Natureza Humana - 02

Sociedade

O que é ser alguém?

A resposta a esta pergunta ou, mais especificamente, ao que é ser "humano", tem variado ao longo da história. Ela envolve visões contrárias, como acreditar que o homem é livre em suas escolhas ou que todos são regidos por determinismos

Luís Mauro Martino é doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, pesquisador-bolsista na Universidade de East Anglia (2008) e autor de Teoria da Comunicação e Comunicação & Identidade, entre outros

Dia desses, estava em uma loja da rede Starbucks tomando um café. A franquia tem como prática chamar os clientes pelo nome na hora de entregar o pedido. A balconista, com um copo na mão, leu o nome que estava escrito, hesitou um instante e chamou: "Senhor Darth Vader, seu café está pronto. Por favor, senhor Darth Vader". Um moço de gravata levantou a mão, se identificou como "Darth Vader", pegou o café e, entre olhares incrédulos e cômicos, foi embora.

Certamente foi uma brincadeira - ele provavelmente não acredita que é personagem de Star Wars, nem que tem poderes jedis em conexão com o lado sombrio da Força.

Mas há algo de estranho quando publicamente uma pessoa escolhe ser outra. E, por outro lado, qual o problema de alguém se identificar como outra pessoa? E se em vez de "Darth Vader" ele se identificasse como "Princesa Léia"? A rigor, essas questões abrem espaço para outra, talvez mais difícil de responder: o que significa ser alguém no mundo contemporâneo? Aqui, o objetivo não é dar respostas, mas delinear perguntas.

Em uma época de conexões virtuais imediatas, economia global e tecnologia sem limites, voltar à pergunta "o que é ser alguém?" talvez pareça ingênuo ou desnecessário. No entanto, pode-se argumentar que, exatamente porque vivemos em uma época assim, é preciso retomar tal questão. As conexões virtuais, a economia e a política mundiais colocaram os seres humanos diante de novos desafios de convivência. E, para essa convivência existir, parece importante voltar à questão "o que é ser alguém?".

Como várias perguntas básicas, ela pode enganar por sua aparente simplicidade. Mais ainda, como nos lembra Santo Agostinho em relação à pergunta "O que é o tempo?" em suas Confissões, sabemos perfeitamente do que se trata até alguém nos perguntar o que é.

A EXPRESSÃO "SER ALGUÉM" TRAZ UMA IDEIA DE PERMANÊNCIA QUE, NA LÍNGUA PORTUGUESA, PODE SER CORRIGIDA PARA "ESTAR ALGUÉM", COM UMA PERSPECTIVA TEMPORAL

Além disso, várias de nossas ações no cotidiano derivam da resposta que damos a essa pergunta. A ética que adotamos em relação aos nossos semelhantes depende em parte de quem consideramos "nosso semelhante". E isso é mais complicado do que parece. A noção de que "todas as pessoas são iguais" não foi aceita da mesma maneira em todas as épocas e, mesmo hoje em dia, embora seja aceita em teoria, é desafiada todos os dias por atitudes que reduzem o outro a uma coisa, não a "meu semelhante".

Para entender a noção de pessoa, um primeiro exercício talvez seja desmontá-la. Não tanto no sentido da palavra, do latim persona, a máscara utilizada no teatro, mas em sua constituição histórica como uma categoria que guia nosso olhar em relação aos outros.

Nessa operação de desmontagem, talvez o primeiro alvo seja a estabilidade da noção de "pessoa".

DESMONTANDO UMA NOÇÃO

A noção de "pessoa" não é a única usada para definir o ser humano. Ela concorre, no cotidiano, com várias outras, carregadas de sentidos que levam a outras interpretações do que é ser alguém. As conversas no cotidiano, bem como os termos oficiais e as definições usadas no comércio, mostram que "ser alguém" é apenas uma das condições do indivíduo.

Essa instabilidade se revela na relação com todos os outros. Certamente você é muito legal para algumas pessoas, insuportável para outras. É uma mãe, filha, amiga, namorada. E, sendo o mesmo, é ao mesmo tempo diferente em cada uma dessas situações.

