Platão - Teeteto
Versão eletrônica do diálogo platônico “Teeteto”
Tradução: Carlos Alberto Nunes
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
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TEETETO
I — Euclides — Voltaste há pouco do campo, Terpsião, ou já faz tempo?
Terpsião - Faz bastante tempo; procurei-te na praça do mercado e estranhei não encontrarte.
Euclides — É que não me achava na cidade.
Terpsião — Por onde andavas?
Euclides — Havia baixado ao porto, quando encontrei Teeteto, que transportavam do acampamento de Corinto para Atenas.
Terpsião — Morto ou vivo?
Euclides — Vivo, porém muito mal; ressente-se bastante dos ferimentos recebidos. Porém o pior é ter apanhado a doença que atacou as tropas.
Terpsião — Disenteria, talvez?
Euclides — Exato.
Terpsião — Pelo que dizes, estamos na iminência de perder um homem e tanto!
Euclides — De muito merecimento, Terpsião. Agora mesmo, ouvi fazerem-lhe os maiores elogios, pelo modo por que se houve na batalha.
Terpsião — Não é de admirar. Estranho seria se ele fosse diferente. Mas, por que não ficou aqui em Mégara conosco?
Euclides — Tinha pressa de chegar a casa. Insisti com ele e o aconselhei muito; porém não se deixou convencer. Por isso, o acompanhei: e, ao retornar, lembrei-me, com admiração, de como Sócrates foi bom profeta a respeito de muita coisa e também de Teeteto. Se mal não me lembro, pouco antes de morrer ele encontrou Teeteto, que ainda era adolescente.
Ambos a se conhecerem, e logo a conversar, tendo ficado Sócrates encantado com a natureza do rapaz. Quando estive em Atenas, Sócrates me falou pormenorizadamente na conversa que então mantiveram, muito digna de ouvir, tendo acrescentado que se ele chegasse a ser homem, fatalmente se tornaria célebre.
Terpsião — Só falou a verdade, como parece. E a respeito de quê conversaram, poderias dizer-me?
Euclides — Não, por Zeus! Assim, de improviso, não me seria possível. Porém logo que cheguei a casa, tomei alguns apontamentos sobre o que mais me impressionara, havendo posteriormente redigido mais de estudo o que me acudia à memória. Além do mais, sempre que ia a Atenas, interrogava Sócrates acerca do que não me recordava com minúcias e, de regresso, corrigia meu trabalho. Foi assim que, praticamente, consegui reproduzir todo o diálogo.
Terpsião — É verdade; já te ouvira falar nisso, e sempre tinha intenção de pedir que mo mostrasses, o que vinha diferindo até hoje. Mas, que nos impede de o lermos agora mesmo?
Tanto mais, que preciso descansar, pois acabo de chegar do campo.
Euclides — Eu, também, acompanhei Teeteto até Erínio; por isso, uma pausa, agora, não seria nada mal. Vamos entrar; enquanto repousamos, meu escravo nos fará essa leitura.
Terpsião — Ótima idéia.
Euclides — Aqui tens, Terpsião, o livro. Porém redigi de tal modo o diálogo, que em vez de Sócrates me relatar o ocorrido, como o fez, entretém-se com os que ele próprio declarou terem tomado parte na conversação. Referia-se ao geômetra Teodoro e a Teeteto. Para não sobrecarregar o escrito com tantas fórmulas intercaladas no discurso, sempre que Sócrates fala: Digo, ou Afirmo, ou, com referência aos interlocutores: Concordou, Não concordou, dei ao trabalho feição de um diálogo direto entre ele e os dois opositores, com exclusão de tudo aquilo.
Terpsião — Foi uma excelente idéia, Euclides.
II — Sócrates — Se eu me interessasse, Teodoro, particularmente pelas coisas de Cirene, não deixaria de interrogar-te sobre seus homens e o que acontece por lá, como, por exemplo, se entre os jovens há quem se dedique ao estudo da geometria ou a outros ramos do saber. Porém como me preocupo menos com eles do que com os de casa tenho muito mais curiosidade de saber quais dos nossos adolescentes revelam maior probabilidade de distinguir-se. É do que sempre procuro informar-me com o maior empenho, e para isso interrogo as pessoas cuja companhia eles freqüentam. Ora, és tu quem reúne à tua volta o maior número de rapazes, e com razão, não só pelo merecimento próprio como pela atração da geometria. Por isso, caso tenhas encontrado algum jovem digno de menção, com muito prazer ouvirei o que disseres.
Teodoro — Efetivamente, Sócrates, vale tanto a pena eu falar como ouvires a respeito de um adolescente que descobri entre vossos concidadãos. Se se tratasse de um belo rapaz, teria medo de manifestar-me, para não pensarem que eu o fazia como apaixonado. Porém a verdade — sem querer ofender-te — é que ele não é nada belo; parece-se contigo em ter o nariz chato e os olhos saltados, aliás em grau menos acentuado. Por isso, falo sem o menor constrangimento. Sabe, pois, que no meio de tantos jovens que até agora conheci — e não têm conta os com que já tenho conversado — não encontrei nenhum com tão maravilhosa natureza. A facilidade de aprender como apenas se encontraria em mais alguém, uma docilidade única, associada a singular valentia são qualidades que nunca imaginei pudessem existir ou que ainda venhamos a encontrar. De fato, os que são dotados de igual vivacidade, entendimento rápido, boa memória, de regra são sujeitos a acessos de cólera e se deixam levar à matroca, como navio sem lastro, sobre se revelarem mais impulsivos do que realmente corajosos. Os mais ponderados são algum tanto preguiçosos e sumamente esquecidos. Este, pelo contrário, avança com naturalidade e segurança na senda do saber e da pesquisa, com doçura igual ao do óleo que escorre sem bulha, que admira com tão poucos anos já tenha feito o que fez.
Sócrates — Ótima notícia! Mas de qual dos nossos concidadãos ele é filho?
Teodoro — Já lhe ouvi o nome, porém não me ocorre neste momento. Mas ali vem ele, no meio daquele grupo que se aproxima. Agora mesmo, na galeria externa, ele e seus amigos acabaram de passar óleo no corpo. Concluída essa parte, tenho a impressão de que vêm para cá. Vê se o conheces Sócrates — Conheço; é filho de Eufrônio, de Símio, um homem, meu caro, exatamente como disseste ser o filho, de reputação excelente e que, ademais, deixou um patrimônio considerável. Porém não sei como o filho se chama.
Teodoro — Chama-se Teeteto, Sócrates. Quanto ao patrimônio, tenho idéia de que os tutores se incumbiram de gastar, o que não o impede, aliás, de ser de uma liberalidade incrível em matéria de dinheiro.
Sócrates — Pelo que dizes, é pessoa de caráter. Convida-o para vir sentar-se ao nosso lado.
Teodoro — Agora mesmo. Teeteto, vem para perto de Sócrates!
Sócrates — Isso mesmo, Teeteto, para que eu próprio me contemple e veja como tenho o rosto. Diz Teodoro que é parecido com o teu. Porém, se cada um de nós tivesse uma lira e ele declarasse que ambas estavam com igual afinação, dar-lhe-íamos crédito de imediato, ou primeiro procuraríamos certificar-nos se ele entende de música, para falar com autoridade?
Teeteto — Sim, primeiro nos certificaríamos disso.
Sócrates — E uma vez confirmada sua competência, aceitaríamos de pronto o que dissesse; em caso contrário, não.
Teeteto — Isso mesmo.
Sócrates — E agora, segundo penso, se nos interessa de algum modo tal parecença, precisaremos decidir se ele entende de pintura e, consequentemente, se pode opinar nessa matéria.
Teeteto — É também o que eu penso.
Sócrates — Porventura Teodoro é pintor?
Teeteto — Que eu saiba, não.
Sócrates — Nem entende de geometria?
Teeteto — Entende, e muito, Sócrates.
