Do Contrato Social - Livro IV

LIVRO IV

I – A vontade geral é indestrutível.

Enquanto numerosos homens reunidos se consideram como um corpo único, sua vontade também é única e se relaciona com a comum conservação e o bem-estar geral. Todas as molas do Estado são então vigorosas e simples, suas sentenças são claras e luminosas; não há interesses embaraçados, contraditórios; o bem comum mostra-se por toda parte com evidência e apenas demanda bom senso para ser percebido. A paz, a união, a igualdade são inimigas das sutilezas políticas. Os homens retos e simples são difíceis de enganar, justamente em virtude de sua simplicidade; os engodos, os pretextos refinados, não se impõem a eles, que, de resto, não são assaz sutis para serem tolos. Quando vemos, entre o povo mais feliz do mundo, grupos de camponeses regularizarem, à sombra de um carvalho, os negócios do Estado, e se conduzirem sempre com sabedoria, podemos evitar o menosprezo dos refinamentos das outras nações, que se tornam ilustres e desdenhadas com tantos artifícios e mistérios?

Um Estado assim governado necessita de bem poucas leis; à medida que se torne necessário promulgar outras novas, todos percebem tal necessidade. O primeiro que as propõe não faz senão dizer o que todos já sentiram,, e não haverá problemas de disputas nem de eloqüência para transformar em lei o que cada qual, individualmente, já tinha resolvido fazer, certo de que os demais o farão como ele.

O que engana os tagarelas é que, não vendo senão Estados, desde as suas origens, mal constituídos, ficam aturdidos perante a impossibilidade de aí manter idêntica administração. Riem de imaginar todas as tolices que um hábil impostor, um palrador insinuante, poderia insinuar no povo de Paris ou de Londres. Ignoram que Cromwell foi posto em ridículo pelo povo de Berna, e que o Duque de Baufort foi disciplinado pelo de Genebra.

Mas, quando o vínculo social começa a afrouxar e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares principiam a fazer-se sentir e as pequenas sociedades a influir sobre a grande, o interesse comum se altera e encontra opositores; a Humanidade não reina mais nos votos; a vontade geral deixa de ser a vontade de todos; erguem-se contradições, debates, e a melhor opinião não é aceita sem disputas.

Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína, apenas subsiste através de uma forma vã e ilusória, quando o laço social se rompe em todos os corações, quando o mais vil interesse se adorna afrontosamente com o nome sagrado do bem público, então a vontade geral emudece, todos, guiados por motivos secretos, deixam de opinar como cidadãos, como se o Estado jamais houvesse existido, e são aprovados falsamente, a título de leis, decretos iníquos cujo único fim é o interesse particular.

Segue-se daí que a vontade geral esteja debilitada ou corrompida? Não; ela é sempre constante, inalterável e pura; mas está subordinada a outras que a subjugam. Cada qual, destacando o próprio interesse do interesse comum, percebe que os não pode dividir completamente; mas parece-lhe insignificante sua parte do mal público perto do bem exclusivo de que deseja apropriar-se. Excetuado esse bem particular, cada qual pretende o bem geral em seu próprio interesse, nisso empregando o mesmo ardor que os demais. Mesmo vendendo o seu sufrágio a peso de ouro, não extingue em si a vontade geral; engana-a. O crime que comete está em mudar o estado do problema e em responder outra coisa que não a que se lhe pergunta; de sorte que, ao invés de dizer, no concernente ao seu sufrágio, é vantajoso ao Estado, diz: é vantajoso a tal homem, a tal partido, ou a que seja aprovada esta ou aquela opinião. Assim sendo, a lei da ordem pública nas assembléias não consiste quase em manter a vontade geral, mas em fazer com que esta seja interrogada e que sempre responda.

Eu teria nesta altura muitas reflexões a fazer sobre o simples direito de votar em todo ato de soberania, direito que ninguém pode subtrair ao cidadão, e sobre o direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, que o governo, com grande cuidado, sempre procura reservar apenas a seus membros; mas esta importante matéria demandaria um tratado à parte, e eu neste não posso dizer tudo.

II – Dos sufrágios.

Vê-se pelo capítulo precedente que a maneira pela qual se tratam os negócios gerais pode fornecer um índice assaz seguro do estado atual dos costumes e da saúde do corpo político. Quanto maior a harmonia reinante nas assembléias, isto é, quanto mais as opiniões se aproximam da unanimidade, tanto mais a vontade geral se revela dominante; já os longos debates, as dissensões, o tumulto, anunciam o ascenso dos interesses particulares e o declínio do Estado.

Isto parece pouco evidente quando duas ou mais ordens entram em sua constituição, como os patrícios e os plebeus em Roma, cujas questões perturbaram com freqüência os comícios, mesmo nos mais belos tempos da República. Tal exceção, porém, é mais aparente que real, porque, então, em virtude do vício inerente do corpo político, têm-se, por assim dizer, dois Estados em um; e o que não é verdade no tocante a dois juntos é verdade no que respeita a cada um separadamente. E, com efeito, inclusive nos tempos mais tempestuosos, os plebiscitos do povo, quando o senado neles não se imiscuía, realizavam-se sempre com tranqüilidade e com grande pluralismo de sufrágios, pois, tendo os cidadãos um único interesse, não tinha o povo senão uma única vontade.

Na outra extremidade do círculo, a unanimidade retorna: é quando os cidadãos, tombados na servidão, perdem a liberdade e a vontade. Então o temor e a lisonja transformam o sufrágios em aclamações; não mais se delibera, adora-se ou amaldiçoa-se. Era esta a vil maneira de opinar do senado sob o governo dos imperadores Isso fazia-se por vezes com precauções ridículas. Observa Tácito que, reinando Otão, os senadores, cumulando Vitélio de execrações, promoviam um ensurdecedor tumulto, a fim de que, se por acaso este viesse a se tornar o senhor, não pudesse saber o que cada um deles tinha dito.

Dessas, diversas considerações nascem as máximas sobre as quais deve ser regulamentada a maneira de contar os votos e comparar a opiniões, na proporção em que a vontade geral é mais ou menos fácil de ser conhecida, e o Estado se mostra mais ou menos em declínio.

Não há senão uma lei que, por sua natureza, exige um consentimento unânime: é o pacto social; porque a associação civil é o mais voluntário de todos os atos do mundo; uma vez que todo homem nasceu livre e senhor de si mesmo, não há quem possa, sob qualquer pretexto, sujeitá-lo, sem sua permissão. Decidir que o filho de um escravo nasce escravo é decidir que ele não nasce homem.

Se, pois, no momento do pacto social, houver opositores, sua oposição não invalidará o pacto, mas os excluirá do mesmo; serão os estrangeiros entre os cidadãos. Quando o Estado é constituído, a residência prova o consentimento; habitar o território é submeter-se à soberania (25).

Fora desse contrato primitivo, a voz da maioria obriga sempre os demais; é uma continuação do próprio contrato. Pergunta-se, contudo, como pode um homem ser livre e, a um tempo, forçado a conformar-se com vontades que não são a sua. De que maneira podem os opositores ser livres e, simultaneamente, submetidos a leis que não foram por eles consentidas?

De minha parte respondo que a questão está mal colocada. O cidadão consente todas as leis, mesmo as que são aprovadas sem o seu consentimento, inclusive as pelas quais o punem quando ele ousa infringi-las. A vontade constante de todos os membros do Estado constitui a vontade geral; devido a ela é que se tornam eles cidadãos e livres (26).

Quando uma lei é proposta na assembléia do povo, o que se lhe pergunta não é precisamente se todos aprovam a proposição ou se a rejeitam, mas sim se está ou não conforme à vontade geral, que é a deles. Cada qual, dando o seu voto, profere seu parecer, e do cálculo dos votos extrai-se a declaração da vontade geral. Portanto, quando vence a opinião contrária à minha, tal coisa apenas prova que eu me enganei, e que aquilo que eu imaginava ser a vontade geral não o era. Se o meu particular modo de ver prevalecesse, eu teria feito o que não desejava, e então eu não teria sido livre.

Isto supõe, é certo, que todos os caracteres da vontade geral estejam ainda na pluralidade; quando cessam de estar, seja qual for o partido que se tome, deixa de haver liberdade.

