VALORES - Critério Ético e Problemas Morais

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Ética é para nós uma dimensão que nos permite o questionamento sobre as práticas, atitudes, regras e ações humanas. Para que este questionamento seja possível é necessário saber qual o critério que estamos usando para avaliar a ação humana.

O critério que assumimos é a própria vida humana. Partimos do principio de que as sociedades existem para garantir a sobrevivência dos seres humanos e, mais do que isso, uma existência digna com acesso a tudo que seja necessário ao seu pleno desenvolvimento. E que a função social da moral é exatamente contribuir na obtenção desse objetivo. Normatizando as relações entre os seres humanos entre si, com a comunidade e com a natureza. Sendo assim, a vida deve ser o critério para avaliar as atitudes da sociedade e dos indivíduos.

Além desse critério devemos considerar que a ética exige mudanças de atitudes. Hoje mais do que nunca a humanidade se dá conta de que vivemos em um mundo globalizado, onde as ações de um repercutem diretamente na vida dos outros. Esta constatação é mais visível quando pensamos nos problemas ecológicos, no racismo e na guerra, que são todos problemas onde as respostas individuais ou grupais não conseguem resolvê-los. A única possibilidade estaria em uma resposta construída com a participação de todos os grupos envolvidos. O que exige a construção de uma ética com princípios e valores aceitos por todos e válidos para todos, apesar de todas as diferenças.

Convidamos o leitor para fazer junto conosco uma reflexão sobre a ética e os problemas éticos que se apresentam no mundo contemporâneo e que não podem deixar de ser enfrentados sob o risco de colocarmos a sobrevivência da humanidade em perigo.

Três posturas sobre a moral

Para uma compreensão mais abrangente da ética começaremos discutindo o que é a moral. Sobre as questões morais se debruçaram grandes filósofos que produziram contribuições muito significativas sobre este tema. Não é nossa intenção aqui apresentar as contribuições que filósofos como Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant e outros deram à discussão sobre a moral - já existem muitas publicações neste sentido. Pretendemos apresentar as posturas mais comuns que as pessoas adotam frente à questão moral. É claro que muitas delas podem refletir, em alguma medida, a influência das correntes filosóficas; afinal, Somos todos filhos da cultura ocidental, mas essa vinculação não é automática.

As duas vertentes mais presentes em nosso comportamento moral são a moral essencialista (também chamada de ética de princípios), que herdamos das tradições greco-latinas e judaico-cristãs, e a moral subjetivista, fruto da cultura moderna. Além dessas duas vertentes introduziremos uma terceira, a ética da responsabilidade, que se orienta não só pelos princípios, mas também pelo contexto e efeitos das ações. Vejamos cada uma delas em detalhe.

Moral essencialista

Este é talvez o modelo que temos mais vivamente em nossas mentes quando se fala em moral ou quando chamamos alguém de "moralista". Trata-se de um conjunto de normas que devem servir de base para o comportamento moral dos indivíduos em toda e qualquer situação. Geralmente este conjunto de princípios está alicerçado sobre um princípio regulador de fundo filosófico ou, na maioria dos casos, religioso.

Esta forma de moral é própria das sociedades tradicionais, onde a força dos costumes e das normas desempenha um papel fundamental na manutenção da coesão da sociedade. As regras de conduta moral, o que é bom e o que é mau para as pessoas. já estariam definidas desde sempre. Cabendo ao indivíduo somente aceitar tais regras. Sendo que a não-aceitação das regras poderia trazer sérias conseqüências ao individuo e a toda a comunidade.

Esse tipo de moral é baseado em princípios transcendentes. ou seja. as regras de conduta moral são exteriores ao sujeito. Em geral acredita-se que elas foram ditadas por Deus. Cabe ao ser humano seguir estas regras em sua vida cotidiana. Sem poder reformá-las ou mesmo substitui-las por outras, pois não sendo autor delas também não está em seu poder a possibilidade de mudá-las.

O cumprimento de tais regras morais pode ser assegurado por critérios pessoais ou coletivos. Coletivos quando existe uma pressão por parte da sociedade para o cumprimento das regras. Sob pena de castigo ou punição com a expulsão da comunidade. Ou até mesmo com a morte, dependendo da gravidade da falta.