Sócrates — Entenderá, também, de astronomia, cálculo, música e o mais que se refere à educação?
Teeteto — Acho que sim.
Sócrates — Logo, quando ele disse que fisicamente nós temos um quê de parecença, ou seja isso à guisa de reparo ou como elogio, não devemos atribuir maior importância a suas palavras.
Teeteto — Talvez não.
Sócrates — Porém suponhamos que fosse a alma de um de nós que ele elogiasse para o outro, no que respeita à virtude ou à sabedoria: não seria justo que o ouvinte se apressasse a examinar o elogiado, e este, por sua vez, se prontificasse a exibir-se?
Teeteto — Perfeitamente, Sócrates.
III — Sócrates — Pois então, amigo Teeteto, chegou a hora de te exibires e eu de examinar-te. Convém saberes que Teodoro já me fez o elogio de muita gente, assim estrangeiros como Atenienses, porém nunca em termos tão calorosos como agora mesmo a teu respeito.
Teeteto — É desvanecedor, Sócrates, se não se tratar de alguma brincadeira.
Sócrates — Não é do feitio de Teodoro. Porém não quebres teu compromisso, sob o pretexto de que ele quis pilheriar, para não o obrigarmos a depor. Bem sabes que ninguém o recusaria como testemunha. Reveste-te de confiança e não desfaças tua promessa.
Teeteto — É como terei de proceder, se pensas desse modo.
Sócrates — Dize-me o seguinte: não é verdade que estudas geometria com Teodoro?
Teeteto — É.
Sócrates — E também astronomia e harmonia e cálculo?
Teeteto — Pelo menos, esforço-me nesse sentido.
Sócrates — Eu também, jovem; com ele e com quem mais eu considere competente nesses assuntos. Não obstante, dado que eu apanhe regularmente bem semelhantes questões, há um ponto insignificante que eu desejaria examinar contigo e estes aqui. Dize-me o seguinte:
aprender não significa tornar-se sábio a respeito do que se aprende?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Logo, é pela sabedoria, segundo penso, que os sábios ficam sábios.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — E isso difere em alguma coisa do conhecimento?
Teeteto — Isso, quê?
Sócrates — Sabedoria. Não se é sábio naquilo que se conhece?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Então, é a mesma coisa conhecimento e sabedoria?
Teeteto — Sim.
Sócrates — Eis o que me suscita dúvidas, sem nunca eu chegar a uma conclusão satisfatória: o que seja, propriamente, conhecimento. Será que poderíamos defini-lo? Como vos parece? Qual de nós falará primeiro?
Quem errar ou atrapalhar-se, como burro irá assentar-se, à maneira do que dizem as crianças no jogo de bola; quem não cometer nenhum erro, será rei e ficará com o direito de apresentar-nos as perguntas que entender. Por que não respondeis? Espero, Teodoro, que o meu amor às discussões não me torne importuno, pelo desejo de estabelecer entre nós um diálogo capaz de deixar-nos íntimos e apertar mais os laços de amizade.
Teodoro — De nenhum jeito, Sócrates, chegarás a ser importuno. Porém pede a um destes meninos que te responda, pois não estou habituado a esse tipo de conversação e já passei da idade de aprender. Tudo isso fica bem para eles, que só terão a lucrar; quando se é moço, tudo é fácil. Porém, uma vez que já começaste, não largues Teeteto, interroga-o.
Sócrates — Ouvistes, Teeteto, o que disse Teodoro? Creio que não pensas em desobedecer-lhe, além de não ficar bem a um jovem, em assuntos dessa natureza, não acatar as prescrições de um sábio. Cria coragem, pois, e responde à minha pergunta: No teu modo de pensar, que é conhecimento?
Teeteto — Terei de obedecer, Sócrates, uma vez que o ordenais. De qualquer forma, se eu cometer algum erro, vós ambos me corrigireis.
IV — Sócrates — Perfeitamente; no que for possível.
Teeteto — Então, a meu parecer, tudo o que se aprende com Teodoro é conhecimento, geometria e as disciplinas que enumeraste há pouco, como também a arte dos sapateiros e a dos demais artesãos: todas elas e cada uma em particular nada mais são do que conhecimento.
Sócrates — És muito generoso, amigo, e extremamente liberal; pedem-te um, e dás um bando; em vez de algo simples, tamanha variedade.
Teeteto — Que queres dizer com isso?
Sócrates — Talvez nada; porém vou explicar-te o que penso. Quando te referes à arte do sapateiro, tens em mira apenas o conhecimento de confeccionar sapatos, não é verdade?
Teeteto — Exato.
Sócrates — E a marcenaria, será outra coisa além do conhecimento da fabricação de móveis de madeira?
Teeteto — Não.
Sócrates — E em ambos os casos, o que defines não é o objeto do conhecimento de cada um?
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Mas o que te perguntei, Teeteto, não foi isso: do que é que há conhecimento, nem quantos conhecimentos particulares pode haver; minha pergunta não visava a enumerá-los um por um; o que desejo saber é o que seja o conhecimento em si mesmo. Será que não me exprimo bem?
Teeteto — Ao contrário; exprimes-te com muita precisão.
Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém nos perguntasse a respeito de alguma coisa vulgar e corriqueira, por exemplo: o que é lama, e lhe respondêssemos que há a lama dos oleiros, a dos construtores de fornos e a dos tijoleiros, não nos tornaríamos ridículos?
Teeteto — É provável.
Sócrates — Para começar, por imaginarmos que nosso interlocutor compreende o que dizemos quando falamos em lama, muito embora acrescentemos que se trata da lama de fabricantes de bonecas ou a de qualquer outro artesão. Ou achas que alguém entenderá o nome de alguma coisa, se desconhece sua natureza?
Teeteto — De forma alguma.
Sócrates — Não compreenderá, pois, o conhecimento do sapateiro quem não souber o que seja conhecimento.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — Logo, não compreenderá a arte do sapateiro nem qualquer outra arte, quem não souber o que seja conhecimento.
Teeteto — Exato.
Sócrates — É, por conseguinte, ridícula a resposta de quem é perguntado o que seja conhecimento, sempre que acrescenta o nome de determinada arte. Falou em conhecimento de alguma coisa; porém não foi isso que lhe perguntaram.
Teeteto — Realmente.
Sócrates — Em segundo lugar, embora pudesse dar uma resposta simples e curta, fez um rodeio de nunca mais acabar. Assim, quando perguntado a respeito de lama, poderia ter respondido de maneira trivial e simples, que lama é terra molhada, sem dar-se ao trabalho de dizer quem a emprega.
V — Teeteto — Agora, Sócrates, ficou muito fácil a questão. Quer parecer-me que é igualzinha à que nos ocorreu recentemente, numa discussão entre mim e este teu homônimo.
Sócrates — Qual foi a questão, Teeteto?
Teeteto — A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, mostrou que a de três pés e a de cinco, como comprimento não são comensuráveis com a de um pé. E assim foi estudando uma após outra, até a de dezessete pés. Não sei por que parou aí. Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, tentar reuni-las numa única, que serviria para designar todas.
Sócrates — E encontrastes o que procuráveis?
Teeteto — Acho que sim; examina tu mesmo.
Sócrates — Podes falar.
Teeteto - Dividimos os números em duas classes: os que podem ser formados pela multiplicação de fatores iguais, representamo-los pela figura de um quadrado e os designamos pelos nomes de quadrado e de equilátero
Sócrates — Muito bem.
Teeteto — Os que ficam entre esses, o três, por exemplo, e o cinco, e todos os que não se formam pela multiplicação de fatores iguais, mas da multiplicação de um número maior por um menor, ou o inverso: a de um menor por um maior, e que sempre são contidos em uma figura com um lado maior do que o outro, representamo-los sob a figura de um retângulo e os denominamos números retangulares.
Sócrates — Ótimo. E depois?