Demonstrando acima como era substituída a vontade geral pelas vontades particulares nas deliberações públicas, indiquei suficientemente os meios praticáveis de prevenir tal abuso, e disso falarei ainda mais adiante. A respeito do número proporcional dos sufrágios necessários para se dar por declarada essa vontade, forneci também princípios pelos quais é possível determiná-la. A diferença de um único voto rompe a igualdade; um único opositor quebra a unanimidade; mas, entre a unanimidade e a igualdade, há inúmeras divisões desiguais, podendo-se a cada uma delas fixar esse número, segundo a situação e as necessidades do corpo político.

Duas máximas gerais são o bastante para regulamentar essas relações: uma consiste em que, quanto mais importantes e graves sejam as deliberações, tanto mais a opinião vencedora deve estar próxima da unanimidade; a outra em que, quanto mais presteza exige o negócio discutido, tanto mais se deve restringir a diferença prescrita na divisão das opiniões: nas deliberações a serem encerradas imediatamente deve bastar o excedente de uma única voz. A primeira dessas máximas parece mais conveniente às leis, e a segunda aos negócios. De qualquer maneira, é na base da combinação das duas que se estabelecem as melhores relações sobre as quais deve a pluralidade pronunciar-se.

III – Das eleições.

A respeito das eleições do príncipe e dos magistrados, que constituem, como já disse, atos complexos, há dois caminhos para os proceder, os seguintes: a escolha e a sorte. Um e outro têm sido empregados em diversas repúblicas, e ainda vê-se atualmente uma mistura bastante complicada de ambos na eleição do doge de Veneza.

“O sufrágio por sorteio”, diz Montesquieu, “é da natureza da democracia.” Concordo, mas por quê? “O sorteio”, continua ele, “é um modo de eleger que não aflige ninguém; deixa a cada cidadão uma razoável esperança de servir a pátria.” Isto não são razões suficientes.

Se se leva em consideração que a escolha dos chefes constitui uma função do governo, e não da soberania, ver-se-á por que o caminho da sorte é mais consentâneo com a natureza da democracia, na qual a administração é tanto melhor quanto os atos sejam menos multiplicados.

Em toda verdadeira democracia, a magistratura não constitui um proveito, mas sim uma carga onerosa que se pode impor a um particular de preferência a outro. Somente a lei pode impor tal carga àquele a quem a sorte escolherá; porque então, sendo igual para todos a condição, e não dependendo a escolha de nenhuma vontade humana, não há qualquer aplicação particular que altere a universalidade da lei.

Na aristocracia, o príncipe escolhe o príncipe, o governo se conserva por si mesmo, e os sufrágios são bem colocados.

O exemplo da eleição do doge de Veneza confirma essa distinção, ao invés de a destruir; essa forma misturada convém a um governo misto. Pois é um erro tomar o governo de Veneza por uma verdadeira aristocracia. Se o povo não tem ali nenhuma parte no governo, a nobreza, por seu turno, é ali o próprio povo. Uma multidão de pobres barnabotenses jamais se acerca de nenhuma magistratura, e só tem de sua nobreza o inútil título de Excelência e o direito de assistir à reunião do grande Conselho. Sendo esse Conselho tão numeroso quanto o nosso Conselho geral em Genebra, não possuem seus membros maiores privilégios que os de nossos simples cidadãos. Tirando-se a extrema disparidade das duas repúblicas, a burguesia de Genebra representa, sem dúvida, exatamente o patriciado veneziano; nossos naturais e habitantes equivalem aos cidadãos e ao povo de Veneza; nossos camponeses são como que os vassalos do continente; enfim, de qualquer maneira que se considere essa república, abstração feita de sua grandeza, não é seu governo mais aristocrático que o nosso. Toda a diferença está em que, não havendo nenhum chefe à vista, nós não temos a mesma necessidade de recorrer à sorte.

As eleições por sorteio teriam poucos inconvenientes numa verdadeira democracia, onde, sendo todos iguais em costumes, dotes intelectuais, preceitos e fortuna, a escolha se tornaria quase indiferente. Mas, como afirmei, não existe verdadeira democracia.

Quando a escolha e o sorteio se mesclam, cabe à primeira preencher os postos que demandam dotes apropriados, tais como os cargos militares; o segundo convém aos postos aos quais bastam o bom senso, a justiça, a integridade, tais como os cargos de judicatura, porque, num Estado bem constituído, essas qualidades são comuns a todos os cidadãos.

O sorteio e o sufrágio não têm nenhum lugar num governo monárquico. O monarca é de direito único, príncipe e magistrado único; a escolha de seus auxiliares só a ele compete. Quando o abade de Saint-Pierre propunha multiplicar os conselhos do rei de França e eleger os membros por escrutínio, não percebia estar propondo a mudança da forma de governo.

Restar-me-ia falar da maneira de dar e recolher os votos na assembléia popular; mas, possivelmente, o histórico da organização civil romana explicasse a este respeito de modo mais sensível todas as máximas que eu poderia estabelecer. Não é indigno de um leitor judicioso ver em pormenores como se cuidavam dos negócios públicos e particulares num conselho de duzentos mil homens.

IV – Dos comícios romanos.

Não possuímos nenhum monumento digno de confiança dos primeiros tempos de Roma; há mesmo grande probabilidade de não passarem de fábulas a maior parte das coisas que nos contam (27) e, em geral, a parte mais instrutiva dos anais dos povos, que é a história de seu estabelecimento é a que mais carece de dados A experiência ensina-nos diariamente quais as causas que originam as revoluções dos impérios; entretanto, como atualmente não mais se formam novos povos, temos apenas conjeturas para explicar como outrora se formaram.

Os usos estabelecidos atestam ao menos ter havido uma origem para eles. As tradições que remontam a essas origens, nas quais se apoiam as maiores autoridades, confirmadas que são pelas mais fortes razões, devem ser aceitas como as mais certas. Eis, portanto, os preceitos que eu tratei de seguir, em pesquisando como o mais livre e poderoso dos povos da Terra exercia seu poder supremo.

Após a fundação de Roma a república nascente, isto é, o exército do fundador, composto de albaneses, sabinos e estrangeiros, foi dividido em três classes, que dessa divisão tomaram o nome de tribos. Cada uma dessas tribos foi subdividida em dez cúrias, e cada cúria em decúrias, à testa das quais foram postos chefes denominados curiões e decuriões.

Além disso, tirou-se de cada tribo um corpo de dez cavaleiros ou cavalheiros, chamado centúria; por onde se vê que essas divisões, pouco necessárias num burgo, não eram de início senão militares. Parece, porém, que um instinto de grandeza levava a pequena cidade de Roma a dar-se por antecipação uma organização civil adequada à capital do mundo.

Dessa primeira partilha cedo resultou um inconveniente: a tribo dos albaneses (28) e a dos sabinos (29) permaneciam sempre no mesmo estado, enquanto que a dos estrangeiros (30) crescia sem cessar graças ao concurso destes, vindo em pouco tempo a sobrepujar as outras duas. O remédio que Servius encontrou para esse perigoso abuso foi mudar a divisão, e, a das raças, que aboliu, foi substituída por outra, tirada dos lugares da cidade ocupados por cada tribo. Ao invés de três, organizou quatro tribos, cada uma das quais ocupando uma das colinas de Roma cujos nomes adotaram. Assim, remediando a desigualdade existente, ele a preveniu para o futuro, e a fim de que essa divisão não fosse apenas de lugares, mas de homens, proibiu Servius que os habitantes de um quartel se transferissem para outro, o que impediu de as raças se confundirem.

Servius duplicou igualmente as três antigas centúrias de cavalaria, e acrescentou a elas outras doze, sempre porém sob os antigos nomes; meio simples e judicioso pelo qual acabou por separar o corpo dos cavaleiros do povo, sem dar motivo a que este murmurasse.

A essas três tribos urbanas, ajuntou Servius ainda quinze outras, denominadas tribos rústicas, por serem formadas de habitantes do campo, divididas em outros tantos cantões. Em seguida, criaram-se novas tribos, de maneira que o povo romano veio a encontrar-se dividido em trinta e cinco delas, número em que se conservaram até o fim da República.