Já no caso dos critérios pessoais. O individuo segue determinados preceitos por ter a convicção de estar agindo conforme a vontade de Deus e orientado por princípios de justiça. Neste grupo incluímos a ação modelar dos profetas, mártires e santos. Pessoas que primam pela vida ética e por colocar os princípios morais acima de quaisquer outros. Num outro grupo estariam as pessoas que se guiam por motivos morais menos elevados, que agem sem convicção, mas só pela esperança de receber alguma recompensa divina como uma vida próspera ou na esperança de uma vida eterna no céu.

Na modernidade, com a formalização do direito na maioria das sociedades. O Estado passou a ter o monopólio da aplicação da justiça. O que enfraqueceu o poder da comunidade de controlar e de punir os seus membros. Passou a ser mais comum. Portanto, as pessoas seguirem determinados preceitos religiosos ou filosóficos por motivos pessoais; seja por convicção, seja pela esperança de recompensa terrena ou futura.

O essencialismo, que ficou enfraquecido na modernidade, ainda continua como uma forma muito difundida de comportamento moral. Isso se deve ao fato de que através da filosofia grega e da cultura judaico-cristã acabou-se enraizando e formando a base da nossa cultura ocidental.

Apesar da sua longevidade, a moral assencialista apresenta alguns problemas. Um deles é o de ser uma forma de conduta que limita o campo da liberdade humana. Se eu não posso questionar as regras nem transformá-las, minha liberdade está restrita a obedecê-las. Por não permitir soluções novas que possam ser tomadas de comum acordo pelos membros da comunidade ou que atendam a situações concretas bastante particulares. As regras morais essencialistas acabam se tornando uma camisa-de-força, ao invés de contribuírem para a melhoria da convivência social e para felicidade dos seres humanos.

Isto tem pouco a ver com as raízes da tradição judaico-cristã. O profetismo, por exemplo, foi um movimento que sempre lutou para libertar o ser humano do jugo das leis. O próprio Jesus de Nazaré atacou o legalismo da sua época, dizendo: "O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado". E o sábado era a lei mais importante do judaísmo, a lei que havia mantido a identidade do povo judeu nos tempos de exílio e dominação.

É importante que existam normas sociais que sejam respeitadas por todos para que a convivência social se torne possível, mas estas normas não podem ser inflexíveis. Daí a sujeição das normas morais a um critério mais elevado: a vida humana. As regras devem ou não ser cumpridas de acordo com este critério. As regras de conduta, por mais bem elaboradas que sejam sempre correm o risco de se transformarem em instrumentos de poder para oprimir e controlar a vida das pessoas.

Além disso, por ser um conjunto de normas inflexíveis, ele dificilmente se adaptam às mudanças históricas e culturais da sociedade e acabam entrando em contradição com as novas formas de vida. O resultado disso é um conflito entre a moral de princípios e a ética da responsabilidade, isto é, entre seguir os princípios sem estar atento às conseqüências que estes possam trazer, ou estar atento aos efeitos e desrespeitar os princípios. Um exemplo disso é a posição do Vaticano, que, apegado à dimensão procriativa do sexo como a finalidade natural e intrínseca das relações sexuais, condena os modernos métodos de contracepção. Seria eticamente responsável ter muitos filhos quando não se pode sequer sustenta-los?

O descompasso entre os princípios morais e as exigências da realidade pode levar as pessoas a cair no outro extremo, o individualismo.

Moral individualista

Na modernidade ocorre uma reação aos exageros de uma sociedade baseada na tradição e nos costumes como era a sociedade medieval. O principio que norteia a modernidade é que cada indivíduo deve sair da minoridade, isto é, não deve se guiar pela tradição e por um conjunto de verdades preestabelecidas, mas deve ele mesmo escolher o que é melhor para si e para sociedade. O critério para esse discernimento não precisa ser procurado em nenhum livro, Pois está em nós mesmos: a nossa razão. Deus ou a natureza dotou todo homem de razão, basta que façamos um bom uso dela para evitar o erro. Na era moderna, a subjetividade ocupa um lugar central na busca de uma maior autonomia e liberdade dos indivíduos frente às instituições.

Essa posição, onde cada um encontra em si mesmo o critério para bem julgar, acabou também por produzir também OS seus excessos, levando ao surgimento de uma moral individualista. Adotou-se a máxima do "cada um por si", e as pessoas passaram a ter um comportamento egoísta, buscando apenas o próprio Interesse. E a famosa lei de querer "levar vantagem em tudo", muito estimulada numa sociedade baseada na concorrência, como é a sociedade capitalista, onde subir na vida implica, muitas vezes, em utilizar Os outros como degraus. Neste caso, o ser humano deixa de ser visto como um fim em si mesmo e passa a ser visto como meio.