Teeteto — Todas as linhas que formam um quadrado de número plano eqüilátero definimos como longitude, e as de quadrado de fatores desiguais, potências ou raízes, por não serem comensuráveis com as outras pelo comprimento, mas apenas pelas superfícies que venham a formar. Com os sólidos procedemos do mesmo modo.
Sócrates — Melhor não fora possível, meninos. Acho que Teodoro não pode ser acoimado de falso testemunho.
Teeteto — No entanto, Sócrates, a questão por ti apresentada a respeito do conhecimento, não saberei resolvê-la como fiz com a da raiz e do comprimento, conquanto pense que seja mais ou menos isso o que procuras. Do que se colhe que, mais uma vez, Teodoro não falou a verdade.
Sócrates — Como? Se ele te houvesse elogiado por correres bem, afirmando nunca ter encontrado entre os moços quem te vencesse na carreira e, depois, nalguma competição fosses vencido por um homem feito e de pés velozes achas que seu juízo teria sido menos verdadeiro?
Teeteto — Não, decerto.
Sócrates — E agora, parece-te que descobrir o conhecimento tal como o apresentei há pouco, seja tarefa secundária e não um tema da mais alta responsabilidade?
Teeteto — Não, por Zeus; é dos mais difíceis.
Sócrates — Sendo assim, readquire a confiança em ti próprio e não desfaças no testemunho de Teodoro, esforçando-te quanto puderes para encontrar a explicação das coisas, principalmente do que venha a ser conhecimento.
Teeteto — Quanto a esforçar-me, Sócrates, podes ficar tranqüilo.
VI — Sócrates — Então, vamos. E já que indicaste o caminho, toma como modelo o que tu mesmo disseste a respeito das potências, e assim como reduziste a uma única forma aquela multiplicidade, designa agora por um só termo todos esses conhecimentos.
Teeteto — Convém saberes, Sócrates, que já por várias vezes procurei resolver essa questão, por ter ouvido falar no que costumas perguntar sobre isso. Porém não posso convencer-me de que cheguei a uma conclusão satisfatória, como nunca ouvi de ninguém uma explicação como desejas. Apesar de tudo, não consigo afastar da idéia essa questão.
Sócrates — São dores de parto, meu caro Teeteto. Não estás vazio; algo em tua alma deseja vir à luz.
Teeteto — Isso não sei, Sócrates; só disse o que sinto.
Sócrates — E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou filho de uma parteira famosa e imponente, Fanerete?
Teeteto — Sim, já ouvi.
Sócrates — Então, já te contaram também que eu exerço essa mesma arte?
Teeteto — Isso, nunca.
Sócrates — Pois fica sabendo que é verdade; porém não me traias; ninguém sabe que eu conheço semelhante arte, e por não o saberem, em suas referências à minha pessoa não aludem a esse ponto; dizem apenas que eu sou o homem mais esquisito, do mundo e que lanço confusão no espírito dos outros. A esse respeito já ouviste dizerem alguma coisa?
Teeteto — Ouvi.
Sócrates — Queres que te aponte a razão disso?
Teeteto — Por que não?
Sócrates — Basta refletires no que se passa com as parteiras, para apanhares facilmente o que desejo assinalar. Como muito bem sabes, não servem para exercer o ofício de parteira as mulheres que ainda concebem e dão à luz, mas apenas as que se tornaram incapazes de procriar.
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Dizem que a causadora disso é Ártemis: por nunca haver dado à luz, recebeu a missão de presidir aos partos. As estéreis de todo, ela não concede a faculdade de partejar, por ser fraca em demasia a natureza humana para adquirir uma arte de que não tenha experiência. As que já passaram de idade foi que ela concedeu esse dom, para honrar nelas sua imagem.
Teeteto — Compreende-se.
Sócrates — E não é também compreensível e até mesmo necessário, que as parteiras conheçam melhor do que as outras quando uma mulher está grávida?
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Sim, por meio de drogas e encantamentos, elas conseguem aumentar as dores ou acalmá-las, como queiram, levar a bom termo partos difíceis ou expulsar o produto da concepção quando ainda não se acha muito desenvolvido.
Teeteto — Isso mesmo.
Sócrates — E não observastes, outrossim, que são casamenteiras muito hábeis, por conhecerem a fundo qual é a mulher mais indicada para este ou aquele varão, porque possam ter filhos perfeitos?
Teeteto — Disso nunca ouvi falar.
Sócrates — Pois fica sabendo que elas se envaidecem mais desse conhecimento do que de saber cortar o cordão. Basta refletires És de parecer que compete à mesma arte cultivar e colher os frutos e também conhecer que planta ou semente irá melhor neste ou naquele terreno? Ou será diferente?
Teeteto — Não; é a mesma.
Sócrates— E para a mulher amigo, és de opinião que uma arte ensinará isso, e outra a colher os frutos?
Teeteto — É pouco provável.
Sócrates — Não; o certo seria dizer: nada provável. Mas por causa do comércio desonesto e sem arte de acasalar varão com mulher, denominado lenocínio, abstêm-se da atividade de casamenteiras as parteiras sensatas, de medo de no exercício de sua arte incorrerem na suspeita de exercerem aquelas práticas. Nada obstante, só às verdadeiras parteiras é que compete promover as uniões acertadas.
Teeteto — Parece.
Sócrates — Eis aí a função das parteiras; muito inferior à minha, Em verdade, não acontece às mulheres parirem algumas vezes falsos filhos e outras vezes verdadeiros, de difícil distinção. Se fosse o caso, o mais importante e belo trabalho das parteiras consistiria em decidir entre o verdadeiro e o falso, não te parece?
Teeteto — Sem dúvida.
VII — Sócrates — A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou
igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de
conceber. Por isso mesmo, não sou sábio não havendo um só pensamento que eu possa apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz. Porém os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo pareçam de todo ignorantes, com a continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem
admiravelmente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira. E a prova é o e seguinte: Muitos desconhecedores desse fato e que tudo atribuem a si próprios, ou por me desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se de mim cedo demais. O resultado é alguns expelirem antes do tempo, em virtude das más companhias, os germes por mim semeados, e estragarem outros, por falta da alimentação adequada, os que eu ajudara a pôr no mundo, por darem mais importância aos produtos falsos e enganosos do que aos verdadeiros, com o que acabam por parecerem ignorantes aos seus próprios olhos e aos de estranhos. Foi o que aconteceu com Aristides, filho de Lisímaco, e a outros mais. Quando voltam a implorar instantemente minha companhia, com demonstrações de arrependimento,
nalguns casos meu demônio familiar me proíbe reatar relações; noutros o permite, voltando estes, então, a progredir como antes. Neste ponto, os que convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é que minha arte sabe despertar ou acalmar.
É o que se dá com todos. Todavia, Teeteto, os que não me parecem fecundos, quando eu chego à conclusão de que não necessitam de mim, com a maior boa vontade assumo o papel de casamenteiro e, graças a Deus, sempre os tenho aproximado de quem lhes possa ser de mais utilidade. Muitos desses já encaminhei para Pródico, e outros mais para varões sábios e inspirados. Se te expus tudo isso, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi por
suspeitar que algo em tua alma está no ponto de vir à luz, como tu mesmo desconfias.
Entrega-te, pois, a mim, como o filho de uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular alguma questão, procura responder a ela do melhor modo possível. E se no exame de alguma coisa que disseres, depois de eu verificar que não se trata de um produto legítimo mas de algum fantasma sem consistência, que logo arrancarei e jogarei fora, não te aborreças como o fazem as mulheres com seu primeiro filho. Alguns, meu caro, a tal extremo se zangaram comigo, que chegaram a morder-me por os haver livrado de um que outro pensamento extravagante. Não compreendiam que eu só fazia aquilo por bondade.
Estão longe de admitir que de jeito nenhum os deuses podem querer mal aos homens e que eu, do meu lado, nada faço por malquerença pois não me É permitido em absoluto pactuar com a mentira nem ocultar a verdade.
