A Religião pública na Grécia e os Mistérios Órficos

A religião exerceu uma profunda influência na gênese da filosofia grega, e, por conseqüência, na filosofia ocidental. Mas quando se fala da religião helênica, se faz necessário distinguir entre a religião pública, que teve seu modelo na representação dos deuses e do culto que foi legado por Homero, e adotada pela maioria da população pela sua simplicidade explicativa dos fenômenos naturais e humanos,antropomorfizando-os, e a chamada religião dos mistérios. Apesar de serem religiões com pontos em comum, há importantes diferenças entre estas duas formas de religiosidade (como, por exemplo, a concepção de homem, do sentido da vida e o destino último da alma humana). Ambas as formas de religiosidade são fundamentais para a gênese da filosofia grega, mas a segunda forma se destaca muito mais nesta gênese que a primeira. em todos os gregos consideravam críveis ou aceitáveis os pressupostos da religião pública, recheada de deuses bastante humanos. Por isso, em círculos restritos, desenvolveram-se os chamados "mistérios", com elementos da religiosidade oriental, tendo suas crenças mais logicamente enlaçadas e seus próprios rituais reconhecidamente simbólicos e com forte conteúdo arquetípico-psicológico. O orfismo é particularmente importante porque introduz na civilização grega uma nova interpretação da existência humana (Reale & Antiseri, 1990). Enquanto a concepção tradicional, desde Homero, considerava o homem com uma alma desconhecida, que se perdia na região do Hades após a morte, quase como um fim total da existência humana, o orfismo proclama a imortalidade da alma, sendo esta o que dá a persnonalidade do homem, herdeira de uma história e de um trajeto evolutivo, sempre se aperfeiçoando nesta e em inúmeras outras vidas, até que consiga se assemelhar ao máximo a Deus.

Os principais elementos da doutrina órfica são:

a) No homem há um princípio divino, uma alma que caiu em um corpo para corrigir uma imperfeição.

b)Essa alma não só preexiste ao corpo como também sobrevive a ele, estando destinada a reencarnar em corpos sucessivos até que consiga depurar-se das imperfeições e dos erros que a fazem voltar ao mundo.

c)Com suas práticas e ritos simbólicos, o orfismo buscava despertar no homem a compreensão destas verdades, ajudando-o a tomar consciência do que e quem ele é, e motivando-o a tomar ânimo para ter o total controle de sua vida, aperfeiçoando-se e pondo fim ao ciclo das reencarnações - temos aqui, de alguma forma, um eco dos ensinos budistas.

Conhecemos algumas máximas órficas, que nos chegaram através de fragmentos encontrados em tabuinhas e em tumbas pertencentes a seguidores da doutrina. Algumas dessas máximas resumem muito bem o núcleo central de sua doutrina:

Alegra-te, tu que sofreste a paixão: antes, desconhecias o que era o sofrimento. De homem, nasceste Deus!".

"Feliz e bem-aventurado, serás Deus ao invés de um mero mortal! De homem, nascerás Deus, pois és filho do Divino!"

De um modo geral, a mensagem órfica é a de que todos somos deuses, por herança divina, e deveremos voltar a estar junto de Deus.

Sem o orfismo não se explicaria a filosofia e a doutrina de Pitágoras, nem a de Empédocles e, sobretudo, não se explicaria Sócrates e boa parte do pensamento de Platão, bem como de toda a tradição que deriva de ambos.