Se a moral essencialista era predominante na Idade Média, podemos dizer que a moral individualista é a moral do capitalismo. Os laços comunitários e a solidariedade deram espaço à disputa e à concorrência.

Se por um lado a modernidade trouxe a vantagem de dar maior liberdade e autonomia aos indivíduos, por outro não colocou nada no lugar dos antigos critérios de moralidade, a não ser a defesa do Interesse pessoal e imediato, o egoísmo. Caímos assim na contradição de uma sociedade que em geral acredita que falar a verdade é melhor que mentir, que se deve ajudar o próximo, etc., mas que na prática não se comporta dessa maneira, e sim segundo conveniências pessoais em cada situação. Ou seja, conhecemos muito bem as normas de conduta necessárias para uma boa convivência social e as aplicamos ou não de acordo com nosso interesse pessoal.

Muitos acham que isso é uma falta de valores morais e se costuma falar que "há uma crise de valores", "que na sociedade de hoje já não há respeito como antigamente"... Na verdade, os valores estão todo o ai, só perderam a força. Hoje as pessoas não se guiam mais por estes princípios e valores "antigos", mas sim por um novo: o interesse pessoal e imediato.

A moral individualista realizou uma grande revolução ou inversão na concepção moral tradicional. Antes a solidariedade e o altruísmo eram incentivados como valores morais importantes e o egoísmo era controlado ou reprimido. Hoje o egoísmo (a defesa do interesse próprio) passou a ser um valor central na vida social, enquanto que a solidariedade e o altruísmo perderam sentido numa sociedade de competição.

Este tipo de moral é bastante corrosivo porque é simplesmente irresponsável. Nós não vivemos Isolados, logo todas nossas ações interferem de uma maneira ou de outra, na vida de várias pessoas e vice-versa. Não é possível viver em sociedade sem levar em conta as contradições inerentes ávida em sociedade, como vimos no capítulo 1. Contradições essas que geram a necessidade de uma moral, até mesmo da individualista. O problema é que este tipo de moral não responde às necessidades da convivência social, Pois não se pode viver numa sociedade sem abrir mão de algum interesse pessoal e imediato para que todos os membros da comunidade possam também ter acesso a um mínimo indispensável para uma vida digna.

Nunca devemos esquecer de que quando a sociedade entra em crise, todos Os seus membros acabam sentindo os efeitos. Mesmo que seja de uma forma indireta e em longo prazo.

Há um ditado que diz que o mundo é dos espertos, mas ninguém gostaria de viver num mundo só de espertos. Os lemas do "cada um por Si" e do "levar vantagem" na verdade servem a dois propósitos. De um lado servem àqueles que têm mais poder e dinheiro e, portanto, maiores condições de fazer prevalecer seus interesses contra aqueles que são mais pobres. Como na sociedade capitalista os interesses individuais dos poderosos acabam prevalecendo sobre os interesses coletivos, esse tipo de comportamento social egoísta acaba por favorecer aos ricos.

Por outro lado, os valores de uma sociedade de concorrência impedem que as pessoas se solidarizem umas com as outras e que se unam para mudar a orientação da sociedade buscando o bem comum, o que ajuda a manter as injustiças sociais e a riqueza e poder de uns poucos que se julgam acima da lei.

Ética da responsabilidade

Igualmente distante do individualismo e do essencial ismo está a ética da responsabilidade. Nessa perspectiva cada grupo social determina consensualmente os padrões de conduta que devem ser seguidos pelos indivíduos desse grupo. Estes padrões, porém, não devem ser vistos como universais e imutáveis, mas sim relativos a cada situação determinada e sempre sujeitos a mudanças, caso a comunidade as julgue necessárias.

A diferença básica entre a ética da responsabilidade e as outras posturas que vimos anteriormente é que ela não se orienta somente por princípios, mas principalmente pelo contexto e pelos efeitos que podem causar nossas ações.