VIII — Volta, pois, para o começo, Teeteto, e procura explicar o que é conhecimento. Não me digas que não podes; querendo Deus e dando-te coragem, poderás.
Teeteto — Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazes, fora vergonhoso não esforçarme para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que conhecimento não é mais do que sensação.
Sócrates — Bela e corajosa resposta, menino. É assim que devemos externar o pensamento. Porém examinemos juntos se se trata, realmente, de um feto viável ou de simples aparência. Conhecimento, disseste, é sensação?
Teeteto — Sim.
Sócrates — Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a definição de Protágoras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não existem.
Decerto já leste isso?
Teeteto — Sim, mais de uma vez.
Sócrates — Não quererá ele, então, dizer que as coisas são para mim conforme me aparecem, como serão para ti segundo te aparecerem? Pois eu e tu somos homens.
Teeteto — É isso, precisamente, o que ele diz
Sócrates — Ora, é de presumir que um sábio não fale aereamente. Acompanhemo-lo, pois. Por vezes não acontece, sob a ação do mesmo vento, um de nós sentir frio e o outro não? Um ao de leve, e o outro intensamente?
Teeteto — Exato.
Sócrates — Nesse caso, como diremos que seja o vento em si mesmo: frio ou não frio? Ou teremos de admitir com Protágoras que ele é frio para o que sentiu arrepios e não o é para o outro?
Teeteto — Parece que sim.
Sócrates — Não é dessa maneira que ele aparece a um e a outro?
Teeteto — É.
Sócrates — Ora, este aparecer não é o mesmo que ser percebido?
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Logo, aparência e sensação se eqüivalem com relação ao calor e às coisas do mesmo gênero; tal como cada um as sente, é como elas talvez sejam para essa pessoa.
Teeteto — Talvez.
Sócrates — A sensação é sempre sensação do que existe, não podendo, pois, ser ilusória, visto ser conhecimento.
Teeteto — Parece que sim.
Sócrates — Então, em nome das Graças, não teria Protágoras, esse poço de sabedoria, falado por enigmas para a multidão sem número, na qual nos incluímos, porém dito em segredo a verdade para seus discípulos?
Teeteto — Que queres dizer com isso, Sócrates?
Sócrates — Vou explicar-me, e não será argumento sem valor, a saber: que nenhuma coisa é una em si mesma e que não há o que possas denominar com acerto ou dizer como é constituída. Se a qualificares como grande, ela parecerá também pequena; se pesada, leve, e assim em tudo o mais, de forma que nada é uno, ou algo determinado ou como quer que seja. Da translação das coisas, do movimento e da mistura de umas com as outras é que se forma tudo o que dizemos existir, sem usarmos a expressão correta, pois a rigor nada é ou existe, tudo devém. Sobre isso, com exceção de Parmênides, todos os sábios, por ordem cronológica, estão de acordo: Protágoras, Heráclito e Empédocles, e, entre os poetas, os pontos mais altos dos dois gêneros de poesia: Epicarmo na comédia e Homero na tragédia.
Quando este se refere ao pai de todos os deuses eternos, o Oceano e a mãe Tétis, dá a entender que todas as coisas se originam do fluxo e do movimento. Não achas que é isso mesmo o que ele quer dizer?
Teeteto — É também o que eu penso.
IX — Sócrates — E quem se atreveria a lutar contra um exército tão forte e um general como Homero, sem cair no ridículo?
Teeteto — Não fora fácil, Sócrates.
Sócrates — Realmente, Teeteto; tanto mais que há outras provas, como reforço para o argumento de que o movimento é a causa de tudo o que devém e parece existir, e o repouso a do não-ser e da destruição. De fato, o calor e o fogo que geram e coordenam todas as coisas, são gerados, por sua vez, pela translação e pela fricção, que também consistem em movimento. Não é essa a origem do fogo?
Teeteto — Justamente.
Sócrates — De resto, daí, também, procede a geração dos seres vivos.
Teeteto — Como não?
Sócrates — E agora? A constituição do corpo não se deteriora com o repouso e a preguiça e não se conserva admiravelmente bem com a ginástica e o movimento?
Teeteto — Certo.
Sócrates — E o que se passa com a alma? Não é pelo estudo e o exercício, que também são
movimento, que ela adquire conhecimentos, conserva-os e se torna melhor, ao passo que
com o repouso, a ouso, a saber, por falta de exercício e aplicação, ou nada aprende ou
esquece o que aprendeu.
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Donde se colhe que um é bom para o corpo, e o outro, o contrário disso.
Teeteto — Parece.
Sócrates — Lembrarei, ainda, as calmas e as bonanças e outros estados parecidos, para
mostrar que o repouso estraga e destrói, e o seu contrário conserva. Para arrematar, a última
pedra te obrigará a confessar que por Cadeia áurea Homero outra coisa não entende senão o
próprio sol, querendo significar com isso que enquanto a esfera celeste e o sol se movem,
tudo existe e se conserva, tanto entre os deuses como entre os homens, e que se chegassem
a imobilizar-se como que acorrentados, tudo se estragaria, vindo a ficar, como se diz, de
pernas para cima.
Teeteto — Quer parecer-me, Sócrates, que interpretaste muito bem o seu pensamento.
X — Sócrates — Considera o assunto, meu caro, do seguinte modo: inicialmente, com
relação à vista, o que denominas cor branca não é algo com existência própria, nem fora de
teus olhos nem dentro de teus olhos, nem em qualquer outro local que lhe assinalares, pois
se assim fosse, ela existiria num determinado lugar, em caráter estável, deixando, por
conseguinte, de formar-se.
Teeteto — De que jeito?
Sócrates — Acompanhemos o argumento apresentado há pouco, de que nada podemos
admitir como existente em si mesmo. Desse modo, se tornará evidente que o branco e o
preto e as demais cores resultam do encontro dos olhos com o movimento particular de
cada uma e que a cor designada por nós como existente não é nem o que atinge o sentiente
nem o que é atingido, porém algo intermediário e peculiar a cada indivíduo. Ou poderás
afirmar que cada cor aparece para ti exatamente como o faz para um cão ou para qualquer
outro animal?
Teeteto — Não, por Zeus!
Sócrates — E então? Ou que para qualquer pessoa as coisas apareçam exatamente como
para ti? Estás convencido disso, ou será mais certo dizer que elas nunca te aparecem do
mesmo modo, pelo fato de nunca permaneceres igual a ti mesmo?
Teeteto - — Esta última assertiva se me afigura mais correta do que a primeira.
Sócrates — Logo, se aquilo com que medimos ou o que tocamos fosse grande, branco ou
quente, nunca se mudaria ao entrar em contacto com outra coisa, se não sofresse também
alguma alteração. Por outro lado, se o que se mede ou se toca fosse como admitimos,
jamais, também, se alteraria à aproximação ou sob a influência de outra coisa, se não
viesse, igualmente, a modificar-se. Daí, amigo, termos sido levados a afirmar coisas
estranhas e ridículas, como o faria Protágoras e os mais adeptos de sua doutrina.
Teeteto — Corno assim? A que te referes?
Sócrates — Tomemos um pequeno exemplo, a fim de compreenderes todo o meu
pensamento. Aqui temos seis ossinhos de jogar; se ao seu lado pusermos mais quatro,
diremos que esses seis são mais de quatro, por ultrapassá-los de metade; mas se pusermos
doze, então serão menos, a saber, a metade, justamente. Não se pode empregar outra
linguagem. Ou achas que pode?
Teeteto — De jeito nenhum.
Sócrates — Ora bem; se Protágoras ou outro qualquer te perguntasse: possível, Teeteto,
tornar-se maior ou mais numerosa alguma coisa sem vir a ser aumentada? Como
responderias a ele?
Teeteto — Se eu tivesse, Sócrates, de dizer o que penso, tomando apenas essa pergunta em
consideração, responderia que não é possível.