Dessa distinção de tribos citadinas e rurais resultou um efeito digno de ser observado, mesmo porque não existe disso outro exemplo e porque Roma lhe deve a um só tempo a conservação de seus costumes e o crescimento de seu império. Acreditar-se-ia que as tribos urbanas cedo se arrogassem as honras e o poder, e não tardassem em envilecer as tribos rústicas; no entanto, deu-se exatamente o contrário. Conhece-se o gosto dos primeiros romanos pela vida campestre. Vinha-lhes esse gosto do sábio instituidor que uniu à liberdade os trabalhos rústicos e militares, e, por assim dizer, relegou à cidade as artes, os ofícios, a intriga, a riqueza e a escravidão.

Desse modo, como tudo o que Roma tinha de ilustre vivesse no campo cultivando a terra, acostumou-se a procurar aí os sustentáculos da República. Sendo esse estado o preferido pelos mais dignos patrícios, acabou por ser também honrado por todos; a vida simples e laboriosa dos camponeses veio a ser mais benquista que a vida ociosa e frouxa dos burgueses de Roma, e muitos que, na cidade, não passavam de infelizes proletários, transformados em cultivadores dos campos, se tornaram cidadãos respeitáveis. Não foi sem motivo, dizia Varrão, que nossos magnânimos ancestrais estabeleceram na aldeia o viveiro desses robustos e intrépidos homens que os defendiam em tempo de guerra e os alimentavam em tempo de paz. Diz Plínio, positivamente, que as tribos dos campos eram cumuladas de honrarias em virtude dos homens que as compunham; ao passo que se transferiam para as tribos da cidade os poltrões que se pretendiam humilhar. O sabino Appius Claudius, indo estabelecer-se em Roma, ali foi honrado e inscrito numa tribo rústica, que tomou em conseqüência o nome de sua família. Enfim, todos os libertos entravam nas tribos urbanas, nunca nas rústicas, e não existe, durante toda a República, um único exemplo de algum liberto que tenha atingido a magistratura, embora fosse cidadão.

Esse preceito era excelente, todavia foi levado tão longe que dele resultou por fim uma mudança e certamente um abuso na organização civil.

Em primeiro lugar, os censores, após se haverem por muito tempo arrogado o direito de transferir arbitrariamente os cidadãos de uma tribo para outra, permitiram que a maioria se inscrevesse na que melhor lhe aprouvesse, permissão que, seguramente, de nada servia e subtraía uma das grandes alçadas da censura. Além disso, como os grandes e poderosos se faziam escrever nas tribos do campo, e os libertos, tornados cidadãos, permaneciam com o populacho nas da cidade, as tribos, em geral, deixaram de possuir seus sítios e territórios e acabaram todas por mesclar-se de tal modo que se fez impossível discernir os membros de cada uma em particular, a não ser pelos registros. Destarte a palavra tribo passou do real ao pessoal, ou então veio a tornar-se quase uma quimera.

Sucedeu ainda que as tribos citadinas, mais bem localizadas, sentiram-se mais fortes nos comícios e venderam o Estado aos que não hesitavam em comprar os votos à canalha que as compunham.

A respeito das cúrias, havendo o seu instituidor determinado dez em cada tribo, todo o povo romano, então encerrado nas muralhas da cidade, achou-se organizado em trinta cúrias, cada qual com seus templos, seus deuses, seus oficiais, seus sacerdotes e suas festas, chamadas compitalia, semelhantes às paganalia, criadas mais tarde pelas tribos rústicas.

Com a nova partilha de Servius, não sendo possível repetir igualmente essas trinta cúrias pelas quatro tribos, ele não quis tocar nisso, e as cúrias, independentes das tribos, se tornaram outra divisão dos habitantes de Roma; mas a questão não girou em torno de cúrias, nem das tribos rústicas, nem do povo que as compunha, porque, havendo-se tornado as tribos um estabelecimento puramente civil, e tendo sido introduzida outra polícia no referente ao levantamento das tropas, as divisões militares de Rômulo passaram a ser supérfluas. Desta maneira, embora todos os cidadãos estivessem inscritos numa tribo, não se fazia necessário que o estivessem numa cúria.

Servius criou ainda uma terceira divisão, que não tinha nenhuma relação com as duas precedentes e que se transformou, por seus efeitos, na mais importante de todas. Ele distribuiu todo o povo romano em seis classes, as quais não se distinguiam pelo lugar ou pelos homens, mas pelos bens que possuíam; de maneira que as primeiras classes eram preenchidas pelos ricos, as últimas pelos pobres, e as médias pelos que desfrutavam de medíocre fortuna. Essas seis classes eram subdivididas em cento e noventa e três outros corpos, chamados centúrias, e estes, por sua vez, eram distribuídos de tal forma que a primeira classe compreendia, sozinha, mais da metade e a última formava apenas uma só. Ocorria então que a classe menos numerosa em quantidade de homens era maior em centúrias, e toda a última classe não era contada senão como uma subdivisão, muito embora abrangesse, ela só, mais de metade dos habitantes de Roma.

A fim de que o povo não percebesse as conseqüências desta última forma, Servius fingiu que lhes dava um ar militar: inseriu na segunda classe duas centúrias de armeiros, e duas de instrumentos de guerra na quarta classe; em cada classe, excetuada a última, ele diferenciou os jovens e os velhos, isto é, os que eram obrigados a carregar as armas e os que, pela idade, estavam disso excluídos pela lei; distinção que, mais do que as referentes aos bens, resultou na necessidade de recomeçar freqüentemente o recenseamento; finalmente, desejou ele que a assembléia se realizasse no Campo de Marte, aonde todos os que se encontravam em idade de servir viessem com suas armas.

A razão pela qual não foi estabelecida, na última classe, essa mesma divisão entre jovens e velhos, residia no fato de não ser concedida ao populacho, de que a mesma se compunha, a honra de empunhar armas em defesa da pátria. Era preciso ter um lar para conseguir o direito de o defender; e dessas numerosas tropas de indigentes que brilham hoje em dia nos exércitos reais, possivelmente não haveria um só que não fosse rechaçado com desdém de uma coorte romana, no tempo em que os soldados eram defensores da liberdade.

Distinguiam-se, pois, ainda, na última classe, os proletários dos que eram chamados capite censi. Os primeiros, conquanto paupérrimos, forneciam ao menos cidadãos ao Estado, algumas vezes até soldados, nas ocasiões mais prementes. Quanto aos que realmente nada possuíam e eram computados apenas por suas cabeças (31), eram considerados como inexistentes. Mário foi o primeiro que se dignou alistá-los.

Sem decidir aqui se a terceira enumeração era boa ou má em si mesma, acredito poder afirmar que somente os costumes singelos dos primeiros romanos, seu desinteresse pessoal, sua paixão pela agricultura, seu desprezo pelo comércio e pelo ardor do ganho é que a tornaram possível. Onde se encontra o povo moderno no seio do qual a devoradora avidez, o espírito inquieto, a intriga, os contínuos deslocamentos, as perpétuas revoluções da fortuna, permitem durar vinte anos semelhante estado de coisas, sem que haja uma subversão do Estado inteiro? É necessário, inclusive, assinalar que os costumes e a censura, mais fortes que essa instituição, corrigiram o vício em Roma, e que alguns ricos se viram relegados à classe dos pobres por haverem ostentado exageradamente sua riqueza.

De tudo isso pode-se facilmente compreender porque quase sempre se tem feito menção de apenas cinco classes, muito embora, na realidade, houvesse seis. A sexta não fornecia soldados ao exército, nem eleitores no Campo de Marte (32), não sendo quase aproveitada para nada na república.

Tais foram as diferentes divisões do povo romano. Vejamos agora o efeito produzido nas assembléias. Essas assembléias, legitimamente convocadas, denominavam-se comices. Realizavam-se ordinariamente na praça de Roma ou no Campo de Marte, e se distinguiam por comícios por cúrias, comícios por centúrias e comícios por tribos, segundo as três formas pelas quais eram convocados. Os comícios por cúrias eram da instituição de Rômulo; os por centúrias, de Servius; os comícios por tribos, dos tribunos do povo. Nenhuma lei recebia a sanção, nenhum magistrado era eleito, a não ser nos comícios; e como não houvesse nenhum cidadão que não fosse inscrito numa cúria, numa centúria ou numa tribo, segue-se que nenhum cidadão era excluído do direito do sufrágio e que o povo de Roma era verdadeiramente soberano de direito e de fato.