Não roubar é um principio ético inquestionável que visa proteger a própria integridade social. Mas, em certos casos, a situação pode exigir que o indivíduo tome uma atitude contrária a seus princípios e ser mesmo assim uma ação moralmente justificável. Roubar os cofres públicos através de corrupção para se tornar milionário não é a mesma coisa que roubar um pão para matar a fome de uma criança. No primeiro caso trata-se de um crime, no segundo da defesa do direito à sobrevivência. Portanto, não é apenas o ato de roubar ou de mentir, por exemplo, que determina se uma determinada ação é eticamente justa ou não. Os efeitos, assim como a situação em que a ação se desenvolve, também devem servir de critério para avaliá-la.

Há um ditado que diz que "de boas intenções o inferno está cheio", isto quer dizer que não basta termos uma série de normas e regras e a boa intenção de segui-las, mas que estas devem sempre se adaptar a cada situação especifica. O que não significa que devemos Ignorá-las sempre que não nos favoreça como no individualismo. Pois este, como já vimos, é também irresponsável por não levar em conta os outros e por descuidar dos efeitos não-intencionais de sua ação.

As normas morais, assim como a sociedade, não são fruto de uma ordem transcendente, mas sim uma criação dos próprios seres humanos. O objetivo dessas normas é assegurar a sobrevivência do grupo social e de cada indivíduo, e só de acordo com este objetivo se justifica o seu cumprimento. Mas então, se as normas morais não têm uma origem sagrada, quem as elabora?

Aqui novamente devemos ser responsáveis. A elaboração das normas éticas para toda sociedade não deve ficar sob o controle de uma minoria que procuraria elaborar normas que só defendessem os seus interesses, mais ou menos como ocorre com as normas do direito, que quase sempre acabam beneficiando os mais ricos. Para se evitar este risco, o máximo de membros da comunidade deve participar na elaboração das normas que afetam direta ou indiretamente. O ideal de participação e a busca de consenso devem servir de base para uma ética da responsabilidade Partindo-se do pressuposto de que todos nos somos dotados de razão e que através da análise cuidadosa dos fatos e da busca do consenso, consultando um grande número de pessoas sobre cada questão, podemos chegar à elaboração de normas mais justas. Estas, porém, como toda criação humana, nunca serão perfeitas, necessitando sempre de mudanças e da busca de novos consensos.

Como nenhuma lei é isenta de falhas, nunca podemos deixar de lado nossa capacidade de julgá-las segundo critérios éticos. O mais importante destes critérios é o da vida humana. Toda vez que este principia for ameaçado por uma norma, seja ela moral, política ou econômica, esta norma deve ser desobedecida ou mudada. Daí a necessidade de conhecermos as normas de funcionamento dessas instituições para sabermos se elas estão ou não respeitando o direito à vida de cada ser humano.

Caso contrário, para sermos eticamente responsáveis, devemos agir no sentido de transformá-las.

"Max Weber, na sua critica da ética de atitude e de sua exigência de uma ética de responsabilidade, parte de uma critica ao cristianismo. Da ética do cristianismo ele diz: O cristão procede corretamente e atribui o resultado a Deus.

A isto ele opõe a ética da responsabilidade: Deves resistir violentamente ao mal, do contrário serás responsável pelo seu predomínio.

Para Weber, o critério decisivo para o procedimento político é o da prontidão para empregar a violência. Esta violência, porém, resiste ao 'mal', isto é, ao mal, que, de outra forma, tomaria conta. Weber, entretanto, (...) não nos diz donde ele propriamente tira a determinação daquilo que ele chama o 'mal'.

Mas existe uma formulação clássica, cristã da ética da responsabilidade. que tem quase dois mil anos e se apóia sobre uma tradição Judia, mil anos anterior:

‘O homem não existe para o sábado, mas o sábado existe para o homem'

Ela se refere à responsabilidade pelas conseqüências de uma ética de responsabilidade rigorosa. Relacionada aos exemplos kantianos do rigorismo, podemos formulá-la como O homem não existe para a verdade. mas a verdade existe para o homem, ou: O homem não existe para que haja o depósito mas o depósito existe para que haja homens. “Trata-se da’ submissão de toda ética de princípios sob o critério do homem como ser vivo”.

Franz Hinkelammert. "Ética de discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição critica" ln: Antonio Sidekun, Ética do discurso e filosofia da libertação: Modelos Complementares.

São Leopoldo, RS, Ed. Unisinos, 1994, p. 93.

Autores: Jung Mo Sung e Josué Cândido da Silva

Livro: Conversando Sobre ética

Editora Vozes