Sócrates — Muito bem, amigo, por Hera! divinamente respondido. Porém acho que se
tivesses dito que sim, confirmarias aquilo de Eurípides:
Nossa língua fica a salvo de censura, não o espírito.
Teeteto — É muito certo.
Sócrates — Em conseqüência, se fôssemos hábeis e sábios, eu e tu, e já tivéssemos
investigado a fundo o que se relaciona com o espírito, daqui por diante, por passatempo,
experimentaríamos reciprocamente as forças, à maneira dos sofistas, num embate em que
faríamos tinir argumento contra argumento. Porém como simples particulares procuremos,
antes de mais nada, considerar diretamente o que vêm a ser os temas em estudo, se estão
harmônicos ou em completo desacordo.
Teeteto — Com sinceridade, é o que desejo.
XI — Sócrates — Eu também. Mas, nesse caso, já que temos tempo de sobra, por que não
recomeçarmos nossa análise com toda a calma, sem nenhuma irritação, examinando-nos de
verdade, para vermos o que, de fato, sejam essas visões que se formam dentro de nós?
Passando a considerá-las, diremos, logo de início, segundo penso, que jamais alguma coisa
ficou maior, seja em volume seja em quantidade, enquanto se manteve igual a Si mesma.
Não é verdade?
Teeteto — Exato.
Sócrates — Em segundo lugar, uma coisa a que nada se acrescente e de que nada se tire,
não aumentará nem desaparecerá, porém continuará sempre igual.
Teeteto — Incontestavelmente.
Sócrates — E não poderemos apresentar mais um postulado, seria o terceiro, nos seguintes
termos: que não existia antes, não poderia ter existido sem formar-se ou ter sido formado?
Teeteto — É também o que eu penso.
Sócrates — Eis-aí, por conseguinte, três proposições aceitas por nós, que contendem em
nossa alma, seja quando falamos de ossinhos de jogar seja quando imaginamos um caso
como o seguinte: com a idade que tenho, sem crescer coisa alguma nem sofrer modificação
contrária, no decurso de um ano, em relação a ti que és mais moço, presentemente sou
maior, porém depois virei a ficar menor, e isso sem que minha altura diminua, mas pelo
fato de aumentar a tua. Sou, portanto, posteriormente, sem me ter modificado, o que antes
não era. Sem o devir, nada vem a ser, e nada havendo eu perdido do meu volume, não
poderia ter ficado menor, O mesmo se passa em milhares de casos como esse, se aceitarmos
os presentes argumentos. Sei que me acompanhas, Teeteto. Pelo menos tenho a impressão
de que não és neófito nessas questões.
Teeteto — Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e
só de considerá-lo, chego a ter vertigens.
Sócrates — Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a
admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia. Ao
que parece, não foi mau genealogista quem disse que Íris era filha de Taumante. Porém já
começaste a perceber a relação entre tudo isso e a proposição que atribuímos a Protágoras?
Ou não?
Teeteto — Acho que não.
Sócrates — E não me ficarás agradecido, se te ajudar a patentear o sentido oculto do
pensamento e de um homem famoso, ou melhor, de vários homens famosos?
Teeteto — Como não ficar? Muitíssimo, até.
XII — Sócrates — Então, revista os arredores; não seja o caso de escutar-nos alguém não
iniciado. Refiro-me aos que só acreditam na existência daquilo que eles são capazes de
segurar com as duas mãos, porém não admitem que participem da realidade nem as ações
nem as gerações e tudo o mais que não se vê.
Teeteto — São gente de cabeça dura, Sócrates, esses de que falas, e por demais teimosos.
Sócrates — É muito certo, menino; e também estranhos às Musas. Outros há
engenhosíssimos, cujos segredos pretendo revelar-te. Para esses, o principio de que pende
tudo o que acabamos de expor é que só há movimento e que, fora disso, nada existe,
havendo duas espécies de movimento, ambas de número infinito: uma de força ativa e outra
de força passiva. Da união de ambas e da fricção recíproca nasce prole de número infinito
porém sempre aos pares: um dos termos é objeto da sensação; o outro, a própria sensação.
Damos as sensações vários nomes, tais como: visões, audições, olfações, frio e quente, e
também prazeres, dores, desejos, temor e muitos outros. Infinitas são as anônimas;
numerosíssimas as que têm nome. Por sua vez, o gênero dos sensíveis tem cognatos
correspondentes a cada uma dessas sensações: para as inúmeras visões, cores de perder a
conta; para as audições, os sons em igual variedade, e para as outras sensações, outros
tantos objetos sensíveis, que lhes são aparentados. E agora, Teeteto, que sentido terá para
nós semelhante mito, com relação ao que dissemos há pouco?
Teeteto — Nenhum, Sócrates.
Sócrates — Então, vê se o acompanhamos até o fim. O que ele pretende explicar é que tudo
isso, conforme dissemos, se movimenta, havendo lentidão ou rapidez nessa movimentação.
Quando o movimento é lento, faz-se sentir no mesmo lugar e nos objetos próximos, sendo
essa a sua maneira de gerar. Os produtos assim gerados são mais rápidos, por se
deslocarem, vindo a ser seu movimento natural essa mudança de posição. Depois que o
olho e qualquer objeto que lhe seja apropriado geram pela aproximação recíproca a
brancura e a sensação correspondente, que jamais teriam sido produzidas se um ou outro
daqueles elementos tivesse tomado direção diferente, então, enquanto se movem no espaço
intermediário a visão proveniente do olho e a brancura do objeto que, de combinação com
aqueles, deu nascimento à cor, o olho se enche de visão e passa a ver, sem, com isso,
tornar-se visão, porém olho que vê. Por outro lado, seu associado na produção da cor
enche-se de brancura, sem, com isso, ficar brancura, porém branco, ou se trate de madeira
branca, ou de pedra ou do que for, cuja superfície venha a adquirir essa coloração. E assim
com tudo o mais. O duro e o quente e as demais qualidades devem ser concebidas de igual
maneira; em si e por si mesmas, conforme dissemos há pouco, nada são; de sua
aproximação recíproca é que as coisas nascem de toda espécie de movimento, pois nem o
elemento ativo nem o passivo, como dissemos, podem ser concebidos como unidades fixas
e independentes; porque não pode existir algo ativo sem a prévia união com o elemento
passivo, e o inverso: nada passivo sem o encontro com o elemento ativo. E mais: o que em
determinado caso se revelou ativo, mais adiante, noutras conexões, se tornará paciente. De
tudo isso, como dissemos no começo, se conclui que nada existe em si e por si mesmo, e
que cada coisa só devém por causa de outra, sendo preciso, pois, eliminar de toda a parte a
expressão Ser, conquanto agora, como sempre, tenhamos sido forçados, por hábito e
ignorância, a nos valermos dela. A ouvirmos os sábios, a rigor nunca deveríamos empregar
expressões como: Alguma coisa, ou Pertence a alguém ou a mim, nem Isto, nem Aquilo,
nem qualquer outra designação que fixe determinada coisa. Segundo a natureza, teremos de
dizer que as coisas devêm, formam-se, destróem-se ou se alteram. Expõe-se a ser
facilmente refutado quem quer que, no seu modo de expressar-se, assevere a estabilidade
seja do que for. É assim que será preciso falar, tanto com relação aos objetos particulares
como com os agregados de muitas unidades, conjuntos esses que designamos pelos nomes:
Homem, Pedra, Animal, ou Espécie. Agrada-te semelhante doutrina, Teeteto, e achas
prazer em degustá-la?
Teeteto — Não sei ao certo, Sócrates, pois tenho dúvidas se expões, de fato, tua maneira de
pensar ou se pretendes apenas experimentar-me.
Sócrates — Já te esqueceste, amigo, que eu não só não conheço nada disso como não
presumo conhecer? Nesses assuntos sou estéril a conta inteira. O que faço é ajudar-te no
trabalho do parto; daí, recorrer a encantamentos e oferecer ao teu paladar as opiniões dos
sábios, até que, com o meu auxílio, venha à luz tua própria opinião. Uma vez isso
conseguido, decidirei se se trata de um ovo sem gema ou de algum produto legítimo.