Para que os comícios fossem legitimamente convocados e o que ali se fizesse tivesse força de lei, faziam-se necessárias três condições: primeira, que o corpo ou o magistrado que os convocasse fosse revestido para isso da autoridade indispensável; segunda, que a assembléia se realizasse num dia permitido pela lei terceira, que os augúrios se revelassem favoráveis.

A razão da primeira exigência dispensa explicação. A da segunda é um problema de polícia, de maneira a não se permitirem comícios em dias de feira, quando os camponeses vinham a Roma a negócios e não dispunham de tempo para passar a jornada na praça pública. A razão da terceira exigência estava em que o senado procurava refrear um povo altivo e turbulento, temperando o ardor dos tribunos sediciosos; estes, porém, sempre encontraram um meio de se libertarem de tal constrangimento.

As leis e a eleição dos chefes não constituíam os únicos pontos submetidos ao julgamento do governo; tendo o povo romano usurpado as mais importantes funções do governo, pode-se dizer que a sorte da Europa era regulamentada em suas assembléias. Essa variedade de assuntos dava lugar às diversas formas tomadas por essas assembléias, de acordo com as matérias sobre as quais havia que pronunciar-se.

A fim de se fazer o julgamento dessas diversas formas, é o bastante compará-las. Rômulo, instituindo as cúrias, tinha em vista conter o senado pelo povo e o povo pelo senado, dominando igualmente sobre todos. Deu ele, pois, ao povo, por essa forma, a inteira autoridade do número para contrabalançar a do poder e a das riquezas, deixadas aos patrícios. Mas, segundo o espírito da monarquia, deixou ele maiores vantagens aos patrícios, devido à influência de seus clientes sobre a pluralidade dos sufrágios. Essa admirável instituição de patronos e clientes foi uma obra-prima de política e humanidade, sem a qual o patriciado, tão contrário ao espírito de república, não teria podido subsistir. Roma foi a única a ter a honra de fornecer ao mundo esse belo exemplo, do qual jamais resultou qualquer abuso, e que não foi, portanto, imitado nunca.

Essa mesma forma de cúrias subsistiu no tempo dos reis, até Servius, não se aceitando a legitimidade do reinado de Tarquínio, e o fato fez com que se distinguissem as leis reais pelo nome de leges curiatae.

Na república, as cúrias, sempre limitadas às quatro tribos urbanas, não contando senão com a plebe de Roma, não podiam convir nem ao senado, que se mantinha à testa dos patrícios, nem aos tribunos, que, conquanto plebeus, estavam à frente dos cidadãos abastados. Elas tombaram, portanto, no descrédito e foi tal seu aviltamento que seus trinta lictores, reunidos em assembléia, realizavam o que os comícios por cúria deveriam fazer.

A divisão por centúrias era tão favorável à aristocracia que não se vê, de início, a razão por que o senado não a levava sempre aos comícios que levavam seu nome, e nos quais se elegiam os cônsules, os censores e os demais magistrados curuis. Com efeito, das cento e noventa e três centúrias, formadoras das seis classes que compunham todo o povo romano, noventa e oito constituíam a primeira classe. Como os votos só se contavam por centúrias, esta primeira classe sobrepujava em número de votos as demais. Quando todas as centúrias estavam concordes, cessava a contagem dos sufrágios; aquilo que fora decidido pelo menor número passava pelo arbítrio da multidão; e pode-se dizer que, nos comícios por centúrias, os negócios se regravam mais pela pluralidade dos escudos que pelo número de votos.

Contudo, essa extrema autoridade era temperada por duas maneiras. Primeiramente, sendo grande número de plebeus da classe dos ricos, os tribunos, de ordinário, contrabalançavam o crédito dos patrícios nessa primeira classe.

A segunda maneira consistia em que, ao invés de fazerem, de início, com que as centúrias votassem segundo sua ordem, o que significaria começar sempre pela primeira, determinava-se um sorteio, e a escolhida procedia sozinha à eleição (33), após o que todas as centúrias, chamadas num outro dia segundo sua categoria, repetiam a mesma eleição e geralmente a confirmavam. Subtraia-se assim a autoridade do exemplo à graduação para a entregar à sorte, conforme o princípio da democracia.

Desse uso resultava ainda outra vantagem: permitia aos cidadãos do campo informarem-se, entre as duas eleições, do mérito do candidato provisoriamente eleito a fim de lhe atribuírem o voto com consciência de causa. Entretanto, sob pretexto de urgência, veio-se a abolir esse costume, e as duas eleições passaram a ser feitas no mesmo dia.

Os comícios por tribos constituíam propriamente o conselho do povo romano. Somente os tribunos os convocavam; neles eram estes eleitos e se tomavam as deliberações. Não apenas o senado deixava de ter ali assento, como sequer tinha o direito de a eles assistir; e, assim sendo, eram os senadores forçados a obedecer às leis que não tinham podido votar, de maneira que, sob certo aspecto, passavam a ser menos livres que os últimos dos cidadãos. Tal injustiça era mal-entendida e bastaria, por si só, para invalidar os decretos de um corpo em que todos os membros não tinham sido admitidos. Mesmo que todos os patrícios assistissem a esses comícios, consoante o direito que possuíam na qualidade de cidadãos, tornados então simples particulares, não poderiam influir em nada num processo de eleição cujos votos eram recolhidos por cabeça, e no qual o mais humilde proletário dispunha de tanto poder como o príncipe do senado.

Vê-se, pois, que, além da ordem resultante dessas diversas distribuições para o recolhimento dos sufrágios de tão grande povo, não se reduziam tais distribuições a formas em si mesmas indiferentes, mas sim que cada qual tinha efeitos relativos em relação aos objetivos preferidos.

Sem entrar em mais longos pormenores, resulta dos esclarecimentos precedentes que os comícios por tribos eram os mais favoráveis ao governo popular, e os comícios por centúrias aos interesses da aristocracia. A respeito dos comícios por cúrias, nos quais a plebe de Roma constituía a pluralidade, como apenas servissem para favorecer a tirania e os maus desígnios, acabaram por cair no descrédito, fazendo com que os próprios elementos sediciosos se abstivessem de empregar um meio que lhes punha muito a descoberto seus projetos. Toda a majestade do povo romano – está fora de dúvida – revelava-se nos comícios por centúrias, os únicos completos, levando-se em conta que, nos comícios por cúrias faltavam as tribos rústicas, e nos comícios por tribos eram excluídos o senado e os patrícios.

Quanto à maneira de recolher os sufrágios, era o fato, entre os primeiros romanos, coisa tão simples como seus costumes, malgrado não fosse tão simples quanto o era em Esparta. Cada qual votava em voz alta, e um escrivão o anotava; pluralidade de votos em cada tribo determinava o sufrágio do povo, e o mesmo sucedia nas cúrias e centúrias. Este hábito era bom, tanto assim que reinava a honestidade entre os cidadãos, e cada qual tinha vergonha de oferecer publicamente seu voto a uma decisão injusta ou a um assunto indigno; entretanto, quando o povo veio a corromper-se e os votos passaram a ser negociados, convencionou-se que o sufrágio se tornasse secreto a fim de conter pela suspeita os compradores, e fornecer aos velhacos o meio de não se tornarem traidores.

Sei que Cícero censura essa mudança e lhe atribui em parte a ruína da república. Mas, embora eu sinta o peso que deve ter aqui a autoridade de Cícero, não posso concordar com sua opinião. Penso, ao contrário, que pelo fato de não ter havido em maior quantidade semelhantes mudanças é que foi acelerada a perda do Estado. Como o regime das pessoas saudáveis não é conveniente aos enfermos, não se deve querer governar um povo corrompido através das mesmas leis apropriadas a um povo honesto. Nada comprova melhor esta máxima que a duração da República de Veneza, cujo simulacro ainda existe, unicamente porque suas leis não convêm senão a homens corruptos.