A expressão "ser alguém" traz em si uma ideia de permanência que, na língua portuguesa, pode ser corrigida, acrescentando uma perspectiva temporal, pela expressão "estar alguém". As experiências do cotidiano desafiam o indivíduo a se reorganizar constantemente, seja reafirmando seus valores, seja modificando-os. Novas situações vividas podem colocar o indivíduo diante de desafios que o transformam, revelando capacidades, medos, potencialidades e dificuldades desconhecidos pela própria pessoa até então. Diante de um evento novo, o "ser" de um instante atrás pode revelar atitudes completamente novas, tornando-se outro "eu". Isso não significa necessariamente uma ruptura total com o passado: na dinâmica da existência humana há espaço tanto para mudanças quanto para continuidades, e nem sempre um evento traumático é a causa de uma mudança no indivíduo. Ao contrário, eventos cotidianos podem ser mais reveladores de quem se é do que os grandes acontecimentos.

"Quem sou eu?" Na pergunta diante do espelho estão embutidas mudanças que ocorreram ao longo dos anos e também permanências. O ser é dinâmico e está sempre em construção

As mudanças traumáticas e repentinas certamente podem ser percebidas com mais clareza do que as alterações cotidianas, mas o fato de algo acontecer em escala micro não o torna menos importante na montagem da complexidade do ser humano. Se hoje, pela primeira vez, fiquei com o troco a mais que me deram em uma padaria ou deixei de ceder o lugar no banco do ônibus para um idoso, essa atitude revela para mim mesmo que minha ética é diferente do que eu pensava até minutos atrás.

Essas transformações ficam mais fáceis de perceber quando aumentamos o intervalo de tempo. Comparar meu "eu" de hoje com o de ontem não tende a revelar mudanças muito drásticas - salvo se aconteceu algo excepcional nesse período.

No entanto, quando se compara o "eu" de hoje com o de dez anos atrás, as transformações ficam mais claras - quais eram meus gostos musicais, minhas roupas, meus amigos? Se você hoje se encontrasse na rua com o "você" de dez anos atrás, haveria qual diálogo? Um dos dois sentiria orgulho - ou vergonha - do outro? Nesse exemplo, dois elementos podem chamar a atenção: você é uma pessoa completamente diferente da que era - e, ao mesmo tempo, mantém alguns traços daquela época.

Essa dinâmica entre permanência e mudança é uma das tônicas da noção de pessoa. Perguntar "quem é você" talvez não esteja muito correto: o ideal, ainda que destroçando a língua portuguesa, seria "quem está você", sublinhando a dinâmica existente no fato de se "ser alguém".

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ANIMAL RACIONAL A HOMO DEMENS

A noção de pessoa, tal como a conhecemos hoje, é uma categoria relativamente recente na história ocidental. A pergunta pelo ser humano, no entanto, começou ainda no início da Filosofia. Perguntar o que é ser uma pessoa é examinar uma questão que tem suas origens, como quase todas as questões filosóficas, na Grécia antiga. A pergunta não é pelo Ser, ontos, mas pelo humano, o antropos.

Você disse "SER HUMANO"?

Para a publicidade, você é um target a ser atingido; para a Receita Federal, um contribuinte a ser tributado; em algumas empresas, você é um recurso para ser administrado; perante a Constituição, um cidadão com direitos e deveres; para qualquer loja, um cliente a atender; para o mercado, um consumidor.

E uma série de números - RG, CPF, senhas e registros em bancos de dados. Parafraseando Flusser e Proudhon, completando com Raul Seixas, ser alguém é também ser codificado, conectado, plugado, mapeado, digitalizado, tuitado, blogado, perfilado, guardado em bits, pixelizado e significado, se quiser existir.