Anima-te, pois; não desistas e declara com independência e decisão o que pensas a respeito
do que te perguntei.
Teeteto — Podes falar.
XIII — Sócrates — Então, dize-me, uma vez mais, se aceitas que nada existe e que tudo se
acha num perpétuo devir: o bem, o belo e tudo o mais que enumeramos há pouco.
Teeteto — Depois de atentar em tua exposição, digo que esta se me afigura muito bem
fundamentada e que deve ser aceita nos termos em que a apresentaste.
Sócrates — Nesse caso, será preciso completar o estudo do que ficou por explicar. Ainda
não falamos dos sonhos, das doenças em geral e, particularmente, da loucura nem das
alterações da vista, as do ouvido e das demais sensações. Como bem sabes, a opinião
unânime é que todos esses casos concorrem para refutar a doutrina exposta agora mesmo.
visto se revelarem de todo o ponto falsas em tais casos nossas sensações, e muito longe de
serem as coisas como se nos afiguram, nada, pelo contrário, existe tal como nos aparece.
Teeteto — Só dizes a verdade, Sócrates.
Sócrates — Se é assim, meu filho, que novo argumento poderá aduzir quem diz que a
sensação é conhecimento e que o que parece a cada um de nós é para todos precisamente
como parece ser?
Teeteto — Sinto-me acanhado, Sócrates, de declarar que não sei como responder, pois há
pouco me repreendeste por eu ter dito isso mesmo. Mas, para dizer a verdade, não poderei
contestar que os loucos e os sonhadores não formam, de fato, opiniões falsas, como no caso
de se imaginarem deuses os primeiros, ou de pensarem os outros, durante o sonho, que têm
asas e que podem voar .
Sócrates — E não te ocorre, também, outra objeção no que respeita ao sono e à vigília?
Teeteto — Qual?
Sócrates — A que, a meu ver, já deves ter ouvido com freqüência, sobre o argumento
decisivo que poderias apresentar a quem perguntasse de improviso se neste momento não
estamos dormindo e se não é sonho tudo o que pensamos, ou se estamos realmente
acordados e entretidos a conversar?
Teeteto — Em verdade, Sócrates, sinto-me indeciso na escolha do argumento, pois em
ambos os estados tudo se passa exatamente do mesmo modo. Nada impede de admitir que o
que acabamos de conversar tivesse sido dito em sonhos; e quando imaginamos em sonhos
contar que sonhamos, é admirável a semelhança com o que se passa no estado de vigília.
Sócrates — Como vês, não é difícil suscitar controvérsia nesse terreno, pois é possível
duvidar até mesmo se estamos acordados ou dormindo. Além do mais, como é igual o
tempo que dedicamos ao sono e o que passamos acordados, em ambos os estados sustenta
nossa alma que são absolutamente verdadeiras as noções do momento presente, de sorte
que numa metade do tempo batemo-nos pela veracidade de determinadas noções, e na outra
metade pela de noções em todo o ponto diferentes, mas em ambos os casos com igual
convicção.
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — E outro tanto não se dá com as doenças e a loucura, se excluirmos a duração,
que não é a mesma?
Teeteto — Certo.
Sócrates — E então? A verdade será definida pela maior ou menor duração do tempo?
Teeteto — Em todos os sentidos fora ridículo.
Sócrates — E porventura dispões de algum argumento sólido para provar qual dessas duas
crenças é verdadeira?
Teeteto — Não creio.
XIV — Sócrates — Então vou contar-te o que a esse respeito poderiam dizer os que
defendem o princípio de que todas as coisas são verdadeiras para quem as representa como
tal. Recorrem, segundo penso, a uma pergunta mais ou menos nos seguintes termos:
Teeteto, o que é de todo diferente de outra coisa pode apresentar virtude igual à dessa
coisa? Porém não se trata de diferença parcial, com alguma semelhança sob determinados
aspectos, mas diferença em toda a linha.
Teeteto — Sendo assim, não é possível haver a identidade nem de virtude nem do que quer
que seja, porque diferem totalmente.
Sócrates — E não será preciso, também, admitir que essa coisa é dissemelhante?
Teeteto — Acho que sim.
Sócrates — Ora, se acontece ficar alguma coisa semelhante ou dissemelhante, seja de si
mesma seja de outra coisa, não diremos, no caso de semelhança, que ficou igual, e no de
dissemelhança, diferente?
Teeteto — Sem a menor dúvida.
Sócrates — E antes, não afirmamos ser grande, e até mesmo infinito, tanto o número dos
agentes como dos pacientes?
Teeteto — Afirmamos.
Sócrates — E que qualquer deles, unindo-se a este e depois àquele não dará nascimento ao
mesmo produto, mas a produto diferente?
Teeteto— Também.
Sócrates — Então, afirmemos isso mesmo de mim, de ti e de tudo, como, por exemplo, de
Sócrates são e de Sócrates doente. Diremos que este é igual ao outro, ou dissemelhante?
Teeteto — Referes-te a Sócrates doente, como um todo, em oposição a outro todo: Sócrates
com saúde?
Sócrates — Apanhaste muito bem a questão; isso mesmo é o que eu quis dizer.
Teeteto — Então, é dissemelhante.
Sócrates — Sendo assim, serão diferentes, pelo simples fato de serem dissemelhantes.
Teeteto — Forçosamente.
Sócrates — E dirás a mesma coisa com relação a Sócrates dormindo e em todos os estados
que há pouco enumeramos?
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — E quando, por sua própria natureza, algum agente entra em relação com
Sócrates são, atuará sobre ele de maneira diferente por que o faria sobre Sócrates doente?
Teeteto — Como não?
Sócrates — E em ambos os casos, não serão diferentes os produtos gerados entre mim,
como paciente, e o agente referido?
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — Sendo assim, quando eu bebo vinho, estando com saúde, este me parece
agradável e doce?
Teeteto — Exato.
Sócrates — É que, de acordo com o que admitimos, o agente e o paciente geraram a doçura
e a sensação, ambas em estado de movimento; a sensação, que vem do paciente, deixa a
língua percipiente, e a doçura, que vem do vinho e se movimenta em torno dele, faz que o
vinho seja e pareça doce para a língua sã.
Teeteto — A respeito de tudo isso já nos declaramos inteiramente de acordo.
Sócrates — Porém quando esse mesmo agente me encontra doente, de início, para falarmos
certo, o paciente não será o mesmo, pois aquele veio dar numa pessoa diferente.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — Logo, foram gerados outros produtos entre esse Sócrates e a absorção do
vinho: ao redor da língua, sensação de amargo para o lado do vinho, amargor que se gera e
movimenta, mas que não transforma o vinho em amargor, porém o deixa amargo, tal como
se dá comigo, que não viro sensação, porém sentiente.
Teeteto — Isso mesmo.
Sócrates — Do meu lado, nunca poderei tornar-me diferente enquanto tiver a mesma
sensação, porque a novo agente corresponde nova sensação, que modifica e deixa diferente
o percipiente, como aquele agente, de igual modo, atuando sobre outro paciente, nunca dará
nascimento ao mesmo produto nem continuará sendo o mesmo: se engendra novo produto,
em conexões diferentes, torna-se também diferente.
Teeteto — Exato.
Sócrates — Nem eu me torno tal por mim mesmo, nem ele, tampouco, sozinho, ficará
sendo o que é.
Teeteto — Não, evidentemente.
Sócrates — Porém é forçoso que eu tenha a sensação de alguma coisa, quando me torno
percipiente; o que não é possível é ser percipiente de nada. O mesmo se passa com o
agente, quando fica doce ou amargo ou coisa semelhante; ficar doce sem ser doce para
ninguém é que não é possível.