Distribuíram-se, pois, aos cidadãos canhenhos pelos quais cada qual podia votar sem que se soubesse qual era sua opinião particular; estabeleceram-se, assim, novas formalidades para o recolhimento dos canhenhos, o cômputo dos votos, a comparação dos números, etc.; isso não impediu que a fidelidade dos oficiais encarregados dessas funções fosse com freqüência tida por suspeita (34). Procurou-se, enfim, impedir a cabala e o tráfico dos sufrágios e dos editos, cuja quantidade demonstra a inutilidade.

Nos últimos tempos, era-se muitas vezes obrigado a recorrer a expedientes extraordinários para suprir a insuficiência das leis. Logo imaginaram-se prodígios; com isso iludia-se o povo, não os que o governavam; logo convocava-se bruscamente uma assembléia, antes de os candidatos terem tempo de prepararem suas manobras; ora consumia-se uma sessão inteira em conversa, quando se via o povo ganho prestes a tomar um mau partido. Finalmente, a ambição tudo frustrou, e o que há de inconcebível é que, em meio a tanto abuso, esse povo imenso, em favor de seus antigos regulamentos, não deixava de eleger os magistrados, de aprovar as leis, de julgar as causas, de expedir os negócios particulares e públicos, quase com tanta facilidade como o teria feito o próprio senado.

V – Do tribunato.

Quando não se pode estabelecer uma exata proporção entre as partes constitutivas do Estado, ou quando causas indestrutíveis nelas alteram continuamente as relações, institui-se então uma magistratura particular que não se corporifica com as outras, que repõe cada termo em sua verdadeira relação, e que estabelece uma ligação ou um meio-termo, seja entre o príncipe e o povo, seja entre o príncipe e o soberano, ou ainda entre ambos os lados, em caso de necessidade.

Esse corpo, que eu denominarei tribunato, é o conservador das leis do poder legislativo, e serve, por vezes, para proteger o soberano contra o governo, como faziam em Roma os tribunos do povo; como faz presentemente em Veneza o Conselho dos Dez, para sustentar o governo contra as investidas do povo; e, algumas vezes, para manter o equilíbrio entre ambas as partes, como o faziam os éforos em Esparta.

O tribunato não constitui uma parte constitutiva da cidade, e não deve possuir a menor porção do poder legislativo nem do executivo; mas é justamente nisso que seu poder se torna grande, porque, nada podendo fazer, tudo pode impedir. É mais sagrado e mais reverenciado como defensor das leis que o príncipe que as executa e o soberano que as dá. Foi o que se viu com bastante clareza em Roma, quando seus altivos patrício; que sempre menosprezaram todo o povo, foram forçados a dobrar-se perante um simples oficial do povo que não tinha auspícios nem jurisdição.

O tribunato, sabiamente temperado, representa o mais firme apoio de uma boa constituição; mas, por pouca força que tenha de mais, tudo subverte; no que concerne à fraqueza, ele naturalmente a não possui, e, conquanto seja alguma coisa, não é jamais menos que o necessário. O tribunato degenera em tirania quando usurpa o poder executivo, do qual não passa de moderador, e quando deseja dispensar as leis cuja proteção lhe compete. O enorme poder dos éforos, que não ofereceu perigo enquanto Esparta conservou seus costumes, acelerou a corrupção iniciada. O sangue de Agis, degolado por esses tiranos, foi vingado por seu sucessor; o crime e o castigo dos éforos apressaram igualmente a ruína da república; e, após Cleômenes, Esparta deixou de ter qualquer importância. Roma pereceu ainda pela mesma via, e o excessivo poder dos tribunos, usurpado gradualmente, serviu, enfim, com a ajuda das leis votadas para garantirem a liberdade, de salvaguarda aos imperadores que a destruíram. Quanto ao Conselho dos Dez, em Veneza, trata-se de um tribunal de sangue, horrível a um tempo aos patrícios e ao povo, e que, longe de proteger altamente as leis, apenas serve, depois de seu aviltamento, para aplicar nas trevas golpes que se não ousam imaginar.

O tribunato enfraqueceu-se, à semelhança do governo, pela multiplicação de seus membros. Quando os tribunos do povo romano, dois de início, depois cinco, pretenderam duplicar esse número, o senado consentiu-o, certo de poder contê-los, uns pelos outros, o que de resto aconteceu.

A melhor maneira de prevenir as usurpações de tão temível corpo, maneira de que nenhum governo se serviu até aqui, seria impedir que esse corpo se tornasse permanente, regulamentando os intervalos durante os quais ele estaria suprimido. Tais intervalos, que não devem ser muito grandes para evitar que os abusos se afirmem, podem ser fixados por lei, de modo a serem facilmente abreviados, quando necessário, por comissões extraordinárias.

Esse meio me parece desprovido de inconvenientes, uma vez que, como já o disse, o tribunato, não fazendo parte da constituição, pode ser removido sem que esta disto se ressinta. E parece-me eficaz, porque um magistrado, novamente estabelecido, não parte do poder desfrutado por seu predecessor, mas sim do que a lei lhe outorga.

VI – Da ditadura.

A inflexibilidade das leis, que as impede de se ajustarem aos acontecimentos, pode, em determinados casos, torná-las perniciosas, e causar, por elas, a perda do Estado num momento de crise. A ordem e a lentidão das formas requerem um espaço de tempo que as circunstâncias muitas vezes recusam. Podem apresentar-se mil casos não esperados pelo legislador, e constitui necessária providência perceber que é possível tudo prever.

Não se deve, pois, querer consolidar as instituições políticas a ponto de levar o poder a suspender o efeito delas. Esparta mesma deixou dormir suas leis.

Somente os maiores perigos podem contrabalançar o decorrente da alteração da ordem pública, e não se deve jamais esmagar o sagrado poder proveniente das leis senão quando se trata de salvar a pátria. Nesses casos raros e manifestos, provê-se a segurança pública por meio de um ato particular que dela encarrega a pessoa mais digna. Tal comissão pode ser outorgada de duas maneiras, consoante a espécie do perigo.

Se, para isso remediar, é suficiente aumentar a atividade do governo, deve-se concentrá-la em um ou dois de seus membros: assim sendo, o que se altera não é a autoridade das leis, mas tão-somente a forma de sua administração. Se é tal o perigo, que o aparelho das leis passa a constituir um obstáculo à sua garantia, nomeia-se então um chefe supremo que faça emudecer todas as leis e suspenda um momento a autoridade soberana. Em semelhante caso, a vontade geral não é posta em, dúvida, e torna-se evidente que a primeira intenção do povo consiste em que o Estado não venha a perecer. Dessa maneira, a suspensão de autoridade legislativa não significa esteja a mesma abolida: o magistrado que a silencia não pode fazê-la falar; ele a domina, sem que a possa representar; tudo pode fazer, exceto legislar.

O primeiro processo era empregado pelo senado romano quando encarregava os cônsules, através de uma fórmula consagrada, de prover a salvação da república; o segundo processo tinha lugar quando um dos dois cônsules nomeava um ditador, cujo exemplo Roma recebeu de Alba.

No começo da república,, recorreu-se com bastante freqüência à ditadura pelo fato de o Estado não possuir ainda um alicerce suficientemente fixo para se poder suster por força exclusiva de sua constituição. Como os costumes tornassem então supérfluas muitas das precauções necessárias em outros tempos, não só não se receou que um ditador abusasse de sua autoridade, nem que tentasse conservá-la além do termo. Parecia, ao contrário, que tão grande poder constituía uma sobrecarga para quem dele estivesse revestido, tanto se apressava seu possuidor em desfazer-se dela, como se tratasse de um posto bastante árduo e perigoso esse de ocupar o lugar das leis.

Também, não é o perigo do abuso, mas o do aviltamento, que me leva a reprovar o uso indiscreto dessa suprema magistratura nos primeiros tempos. Enquanto era ela prodigalizada em eleições, em consagrações, em coisas puramente formais, receava-se que se tomasse menos temível à necessidade e que nos acostumássemos a olhar como um título vão esse que não empregávamos senão em fúteis cerimônias.