Quando Sócrates traz o foco de investigação da Filosofia do cosmos para o anthropos, de certa maneira ele rompe com parte da tradição filosófica anterior e traz o exame da vida humana para o centro do debate, perguntando o que é a virtude, a justiça e o poder. Na obra de Platão, essas questões se desenvolvem em várias direções, assim como Aristóteles, tanto na Ética quanto na Política - e em vários outros momentos -, procura encontrar definições para o ser humano. A noção de "animal racional" é secundada, na Política, pelas condições de formação do participante da pólis.

Nas várias faces e momentos da Idade Média, a pergunta pelo ser humano não se perdeu nem se resumiu a considerá-lo uma imagem e semelhança de Deus, mas a pensá-lo como parte de um projeto cosmo-teológico que colocava o ser humano como pivô de forças cósmicas em combate.

SÓCRATES TRAZ A VIDA HUMANA PARA O CENTRO DO DEBATE, PERGUNTANDO O QUE É A JUSTIÇA, A VIRTUDE, O PODER

A moderna noção de pessoa, de certa maneira, começa no Iluminismo a partir do momento em que se pensa o ser humano como racional, livre e responsável por suas ações. Em sua Resposta à questão: o que é o Iluminismo, Immanuel Kant responde que ele é a chegada do ser humano à sua maioridade, o que significa a liberdade de decisão por si mesmo e, em contrapartida, a liberdade de suas ações. E isso imediatamente gera implicações éticas: em sua Crítica da Razão Prática, Kant indica que uma condição fundamental para a vida comum é considerar as pessoas como fins em si, não como meios - se todos os seres humanos são iguais, deve-se tratar a todos do mesmo jeito.

Essa mesma liberdade parece estar presente no conceito de pessoa que a Revolução Francesa traz décadas mais tarde, o "cidadão". Não é mais o "súdito" de alguém, mas a pessoa que mora na cidade, autônoma, livre. A igualdade entre os homens significava o mesmo potencial de liberdade para todos - não fazia sentido considerar o outro como igual e tratá-lo como inferior ou superior. A liberdade implicava a igualdade. E, ao acrescentarem a "fraternidade" a esses dois elementos, já se supunha uma regra prática para a vida moral: seres livres, iguais e racionais só poderiam escolher, como princípio de vida, a fraternidade.

A NOÇÃO DE "PESSOA" ao longo do tempo

O homem começou a se indagar sobre "o que é ser alguém" ainda na Grécia antiga, quando a Filosofia estava apenas começando. Deste período até hoje, a ideia que se tem sobre o tema passou por muitas mudanças. Leia, a seguir, nesta breve linha do tempo, como se construíram as visões que predominaram ao longo da história:

ANTIGUIDADE:

Imagens: shutterstock (Sócrates) / Reprodução (Kan Sócrates (469-399 a.C.) • foi o filósofo que trouxe o exame da vida humana para o centro do debate. Ele muda o foco da Filosofia do cosmos para o anthropos, indagando sobre temas como a virtude, a justiça e o poder.

Platão (428/427 - 348/347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) • ambos desenvolveram as questões a repeito do homem levantadas por Sócrates e tentaram encontrar definições para o ser humano.

IDADE MÉDIA:

• Seus vários períodos, marcados pelo domínio da Igreja católica, não se restringiram a considerar o homem como imagem e semelhança de Deus. Ele também foi pensado como parte de um projeto cosmo-teológico que o colocava como pivô de forças cósmicas em combate.

MODERNIDADE:

• O Iluminismo • funda as bases da moderna noção de pessoa, que passa a ser pensada como racional, livre e responsável por suas ações.

Immanuel Kant (1724-1804) • o filósofo escreve sobre o Iluminismo, na Resposta à questão: o que é o Iluminismo, e afirma ser ele a chegada do ser humano à sua maioridade, o que significa a liberdade de decisão por si mesmo e, em contrapartida, a liberdade de suas ações. Na Crítica da Razão Prática, afirma que as pessoas devem ser consideradas como fins em si e não como meios - se todos os seres humanos são iguais, deve-se tratar a todos do mesmo jeito.