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Ainda há a possibilidade, me parece, de sermos um para o outro alguma coisa,
ele e eu, ou que venhamos a ser algo em virtude dessa correlação, ligados reciprocamente,
não a qualquer outra existência nem mesmo a nós próprios. Só resta essa relação de
reciprocidade. Por isso mesmo, se se disser que alguma coisa existe ou devém, será preciso
acrescentar que existe ou se forma de alguém ou para alguém ou com relação a alguma
coisa. Porém que alguma coisa seja ou se torne por si mesmo, é o que se não deve dizer
nem permitir que outros afirmem, como o demonstrou a presente exposição.
Teeteto — É exatamente como dizes, Sócrates.
Sócrates — Donde se colhe, que o que atua sobre mim só se relaciona comigo; só eu o
percebo, mais ninguém.
Teeteto — Como não?
Sócrates — Minha sensação, portanto, é verdadeira para mim, pois sempre faz parte do
meu ser, sendo eu, por isso mesmo o único juiz, de acordo com o dito de Protágoras, em
condições de dizer que as coisas que são para mim existem mesmo, e também que as que
não são para mim não existem.
Teeteto — Parece.
XV — Sócrates — Então, se eu nunca erro, e se meu pensamento não tropeça no ajuizar o
que é ou devém, como se explica que eu não tenha o conhecimento daquilo de que tenho a
sensação?
Teeteto — É o que não se pode admitir.
Sócrates — Por isso mesmo, tinhas carradas de razão, quando disseste que o conhecimento
não passa de sensação, o que vem a dar, precisamente, nisto de Homero e de Heráclito e de
toda a tribo de seus acompanhantes: Tudo se movimenta como um rio; ou, segundo a
fórmula do sapientíssimo Protágoras: O homem é a medida de todas as coisas, que é
também a de Teeteto, o qual concluiu disso que há perfeita identidade entre conhecimento e
sensação. Não é assim mesmo, Teeteto? Não estamos autorizados a dizer que nisso tudo
temos um feto dado por ti à luz agora mesmo, com a ajuda dos meus conhecimentos de
parteiro? Ou como te parece?
Teeteto — Necessariamente, Sócrates, terá de ser como disseste.
Sócrates — Seja ele o que for, o fato é que nos deu trabalho para nascer. Mas, uma vez
terminado o parto, precisamos celebrar a anfidromia, circulando com o recém-nascido à
volta da lareira, o que faremos com envolvê-lo em nosso raciocínio, para ver se merece ser
alimentado ou se é um ovo gorado e não passa de um grande embuste. Ou és de parecer que
devemos criar teu filho, sem abandoná-lo em nenhuma hipótese? Suportarás vê-lo rejeitado
pela critica e não ficarás aborrecido se te privarem de teu primogênito?
Teodoro — Evidentemente, Sócrates, Teeteto o suportará, por ser de muito boa índole.
Mas, em nome dos deuses, dize logo se nisso tudo há algum erro.
Sócrates — Vê-se que aprecias essas questões, Teodoro; mas és muito bondoso, por me
teres na conta de um saco de argumentos, de onde será fácil tirar uma resposta prontinha,
para declarar: Está errado! Não compreendes o que realmente se passa; os argumentos não
saem de mim, porém sempre da pessoa com que eu converso, e que eu nada sei, tirante este
pouquinho, isto é, apanhar o argumento de algum sábio e tratá-lo como convém. Isso
mesmo pretendo fazer com este moço, sem nada acrescentar de próprio.
Teodoro — É muito certo o que dizes, Sócrates; continua.
XVI — Sócrates — Queres saber, Teodoro, o que me admira em teu amigo Protágoras?
Teodoro — Que será?
Sócrates — De modo geral, agrada-me sua doutrina, de que tudo o que aparece para
alguém, existe para essa pessoa. Só o começo de sua proposição é que me surpreende, por
ele não dizer logo no início de sua obra, A Verdade, que a medida de todas as coisas é o
porco ou o cinocéfalo ou qualquer outro animal mais esquisito ainda, porém capaz de
sensações. Seria o melhor exórdio para um discurso a um tempo brilhante e desdenhoso,
com mostrar-nos que, se o admiramos como a uma divindade por causa de sua sabedoria,
em matéria de discernimento ele não bate nem os girinos, quanto mais um ser humano.
Como diremos, Teodoro? Se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela
sensação; se as impressões de alguém não encontram melhor juiz senão ele mesmo, e se
ninguém tem autoridade para dizer se as opiniões de outra pessoa são verdadeiras ou falsas,
formando, ao revés disso, cada um de nós, sozinho, suas opiniões, que em todos os casos
serão justas e verdadeiras: de que jeito, amigo, Protágoras terá sido sábio, a ponto de passar
por digno de ensinar os outros e de receber salários astronômicos, e por que razão teremos
nós de ser ignorantes e de freqüentar suas aulas, se cada um for a medida de sua própria
sabedoria? Não nos assiste o direito de afirmar que tudo isso na boca de Protágoras não
passava de frase para armar o efeito? No que me diz respeito e à minha arte de parteiro,
nem me refiro ao ridículo que provocamos, o que, aliás, se poderia tornar extensivo a toda a
arte da conversação. Pois analisar e procurar refutar as fantasias e opiniões de outras
pessoas, dado que todas sejam certas para cada um de nós, não será o cúmulo da sensaboria
e da tolice, se A Verdade de Protágoras for realmente verdadeira e se ele não estava
pilheriando, quando doutrinava dos penetrais sagrados do seu livro?
Teodoro — O homem, Sócrates, foi meu amigo, conforme tu mesmo acabaste de dizer. Por
isso não posso aceitar que Protágoras seja refutado com minha anuência, como também não
desejo contradizer-te contra minha própria maneira de pensar. Volta, pois, a pegar-te com
Teeteto, tanto mais que ele parece acompanhar teu raciocínio com o mais vivo interesse.
Sócrates — Se fosses à Lacedemônia, Teodoro, e assistisses às competições na palestra,
acharias direito contemplar os lutadores quando despidos —alguns, aliás, de físico bem
franzino — sem também te despires para mostrar tuas formas?
Teodoro — Por que não, se eles o permitissem e se se dobrassem aos meus argumentos? O
mesmo se dá agora, pois espero convencer-vos a deixar-me no meu papel de espectador, e
em vez de me arrastardes para a arena, as juntas duras como já tenho, medir-vos com um
adversário mais jovem e de mais rica seiva.
XVII — Sócrates — Se isso for do teu agrado, Teodoro, a mim não desagrada, como
dizem os que amam citar provérbios. Forçoso, pois, é voltar para o sábio Teeteto. Então
dize-me, Teeteto, para começar, pelo que acabamos de expor, se não te admiras de
pareceres, assim tão de repente, nada inferior em matéria de sabedoria a qualquer homem
ou divindade? Ou serás de opinião que a medida de Protágoras se aplica menos aos deuses
do que aos homens?
Teeteto — Por Zeus, de forma alguma! E sobre o que me perguntas, digo que isso se me
afigura muito estranho. Ao estudarmos há pouco a assertiva de que tudo o que aparece a
cada um é tal como lhe aparece, eu achava a proposição muito bem formulada; porém agora
essa impressão se transformou precisamente no seu contrário.
Sócrates — Ainda és moço, meu filho, e, por isso mesmo, fácil de prestar ouvidos a
discursos capciosos e de deixar-te convencer. A esse respeito, Protágoras ou alguém por ele
poderia objetar-nos: Vós, aí, menino e velho generosos, juntastes-vos para conversar e
chegastes a envolver os próprios deuses em vossa discussão, suposto que eu tenha excluído
inteiramente de minhas aulas e de meus escritos a questão de sabermos se os deuses
existem ou não existem, sendo que só repetis o que as multidões gostam de ouvir, como se
fosse de espantar não distinguir-se nenhum homem, em matéria de sabedoria, de qualquer
animal. Porém quanto a argumentos e à conclusão forçosa é o que não apresentais, pois só
recorreis a verossimilhança, o que, nas mãos de Teodoro ou de qualquer outro geômetra,
seria suficiente para desclassificá-lo. Considerai, tu e Teodoro, se em assunto de tamanha
transcendência acolheríeis argumentos baseados apenas em verossimilhança e
probabilidade.