Por volta do fim da república, os romanos, tornados circunspectos, economizaram a ditadura com a mesma irracionalidade com que a tinham prodigalizado anteriormente. Era fácil ver que seu receio estava mal fundamentado: que a fraqueza da Capital constituía então sua segurança contra os magistrados abrigados em seu seio; que um ditador, em determinado caso, podia defender a liberdade pública, sem jamais atentar contra ela; e que os grilhões de Roma de modo algum seriam forjados na própria Roma, mas em seus exércitos. A pequena resistência de Mário frente a Sila, e de Pompeu frente a César, demonstrou perfeitamente o que se podia esperar da autoridade de dentro contra a força vinda de fora.

Esse erro levou-os a cometer grandes faltas, tal, por exemplo, a de não nomear um ditador no caso Catilina, pois que, em se tratando de questão referente ao interior da cidade, e, quando muito, a alguma província da Itália, com a autoridade ilimitada que as leis atribuíam ao ditador, ele teria facilmente dissipado a conjuração, esmagada apenas graças ao concurso de felizes acasos, pelos quais a prudência humana jamais devia esperar.

Ao invés de tomar essa atitude, o senado contentou-se de remeter toda a sua autoridade aos cônsules, de onde resultou que Cícero, para agir com eficácia, se viu constrangido a transmitir esse poder num ponto capital. Se os primeiros transportes de alegria constituíram uma aprovação de sua conduta, foi com justiça que, em seguida, se lhe pediram contas do sangue dos cidadãos vertido contra as leis, censura que não poderia ser feita a um ditador. Todavia, a eloqüência do cônsul tudo sobrepujou; e ele mesmo, embora romano, amando mais a própria glória que a pátria, não buscava de preferência o meio mais legítimo e mais seguro de salvar o Estado, mas sim o de obter toda a honraria dessa empresa (35). Daí ter sido justamente glorificado como o libertador de Roma, e punido com justiça como infrator das leis. Por brilhante que tenha sido seu apelo, o certo é que constituiu uma graça.

De resto, independente da maneira pela qual essa importante comissão possa ser conferida, importa fixar-lhe a duração dentro de um prazo bastante curto e que não deva jamais ser prolongado: no decorrer das crises que o fazem estabelecer, o Estado é logo salvo ou destruído, e, passada a necessidade premente, a ditadura toma-se tirânica ou inútil. Em Roma, os ditadores, nomeados apenas por seis meses, em sua maioria, abdicaram antes de atingido esse termo. Se o prazo tivesse sido mais longo, é possível que houvessem tentado prolongá-lo ainda mais, como o fizeram os decênviros com o prazo de um ano. O ditador apenas dispunha do tempo de prover a necessidade pela qual fora eleito; não lhe sobrava tempo para sonhar com outros projetos.

VII – Da censura.

Assim como a declaração da vontade geral se faz através da lei, a declaração do julgamento público se faz pela censura; a opinião constitui uma espécie de lei cujo censor é o ministro, o qual, a exemplo do príncipe, somente a aplica aos casos particulares.

Longe, pois, de ser o tribunal censório o árbitro da opinião pública; este não é senão o declarador dessa opinião, e, tão logo dela se afaste, suas decisões passam a ser vãs e sem efeito.

É inútil distinguir os costumes de uma nação dos objetos de sua estima, porque tudo se contém no mesmo princípio e se confunde necessariamente. Entre todos os povos do mundo, não é a natureza, mas a opinião que decide da escolha de seus prazeres. Reparai as opiniões dos homens, e seus costumes se apurarão por si mesmos. Amamos sempre o belo ou que consideramos tal; mas é justamente a propósito deste julgamento que nos enganamos: portanto, é este julgamento que deve ser ordenado. Quem julga os costumes julga a honra, e quem julga a honra faz sua lei da opinião.

As opiniões de um povo nascem de sua constituição; embora a lei não regulamente os costumes, é a legislação que lhes dá nascimento; quando a legislação se debilita, os costumes degeneram; mas então o julgamento dos censores não conseguirá fazer o que as leis não terão feito.

Segue-se daí que a censura pode ser útil à conservação dos costumes, não porém para os restabelecer. Colocai censores durante a vigência das leis; tão logo estejam estas perdidas, tudo descamba no desespero: nada de legítimo conserva sua força, quando as leis deixam de existir.

A censura mantém os costumes impedindo que as opiniões se corrompam, conservando sua inteireza através de sábias aplicações, por vezes mesmo fixando-as, quando se mostram ainda incertas. O uso de segundos nos duelos, levado até o furor no reino de França, foi aí abolido pelas seguintes palavras de edito real: “Quanto aos que têm a covardia de chamar segundos...” Tal julgamento, prevenindo o do público, decidiu-o de repente. Contudo, quando os mesmos editos desejaram pronunciar que era igualmente covardia o bater-se em duelo – o que de resto é verdade, mas contraria a opinião comum – o público zombou dessa decisão sobre a qual já havia estabelecido o julgamento.

Eu disse alhures que, não estando a opinião pública submetida a constrangimento, nenhum vestígio disso é necessário no tribunal estabelecido para a representar. Nunca se admira o suficiente a arte pela qual esse expediente, inteiramente perdido para os modernos, era posto em prática entre os romanos, e mais ainda entre os lacedemônios.

Como um homem de maus costumes houvesse dado um bom conselho no Conselho de Esparta, os éforos não o levaram em conta, mas fizeram com que a mesma opinião fosse expendida por um cidadão virtuoso. Que honra para um, e que infâmia para o outro, sem que se fizesse qualquer louvor ou qualquer censura a nenhum deles! Certos ébrios de Samos (36) profanaram o tribunal dos éforos: no dia seguinte, por edito público, era permitido aos cidadãos o direito de se portarem como vilões Um verdadeiro castigo teria sido menos severo que semelhante impunidade. Quando Esparta decidiu sobre o que era ou não honesto, a Grécia não reclamou contra seus julgamentos.

VIII – Da religião civil.

Os homens, de início, não tiveram outros reis senão os deuses, nem outro governo, a não ser o teocrático. Raciocinaram então como Calígula, e seu raciocínio era justo. Fez-se necessária uma longa alteração de sentimentos e idéias a fim de que se pudesse aceitar o semelhante por senhor e iludir-se admitindo que o fato constituía um bem. Colocando-se Deus à testa de cada sociedade política, resultou a existência de tantos deuses quantos povos havia. Dois povos estranhos um ao outro, e quase sempre inimigos, não puderam, durante longo tempo, reconhecer um senhor comum; dois exércitos empenhados em combate não saberiam obedecer ao mesmo chefe. Assim, das divisões nacionais originou-se o politeísmo, e do politeísmo a intolerância teológica e civil, que naturalmente é a mesma, como o direi mais adiante.

Os gregos imaginaram reencontrar seus deuses entre os povos bárbaros; essa idéia, porém, vinha do fato de se considerarem os soberanos naturais desses povos. Todavia, é de nossos dias uma ridícula erudição que pretende identificar os deuses de diversas nações, como se Moloce, Saturno e Cronos pudessem ser o mesmo deus; como se o Baal dos fenícios, o Zeus dos gregos e o Júpiter dos latinos fossem realmente um único; como se pudesse permanecer algo comum em seres quiméricos, portadores de nomes diferentes!

Se me perguntarem por que, no paganismo, onde cada Estado possuía seu culto e seus deuses, não havia guerras religiosas, eu responderei que era justamente por isso, porque, tendo cada Estado seu próprio culto, identificado com seu próprio governo, não distinguia seus deuses de suas leis. A guerra política era também teológica; os departamentos dos deuses eram, por assim dizer, fixados pelos limites das nações. O deus de um povo não possuía nenhum direito sobre os outros povos. Os deuses dos pagãos não eram deuses ciumentos; eles dividiam entre si o império do mundo. O próprio Moisés e o povo hebreu atribuíram-se algumas vezes essa idéia, falando do deus de Israel. Consideravam, é certo, como nulos os deuses dos cananeus, povos proscritos, destinados à destruição e cujo lugar pretendiam ocupar; mas reparai como falavam das divindades dos povos vizinhos que lhes era vedado atacar: “Não vos é legitimamente devida a posse do que pertence a Chamos, vosso deus?” – dizia Jefté aos amonitas. “– Nós possuímos graças a esse mesmo título as terras que nosso deus vitorioso adquiriu” (37). Era isso, parece-me, uma paridade perfeitamente reconhecida entre os direitos de Chamos e os do deus de Israel.