• Revolução Francesa • o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" traz um conceito de pessoa, o "cidadão", permeado por essa mesma liberdade mencionada anteriormente e que inclui a necessidade de que todos sejam tratados como iguais. Seres livres e iguais que só poderiam escolher, como princípio de vida, a fraternidade.

• Em muitos momentos, no entanto, alguns homens foram tratados como "inferiores", apontando a fragilidade do conceito de pessoa construído até então. Como exemplos, os vastos impérios coloniais europeus, que dizimaram milhares de indivíduos nas colônias da África e da Ásia; os fascismos europeus; o regime de segregação na África do Sul; e os diversos conflitos étnicos e políticos.

Schopenhauer (1788-1860) • antes mesmo de Freud, indica que o ser é guiado não pela razão, mas pela vontade, descrita como uma força "cega e irracional" que o anima.

CONTEMPORANEIDADE:

Freud (1856-1939) • mudou a noção de "pessoa" ao descobrir o inconsciente, que acrescentou à dimensão racional uma ligação profunda com forças irracionais.

E, no entanto, apesar desse caminho apontado ainda no século XVIII, os 300 anos seguintes mostraram que a noção de "pessoa" era mais frágil do que parecia, e em vários momentos o "outro" foi tratado como "coisa". Alguns exemplos bastam, a começar pelos vastos impérios coloniais europeus, que dizimaram milhares de indivíduos nas colônias da África e da Ásia no século XIX, passando pelos fascismos europeus, no regime de segregação na África do Sul e nos conflitos étnicos e políticos que varrem o planeta até hoje.

Classificar o que é humano pode ter implicações éticas, como estabelecer quem deve ser considerado semelhante ou, ao contrário, inferior

O que todos esses elementos têm em comum? Entre outras coisas, uma maneira de ver os outros indivíduos não como "pessoas", mas como "súditos", "inferiores", "atrasados", "selvagens" ou qualquer outro termo.

No século XX foi a vez de Sigmund Freud provocar uma mudança na noção de "pessoa", acrescentando à dimensão racional uma ligação profunda com forças irracionais, o inconsciente. Antes dele, o filósofo Arthur Schopenhauer já havia indicado que o ser é guiado não pela razão, mas pela vontade, descrita como uma força "cega e irracional" que o anima. E, já próximo do século XXI, o pensador francês Edgar Morin propõe que o humano seja pensado além de sua dimensão racional, mas também em termos afetivos, emocionais, sensíveis, mesmo loucos - ao lado do Homo sapiens aparece o Homo demens.

NATUREZA HUMANA

O ser humano é complexo. Ele muda a todo instante, seja de forma gradual e quase imperceptível ou de maneira repentina, em bruscas rupturas de comportamento

Definir-se como alguém significa, muitas vezes, fazer escolhas. É a partir dessas escolhas que definimos, diante de inúmeros "eus" possíveis, qual será o "eu" existente no instante seguinte. As decisões tomadas, mesmo quando aparentemente insignificantes, mostram ao observador atento quais são os valores que orientam minha escolha.

Esses valores estão ligados ao que se chama, em algumas filosofias, de razão prática, isto é, os critérios racionais que orientam minha prática, ou as coisas que faço no mundo. Prática, aqui, não é usada como o contrário de "teoria", mas como sinônimo de "ação". Há duas perguntas possíveis aqui. Primeira: qual é a origem desses valores? Segunda: essa razão prática nasce com os seres humanos ou é criada pela sociedade na qual vive?

No primeiro caso, as respostas se situam entre dois extremos. Em primeiro lugar, o determinismo, ideia segundo a qual o ser humano é dirigido por forças sobre as quais tem pouco ou nenhum controle. Em algumas vertentes, o determinismo considera a liberdade de escolha do ser humano uma mera ilusão: há uma relação de causa e efeito que diz, de antemão, o que vai acontecer.

Como, no entanto, não conseguimos ver e identificar as relações causais que dirigem nossas ações, temos a ilusão de que a escolha foi feita livremente.