Teeteto — Que isso fora justo, Sócrates, nem tu nem nós afirmaremos.
Sócrates — Logo, ao que parece, sois de opinião, tu e Teodoro, que precisamos considerar
o assunto por outro prisma.
Teeteto — Sim, por maneira diferente.
Sócrates — Então, vejamos se com esse novo critério diferem entre si conhecimento e
sensação, ou se se eqüivalem. Toda nossa argumentação tendia para esse ponto, e foi só
para isso que recorremos a tantos argumentos absurdos, não é verdade?
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Admitiremos que tudo o que percebemos por meio da vista ou do ouvido, só
por esse fato se nos torne conhecido? Por exemplo, antes de aprendermos a língua dos
bárbaros, sempre que estes nos falem, diremos que não ouvimos, ou que não apenas
ouvimos como entendemos o que eles querem dizer? Outro exemplo: se não soubermos ler
e olharmos para alguns caracteres escritos, diremos que não os vemos, ou que, pelo simples
fato de vê-los, compreendemos o que significam?
Teeteto — O que neles, Sócrates, vemos e ouvimos, de fato, é o que afirmamos saber. Com
relação às letras, diremos que as vemos e que reconhecemos sua cor e a forma, e no que
entende com a fala, ouvimos e, no mesmo passo, conhecemos os sons agudos e os graves;
porém a Lição dos gramáticos e de seus intérpretes, nem percebemos pela vista e pelo
ouvido nem chegamos a compreender.
Sócrates — Ótimo, Teeteto! Não vale a pena levantar objeções, pois o que importa é
aumentares a confiança em ti mesmo.
XVIII — Porém atenta na dificuldade que se aproxima de mansinho e vê de que modo
poderemos repeli-la.
Teeteto — Que dificuldade?
Sócrates — É a seguinte: No caso de nos perguntarem se é possível a alguém que conheceu
determinada coisa cuja lembrança ainda não se lhe apagou da memória, no momento em
que se recorda dela não conhecer aquilo de que se lembra? Parece que fiz um rodeio muito
grande só para perguntar se quem aprendeu alguma coisa não sabe do que se trata, quando
se lembra dessa coisa?
Teeteto — Como não há de saber, Sócrates? Isso é um verdadeiro disparate.
Sócrates — Será que eu falei alguma tolice? Presta atenção ao seguinte: Não disseste que
ver é sentir e que visão é sensação?
Teeteto — Disse.
Sócrates — Ora, de acordo com o que acabamos e de expor, quem viu alguma coisa,
adquiriu o conhecimento dessa coisa.
Teeteto — Certo.
Sócrates — E depois? Não admites que há o que denominas memória?
Teeteto — Admito.
Sócrates — Memória de nada ou de alguma coisa?
Teeteto — De alguma coisa, evidentemente.
Sócrates — De coisas aprendidas e sentidas, não será isso?
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — Por vezes, a gente se lembra do que já viu.
Teeteto — É fato.
Sócrates — Até mesmo com os olhos fechados? Ou só com baixar as pálpebras se
esquecerá de tudo?
Teeteto — Seria absurdo, Sócrates, afirmar semelhante proposição.
Sócrates — Porém é o que teremos de fazer, para salvar o argumento anterior; a não ser
assim, estará perdido.
Teeteto — Por Zeus, eu também tenho minhas dúvidas, porém não compreendo bem o que
queres dizer. Explica-te melhor.
Sócrates — E o seguinte: Quem vê, foi o que disseste, adquire o conhecimento do que viu,
pois visão, sensação e conhecimento, conforme admitimos, tudo é uma só coisa.
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Porém quem viu e adquiriu conhecimento do que viu, logo que fecha os olhos
deixa de ver, não e verdade?
Teeteto — Certo.
Sócrates — Mas, desde que ver eqüivale a saber, não ver será o mesmo que não saber.
Teeteto — É verdade.
Sócrates — De onde vem que, ao lembrar-se alguém de alguma coisa de que já teve
conhecimento, não a conhece por não a ter diante dos olhos, o que dissemos ser
positivamente monstruoso.
Teeteto — É muito certo o que declaras.
Sócrates — Ao que parece, pois, trata-se de manifesta impossibilidade afirmar que
sensação e conhecimento são idênticos.
Teeteto — É possível.
Sócrates — Que virá a ser, então, conhecimento? Pelo jeito, precisamos reconsiderar tudo
do começo. Mas, Teeteto, que coisa estávamos na iminência de fazer!
Teeteto — A respeito de quê?
Sócrates — Tenho a impressão de que procedemos como galos ordinários; abandonamos a
luta antes da vitória e pusemo-nos a cantar.
Teeteto — Como assim?
Sócrates — À maneira dos disputadores profissionais, chegamos a um acordo a respeito das
palavras e nos declaramos satisfeitos por nosso argumento haver vencido graças a esse
estratagema, e conquanto afirmemos que não somos anti-lógicos, porém filósofos, sem o
perceber procedemos exatamente como aqueles terríveis cidadãos.
Teeteto — Não chego a apanhar todo o sentido de tuas palavras.
Sócrates — Pois vou ver se consigo explicar melhor meu pensamento. O que perguntamos
foi se um indivíduo que aprendeu alguma coisa e dela ainda se recorda, pode deixar de
conhecê-la; e depois de demonstrar que quem vê determinado objeto e, logo a seguir, fecha
os olhos, deixando, assim, de vê-lo sem deixar de lembrar-se dele, concluímos que ele
juntamente se recorda e não conhece, o que é impossível. A este modo, liquidamos o mito
de Protágoras e também o teu, visto considerares idênticos conhecimento e sensação.
Teeteto — É verdade.
Sócrates — Mas o que eu acho, amigo, é que tal não se daria se ainda vivesse o pai do
primeiro mito, que de todo o jeito saberia defendê-lo. Tudo o que fizemos foi maltratar este,
por ser órfão, visto se terem recusado a sair em sua defesa os próprios tutores instituídos
por Protágoras, entre os quais se inclui o nosso Teodoro. Por uma questão de justiça, nós
mesmos é que teremos de socorrê-lo.
Teodoro — Não fui eu, Sócrates, que fiquei como tutor de seus filhos, mas, de preferência,
Cálias, filho de Hipônico. Foi muito rápida nossa passagem dos argumentos sem provas
para a geometria. Ficar-te-emos agradecido se saíres em sua defesa.
Sócrates — Muito bem dito, Teodoro. Então, vê como me disponho a defendê-lo. Absurdos
muito maiores do que esse a gente se vê forçado a admitir quando não presta suficiente
atenção ao sentido dos vocábulos de que comumente nos servimos para afirmar ou negar. A
ti é que devo dirigir meu discurso ou a Teeteto?
Teodoro — A ambos, juntamente; porém as respostas serão dadas pelo mais moço. Um
revés, no caso dele, será menos encabulante.
XIX — Sócrates — Então, vou apresentar uma pergunta bem difícil, que será formulada
nos seguintes termos: Poderá alguém conhecer alguma coisa e, ao mesmo tempo, não
conhecer o que conhece?
Teodoro — Que responderemos a isso, Teeteto?
Teeteto — Eu, pelo menos, acho que não pode.
Sócrates — Isso não, visto afirmares que ver é conhecer. Como responderias à pergunta
inextricável se viesses a cair no poço, como se diz, e com uma das mãos o teu implacável
adversário te tapasse um dos olhos e perguntasse se com esse olho tapado enxergavas o seu
manto?
Teeteto — Penso que lhe diria: Com esse, não; vejo com o outro.