Mas quando os judeus, submetidos aos reis da Babilônia, e, em seguida aos reis da Síria, quiseram obstinar-se em não reconhecer nenhum outro deus que não o próprio, tal recusa, olhada como uma rebelião contra o vencedor, provocou as perseguições lidas em sua história, e das quais não se conhecem outros exemplos antes do cristianismo (38).

Estando cada religião circunscrita unicamente às leis do Estado que as prescrevia, não havia outra maneira de converter um povo senão submetendo-o, nem havia outros missionários além dos conquistadores; e, consistindo a lei dos vencidos na obrigação de mudar de culto; fazia-se preciso começar por vencer antes de pregar. Não quer isto dizer que os homens combatessem pelos deuses; ao contrário, eram os deuses, como em Homero, que combatiam pelos homens; cada qual pedia a seu deus a vitória e a pagava erigindo-lhe novos altares. Os romanos, antes de tomarem uma praça, intimavam os deuses locais a abandoná-la; e quando deixavam aos tarentinos seus deuses irritados, faziam-no porque olhavam então esses deuses como submetidos aos deles romanos, forçados aqueles a prestar homenagens a estes. Permitiam que os vencidos conservassem os seus deuses, assim como lhes permitiam reger-se por suas próprias leis. Em geral, uma coroa ao Júpiter do Capitólio era o único tributo imposto aos vencidos.

Finalmente, havendo os romanos estendido, com o império, seu culto e seus deuses, e, havendo eles mesmos, muitas vezes, adotado o culto e os deuses dos vencidos, concedendo a uns e a outros o direito de cidade, os povos desse vasto império, insensivelmente, acabaram por possuir uma infinidade de deuses e de cultos, quase sempre os mesmos em toda parte; e eis por que o paganismo veio a tornar-se, enfim, em todo o mundo conhecido, uma única e idêntica religião.

Foi nessas circunstâncias que Jesus surgiu para estabelecer na Terra um reino espiritual; o que, separando o sistema teológico do sistema político, fez com que o Estado cessasse de ser uno, causando as divisões intestinas que jamais deixaram de agitar os povos cristãos. Ora, essa idéia nova de um reino do outro mundo nunca pode entrar na cabeça dos pagãos; estes sempre olharam os cristãos como verdadeiros rebeldes, que, sob a aparência de uma falsa submissão, só esperavam pelo instante de se tomarem independentes e senhores, usurpando diretamente a autoridade que fingiam respeitar em sua debilidade. E foi essa a causa das perseguições.

O que os pagãos receavam chegou. Então, tudo mudou de face. Os humildes cristãos mudaram de linguagem, e cedo se viu o pretendido mundo espiritual transformar-se, sob a direção de um chefe visível, no mais violento despotismo neste mesmo mundo.

Entretanto, como sempre houve um príncipe e leis civis, resultou desse duplo poder um perpétuo conflito de jurisdição, o qual impossibilitou a existência de toda boa política no seio dos Estados cristãos, onde jamais se pode saber a que senhor ou sacerdote se estava obrigado a obedecer.

Não obstante, inúmeros povos, mesmo na Europa ou em suas cercanias, quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema, porém sem lograr êxito; o espírito do cristianismo a tudo venceu. O culto sagrado sempre permaneceu ou veio a tornar-se independente do soberano, e sem ligação necessária com o corpo do Estado. Maomé teve intenções muito sensatas; soube ligar bem seu sistema político, e enquanto a forma de seu governo subsistiu, sob os califas, seus sucessores, tal governo foi exatamente uno e bom nesse sentido. Mas os árabes, vindo a florescer, letrados, polidos, lassos e poltrões, foram subjugados pelos bárbaros; então recomeçou a divisão entre os dois poderes; muito embora seja menos aparente entre os maometanos que entre os cristãos, ela existe, sobretudo na seita de Ali. Há Estados, como a Pérsia, em que isso se faz sentir continuamente.

Entre nós, os reis da Inglaterra estabeleceram-se como chefes da Igreja; o mesmo fizeram os Césares, mas, com tal título, se tomaram mais ministros que senhores dela; adquiriram mais o direito de a manter que o de modificá-la; não são aí legisladores, mas apenas príncipes. Em toda parte onde o clero constitui um corpo (39), é ele senhor e legislador dentro da pátria. Há, pois, dois poderes, dois soberanos, na Inglaterra e na Rússia, como de resto alhures.

O filósofo Hobbes é, de todos os autores cristãos, o único que viu perfeitamente o mal e o remédio, e ousou propor a junção das duas cabeças da águia, criando a unidade política, sem a qual o Estado e o governo jamais serão bem constituídos; contudo, Hobbes deve ter visto que o espírito dominador do cristianismo era incompatível com seu sistema, e que o interesse do sacerdote seria sempre mais forte que o interesse do Estado. Não é tanto o que há de horrível e falso em sua política, como o que há de justo e verdadeiro, que a tomou odiosa.

Acredito que, desenvolvendo sob esse ponto de vista os fatos históricos, refutar-se-ão facilmente os sentimentos opostos de Bayle é Warburton, pretendendo o primeiro que nenhuma religião é útil ao corpo político. e sustentando o segundo, ao contrário, que o cristianismo constitui o seu mais firme apoio. Provar-se-ia ao primeiro não ter havido Estado a que a religião não tenha servido de base, e ao segundo, que a lei cristã é, no fundo, mais prejudicial que útil à forte constituição do Estado. Para terminar minhas explicações, devo dar um pouco mais de precisão às idéias bastante vagas de religião relativas ao meu assunto.

A religião, considerada em relação à sociedade, que é geral ou particular pode também dividir-se em duas espécies, a saber: a religião do homem, e a do cidadão. A primeira, desprovida de templos, altares, ritos, limitada unicamente ao culto interior do Deus supremo e aos eternos deveres da moral, é a pura e simples religião dos Evangelhos, o verdadeiro teísmo, é o que se pode denominar de direito divino natural. A segunda, alicerçada num único país, fornece-lhe os deuses, os patronos próprios e tutelares; possui seus dogmas, seus rituais, seu culto exterior prescrito por leis; afora a única nação que a cultua, as demais são consideradas infiéis, estrangeiras, bárbaras; é uma religião que não estende os deveres e os direitos do homem além de seus altares. Foram assim todas as religiões dos primeiros povos, às quais se pode dar a denominação de direito divino civil ou positivo.

Há um terceiro tipo de religião, mais bizarro, que, dando aos homens duas legislações, dois chefes, duas pátrias, os submete a deveres contraditórios e os impede de ser a um só tempo devotos e cidadãos. Assim é a religião dos lamas, a dos japoneses, e a do cristianismo romano. Esta última pode ser chamada a religião dos padres. Dela resulta uma espécie de direito misto e insociável inominado.

A considerar politicamente essas três espécies de religiões, verifica-se que todas têm os seus defeitos. A terceira é tão evidentemente má, que constitui uma perda de tempo ocupar-se de o demonstrar. Tudo quanto rompe a unidade social nada vale; todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo não servem para coisa alguma.

A segunda é boa naquilo em que reúne o culto divino e o amor das leis, e em que, fazendo da pátria o objeto da adoração dos cidadãos, ensina-os que servir o Estado é servir o deus tutelar. E uma espécie de teocracia, em que não se deve ter outro pontífice além do príncipe, nem outros sacerdotes senão os magistrados. Então, morrer por seu país é atingir o martírio, violar as leis é ser ímpio; e submeter um culpado à execração pública é sacrificá-lo à ira dos deuses: sacer esto.

Mas ela é má, porque, estando alicerçada sobre o erro e a mentira, engana os homens, torna-os crédulos, supersticiosos, e asfixia o verdadeiro culto da divindade num vão cerimonial. Ela ainda é má, quando, vindo a tornar-se exclusiva e tirânica, leva um povo a fazer-se sanguinário e intolerante, de sorte a que apenas respire assassínios e massacres, e creia cometer uma ação sagrada ao matar quem não admita os seus deuses. Tal espécie de religião coloca tal povo em estado natural de guerra contra todos os outros, o que é bastante prejudicial à sua própria segurança.