Há várias modalidades de determinismo. Algumas reduzem todas as ações humanas a uma única causa - a sociedade em que se vive, as condições econômicas, a genética. Outras vertentes consideram que o determinismo é multifatorial: várias causas se cruzam no cotidiano, o que torna ainda mais difícil perceber as relações de causa e efeito e aumenta a ilusão de liberdade.

Do outro lado, há a perspectiva de que o ser humano tem liberdade de ação, isto é, a perspectiva de que a pessoa pode escolher livremente o que faz e é, sendo, portanto, responsável por suas escolhas. As condições sociais, econômicas ou genéticas de alguém podem certamente impor algumas circunstâncias, mas cabe ao ser humano, livre e racionalmente, escolher suas ações e mesmo alterar essas condições de acordo com sua própria vontade - o indivíduo consciente é o critério de qualquer decisão. Assim como no caso do determinismo, há várias graduações para essa perspectiva da liberdade - de uma postura radical, como em Jean-Paul Sartre, até uma perspectiva integradora que pensa a liberdade mediada pela circunstância, do filósofo inglês Robert Audi.

IGUAIS E DIFERENTES

A pergunta a respeito da natureza humana é essencial para a convivência entre as pessoas. A resposta a essa pergunta não é apenas uma questão metafísica da ontologia - do grego ontós, o "Ser", não apenas no sentido do anthropos, o "ser humano" -, mas está ligada diretamente ao modo como se compreende os outros em relação a si mesmo. Cada resposta traz em si uma série de problemas.

Se existe uma "natureza humana", então deve haver um conjunto de valores que ultrapassa as barreiras culturais e, portanto, é universal. A ideia de "natureza humana" coloca a espécie acima da cultura e das relações sociais de produção na qual essa cultura existe. Decifrar essa "natureza humana" seria encontrar alguns valores absolutos, isto é, que não variam nem conforme o tempo nem conforme o lugar. Por baixo das diferenças culturais e econômicas haveria elementos invariáveis, comuns a toda humanidade e que, portanto, fariam parte de uma "natureza humana" independente de todos os outros fatores. Em última análise, todos os seres humanos dividiriam algo em comum, sua "humanidade", composta de elementos universais.

Por outro lado, se não existe uma "natureza humana", os modos de agir são construídos de maneiras diferentes pelas várias sociedades humanas, cada uma com seus valores, modos de ser e compreender o mundo. Os modos de ser são construídos nas relações sociais, aprendidos e interiorizados a partir da convivência com outras pessoas no cotidiano. Os seres humanos se formam mutuamente, aprendendo com os outros na vida cotidiana e, assim, constituindo-se ao mesmo tempo em que o mundo no qual vivem. Não haveria, nesse sentido, uma "natureza humana" formada por elementos universais, mas tantos conjuntos de valores quantas forem as comunidades humanas. Mais do que a unidade de uma possível "natureza humana", entender a humanidade é celebrar a diversidade e as diferenças.

SE EXISTE UMA "NATUREZA HUMANA", ENTÃO DEVE HAVER UM CONJUNTO DE VALORES QUE ULTRAPASSA AS BARREIRAS CULTURAIS E, PORTANTO, É UNIVERSAL

As duas concepções têm vantagens e riscos no que diz respeito à convivência entre pessoas e povos. A pergunta pela natureza humana não é apenas de natureza filosófica, mas também social e política. Levadas a extremos, qualquer uma das concepções pode ser usada para justificar a violência, a dominação e mesmo a destruição do outro.

Algumas decisões de caráter ético, por exemplo, dependem da resposta a essa pergunta. Imagine, por exemplo, um país no qual as mulheres são consideradas criaturas de segunda categoria - devem obediência ao pai e, depois de casadas, ao marido. Ficam reclusas em casa, cuidando apenas da família e do mundo doméstico, com pouca ou nenhuma chance de reação caso sejam agredidas física ou moralmente. Sua vida é determinada pelos homens com quem convivem e qualquer tentativa de mudança é vista como um erro.

