos mais acima que três coisas devem contribuir para isto: a natureza, o hábito e a razão. Dissemos também quais devem ser as disposições naturais. Resta saber se para formar os homens mais vale começar pelo raciocínio ou pelo hábito, duas coisas que devemos nos esforçar ao máximo para dar ao mesmo tempo. A faculdade que recebe a influência da razão pode, com efeito, afastar-se algumas vezes do fim e outras vezes, também, ceder ao domínio do hábito.

É evidente que, neste caso, assim como em qualquer outro, o princípio de onde tudo procede é a geração do homem, mas não é o mesmo que aquele de que dependem seu fim e sua perfeição. A razão e o intelecto são a principal e derradeira parte onde se manifesta para nós a obra da natureza. Cumpre, portanto, subordinar-lhes a obra da geração humana e a formação dos costumes.

Da mesma forma que a alma e o corpo são duas substâncias distintas, assim também a alma tem duas faculdades não menos distintas, uma iluminada pela razão e outra que não tem esta luz; por conseguinte, há dois tipos de hábitos, uns apaixonados, ou provindos da sensibilidade, outros intelectuais. E, assim como o corpo é gerado antes da alma, a parte carente de razão o é, igualmente, antes da razoável. Isto se observa pelos rasgos de cólera, pelos desejos e pelas vontades mostradas pelas crianças tão logo nascem. Mas o raciocínio e a inteligência só lhes vêm naturalmente com a idade. Convém, portanto, dar as primeiras atenções ao corpo, as segundas aos instintos da alma, recorrendo-se, todavia, ao intelecto ao tratar dos apetites e à alma, ao tratar do corpo.