Resta, pois, a religião do homem ou o cristianismo, não o de nossos dias, mas o dos Evangelhos, que é de todo diferente. Por essa religião sagrada, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se reconhecem todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve, nem na morte.

Mas esta religião, não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, deixa entregue às leis a única força que de si mesmas tiram, sem lhes acrescentar nenhuma outra; e, devido a isso, um dos grandes laços da sociedade particular fica sem efeito. Ainda mais, ao invés de unir os corações dos cidadãos ao Estado, ela os afasta, como, aliás, de todas as coisas terrenas. De minha parte, nada conheço mais contrário ao espírito social.

Costuma-se dizer que um povo constituído de verdadeiros cristãos formaria a sociedade mais perfeita que se pode imaginar. Eu não vejo nessa suposição senão uma grande dificuldade: é que uma sociedade de verdadeiros cristãos já não seria uma sociedade de homens.

Posso mesmo afirmar que essa suposta sociedade não se revelaria, apesar de toda a sua perfeição, nem a mais forte, nem a mais durável, porque, à força de ser perfeita, necessitaria de ligação; seu vício destrutivo se encontraria em sua própria perfeição.

Cada qual cumpriria o seu dever; o povo acataria as leis; os chefes mostrar-se-iam justos, os magistrados íntegros, incorruptíveis; os soldados menosprezariam a morte; não haveria vaidade nem luxo. Tudo isso é verdade, mas olhemos mais distante.

O cristianismo é uma religião toda espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É certo que ele cumpre o seu dever, mas ele o cumpre com uma profunda indiferença no que concerne ao bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe tenha a reprovar, a ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui embaixo. Se o Estado floresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade pública; ele receia orgulhar-se da glória de que goza o seu país; se o Estado perece, ele abençoa a mão de Deus que se abate sobre o povo.

Para que a sociedade fosse tranqüila e se mantivesse a harmonia, seria preciso que todos os cidadãos, sem exceção, se revelassem igualmente bons cristãos; porém, se por desgraça, houver entre eles um único ambicioso, um único hipócrita, um Catilina, por exemplo, um Cromwell, este fará de seus piedosos compatriotas o que bem entender. A caridade cristã não permite se pense facilmente mal do próximo. Desde que tal indivíduo, graças a qualquer ardil, haja encontrado um jeito de se impor a eles e apoderar-se de uma parte da autoridade pública, ei-lo revestido de dignidade: Deus deseja que se o respeite. Em breve torna-se um poder: Deus quer que se lhe obedeça. O depositário desse poder talvez abuse dele: e isto é a vara com que Deus castiga os próprios filhos. Se a consciência aconselha rechaçar o usurpador, faz-se preciso perturbar a tranqüilidade pública, usar de violência, derramar sangue, e tudo isso não se harmoniza com a doçura do cristão; e, finalmente, que importa ser escravo ou livre neste vale de misérias? O essencial é atingir o paraíso, e a resignação não é senão um meio de chegar a ele.

Se sobrevier alguma guerra estrangeira, os cidadãos marcharão sem dificuldade para a luta; nenhum dentre eles pensará em fugir; todos farão o seu dever, mas sem nenhum entusiasmo pela vitória. De preferência saberão morrer a triunfar. Vencedores ou vencidos, que lhes importa? Não conhece a Providência, mais do que eles, o que lhes convêm? Imagine-se, pois, que partido pode tirar de seu estoicismo um inimigo altivo, impetuoso e apaixonado! Colocai à frente deles um desses povos generosos, devorado pelo ardente amor da glória e da pátria; suponde vossa república cristã à frente de Esparta ou Roma: os piedosos cristãos serão batidos, esmagados, destruídos, antes de terem tido tempo de se reconhecerem, ou então se salvarão graças. ao desprezo do inimigo. Constituía um belo juramento, no meu modo de ver, o dos soldados de Fábio; não juravam morrer ou vencer, mas juravam retornar vencedores e o faziam conforme o juramento. Jamais os cristãos agiriam de modo semelhante, pois acreditariam estar tentando a Deus.

Engano-me, porém, quando me refiro a uma república cristã: ambos os termos se excluem. O cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com freqüência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para escravos; e eles o sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco preço aos seus olhos.

Dizem que as tropas cristãs são excelentes. Eu o nego. Onde estão as provas disso? Citar-me-ão as Cruzadas. Sem discutir o valor das Cruzadas, assinalarei que, longe de serem cristãos, eram soldados do clero, cidadãos da Igreja; batiam-se por seu país espiritual, que ela transformara em temporal, não se sabe como. Bem pesando as coisas, era uma volta ao paganismo. Como os Evangelhos não estabelecem uma religião nacional, toda guerra sacra é impossível entre os cristãos.

Sob os imperadores pagãos, os soldados cristãos eram valentes; todos os autores cristãos o asseguram, e eu o creio: tratava-se de uma emulação de honra contra as tropas pagãs. Assim que os imperadores se tornaram cristãos, essa emulação deixou de existir; e quando a cruz expulsou a águia, toda a coragem romana desapareceu.

Mas deixando de lado as considerações políticas, retornemos ao direito, e fixemos os princípios acerca deste importante ponto. O direito, dado pelo pacto social ao soberano sobre os vassalos, não ultrapassa, como já o disse, os limites da utilidade pública (40). Os vassalos não devem, portanto, prestar contas ao soberano no que respeita às suas opiniões a não ser na medida em que essas opiniões importem à comunidade. Ora, é conveniente ao Estado que cada cidadão possua uma religião que o faça amar os seus deveres; todavia, os dogmas dessa religião só interessam ao Estado e a seus membros enquanto se relacionam com a moral e os deveres que aquele que a professa é forçado a cumprir para com outrem. Cada qual pode ter, de resto, as opiniões que desejar, sem que interesse ao soberano conhecê-las; porque, não tendo ele competência no tocante ao outro mundo, não é de seu arbítrio preocupar-se com a sorte dos vassalos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos na vida terrena.

Há, pois, uma profissão de fé puramente civil cujos artigos compete ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser-se bom cidadão ou súdito fiel (41). Conquanto não possa obrigar ninguém a crer, pode ele banir do Estado quem neles não acreditar; pode bani-lo, não como ímpio, mas sim como insociável, como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar à necessidade a vida e o dever. E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, se conduz como se os não aceitasse, seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: mentiu perante as leis.

Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações nem comentários. A existência da Divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e providente, a vida futura, a felicidade dos justos, o castigo dos perversos, a santidade do contrato social e das leis: eis os dogmas positivos (42). Quanto aos dogmas negativos, reduzo-os a um único: é a intolerância, implícita nos cultos que excluímos.

Na minha opinião, enganam-se os que distinguem a intolerância civil da intolerância teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível viver em paz com gente que se crê danada; amá-la seria odiar a Deus que a castiga; é absolutamente necessário convertê-la ou puni-la. Onde quer que a intolerância teológica seja admitida, toma-se impossível não haja algum efeito civil; e tão logo este apareça deixa o soberano de ser soberano, mesmo em relação ao poder temporal a partir de então, os sacerdotes passam a ser os verdadeiros senhores, e os reis apenas seus oficiais.

Agora que não há mais nem pode haver religião nacional exclusiva, devemos tolerar todas as que se mostram tolerantes com as outras, desde que seus dogmas nada tenham de contrário aos deveres dos cidadãos. Contudo, quem quer que ouse dizer: Fora da Igreja não há salvação, deve ser banido do Estado, a menos que o Estado não seja a Igreja e o príncipe não seja o pontífice. Tal dogma só pode ser útil sob um governo teocrático; sob qualquer outro, é pernicioso. O motivo pelo qual Henrique IV, conforme se diz, abraçou a religião romana deveria ser deixado a todo homem de bem, e sobretudo a todo príncipe que soubesse raciocinar (43).

IX – Conclusão.

Depois de ter exposto os verdadeiros princípios do direito político, e cuidado de edificar o Estado em suas bases, restaria ampará-lo através de suas relações externas, o que compreenderia o direito das gentes, o comércio, o direito da guerra e das conquistas, o direito público, as ligas, as negociações, os tratados, etc. Isso tudo, entretanto, constitui assunto novo e muito vasto para minha curta vista; eu a deveria ter fixado sempre mais junto de mim.

<< Voltar Avançar >>