Um só ou VÁRIOS RELATIVISMOS?

O filósofo britânico Robert Audi propõe, em Moral value and human diversity, uma solução para a disputa entre o objetivismo e o relativismo moral diferenciando o que chama de relativismo contextual e relativismo normativo. Um erro, explica, é considerar que as diferentes aplicações de uma regra colocam em xeque a validade dessa regra. Ao contrário, o que torna uma regra válida é a possibilidade de sua aplicação particular.

O relativismo normativo considera que não podemos falar em nenhum valor universal. Os critérios que levam o ser humano a agir são relativos às circunstâncias. Isso leva, segundo o autor, a uma impossibilidade de valores - se todas as normas éticas são válidas, nenhuma delas tem validade ou força diante das outras. Uma norma ética seria, por definição, impossível.

O que ele propõe como relativismo contextual é considerar que há valores universais, inerentes a uma natureza humana, aplicados conforme as circunstâncias. Valores universais manifestam-se na sua aplicação a situações particulares, o que não invalida a discussão ou o critério ético.

O autor usa um exemplo: em geral, sabe-se que não se deve dar tapas no rosto de uma pessoa. No entanto, se em uma emergência preciso acordar alguém que dorme sob influência de tranquilizantes, posso eventualmente usar esse recurso. O fato de, contextualmente, agredir uma pessoa, não significa que a regra "não agredir os outros" tenha sido quebrada ou invalidada, mas utilizada dentro de um contexto no qual sua aplicação ipisis literis seria mais agressiva que seu desrespeito.

Devo respeitar e compreender essa situação como fruto de uma cultura específica? Ou, em nome de algum suposto valor universal, devo me posicionar contra? Posso, em última instância, agir para derrubar o sistema político nesse país e instaurar valores de respeito mútuo e igualdade de gêneros - mas, ao fazer isso, não estou igualmente desrespeitando os valores do país? Não há uma resposta única, porque nos dois casos há vários problemas implicados.

MAIS DO QUE A UNIDADE DE UMA POSSÍVEL "NATUREZA HUMANA", ENTENDER A HUMANIDADE É CELEBRAR A DIVERSIDADE E AS DIFERENÇAS

Um improvável encontro entre um "eu" de hoje e seu "eu" de dez anos atrás revelaria o quão diferente, em pensamentos e valores, o ser humano se torna ao longo do tempo

Se considero que existem valores universais e julgo conhecê-los, então posso em algum momento me considerar no direito de impor aos outros esses valores. Isso significa passar por cima das diferenças culturais e impor um critério único de ação - não estaria, nesse caso, fazendo de "natureza humana" um dogma em nome do qual se pode eliminar o diferente? Afinal, trata-se de agir em nome de valores universais.

Por outro lado, se considero que os valores de cada cultura são absolutamente soberanos dentro de cada cultura, então quaisquer interferências externas seriam um desrespeito. O respeito pela "humanidade" começa pelo respeito às diferenças. No entanto, isso não abriria espaço para justificar qualquer coisa - a violência contra a mulher, por exemplo, ou mesmo um genocídio? Afinal, são práticas culturais de cada povo.

A questão, nesse sentido, é observar e questionar diariamente os limites da noção de pessoa. O desafio da convivência é atribuir ao outro o mesmo status de "pessoa" que se dá a si mesmo.

REFERÊNCIAS

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BLACKBURN, S. Ethics - A very short introduction. Oxford, OUP, 2008.

CHAPPEL, T. Ethics and Experience. Durham: Accumen, 2009.

HUNT, L. A invenção dos direitos humanos. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

LUKES, S. Moral relativism. Londres: Profile, 2008.

MORIN, E. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

MORIN, E. O paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, s.d.

NUTTAL, J. Moral questions. Londres: Polity, 2003.

SALECL, R. Choice. Londres: Profile, 2009.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Ed. Unesp, 2006.

Local original do artigo: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/55/artigo209051-1.asp [link indisponível]