Manobras e manipulações: a quem interessa esse jogo?

A quem interessa que não se tenha 10% do PIB para a educação pública? A quem interessa não enxergar que nossas crianças e adolescentes sofrem violência? Para a colunista, o Congresso usa de artifícios para reduzir direitos da infância e adolescência

por Heloísa Helena de Oliveira | 21/11/2013 10:00

CATEGORIA(s): Colunistas, Direitos Humanos

Manipular e manobrar são dois verbos transitivos. O primeiro significa, comumente, preparar com as próprias mãos, dar forma; o segundo, por sua vez, é sinônimo de mover, dirigir com destreza, movimentar. Verbos transitivos necessitam de objetos, isto é, algo ou alguém utilizado na ação. Manipular é sinônimo de manobrar quando se tem o significado de dirigir, governar e manusear em favor dos próprios interesses.No Congresso Nacional, por conta do nosso trabalho de incidência política em defesa dos direitos da criança e do adolescente vemos de perto manipulações que, muitas vezes, não buscam trazer benefícios a esse público. Ao contrário, temos visto manobras que objetivam a redução de direitos já conquistados – a duras penas – para a infância e a adolescência. E podemos enumerar algumas situações emblemáticas que trazem esse conflito de interesses. Nota-se um jogo de forças entre parlamentares reducionistas de direitos de um lado e de outro a sociedade civil mobilizada para garantir a efetivação dos direitos já conquistados e uns poucos parlamentares que são comprometidos com as causas sociais mais importantes.

Como exemplo do que estou dizendo, posso citar o PL 7672/10, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante. Para tal proposição foi criada uma comissão especial, que aprovou por unanimidade o mérito do projeto. Contudo, tão logo foi aprovado, um grupo de parlamentares contrários recolheu assinaturas e apresentou seis requerimentos iguais, para que o projeto de lei aprovado na comissão especial não fosse adiante. A sociedade civil organizada pôs-se em movimento, mobilizou e convenceu os deputados que haviam assinado a retirar suas assinaturas.

Feito isso, o projeto de lei seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, para aprovação do texto final a ser encaminhado ao Senado. Porém, inúmeras manobras, como a retirada da proposição da pauta de votação e a contagem de quórum, não permitem que o PL 7672/10 saia de onde está. Trata-se de um jogo de forças no qual os setores mais conservadores do Congresso fazem questão de que o projeto de lei durma em seu próprio telhado de vidro.

Com o Plano Nacional de Educação (2011-2020), atual PLC 103/2012, não foi diferente. Em junho de 2012, no dia da votação dos destaques pela comissão especial, havia uma forte pressão para que as questões relativas ao financiamento do PNE não fossem votadas. De um lado, observávamos muita movimentação de parlamentares e assessores do Executivo dentro da Casa legislativa tentando esvaziar a sessão; por outro, uma multidão de estudantes e representantes de organizações da sociedade civil fazendo pressão para que fossem votados os destaques.

Quando era chegada a Ordem do Dia, momento em que os parlamentares se dirigem ao plenário para votar proposições específicas, a sociedade civil reagiu e apresentou o Regimento Interno a um parlamentar presente. O regimento da Casa permite que seja suspensa a sessão para que os presentes possam participar da sessão plenária, retornando aos trabalhos da comissão, logo após o seu término. Não era a vontade do relator, tampouco do presidente, mas não havia argumentos técnicos contra o regimento em mãos. Naquela noite, por volta das 19h, o destaque que previa 10% do PIB para a educação pública foi votado por unanimidade pelo “sim”.

A aprovação do Plano Nacional de Educação por unanimidade na comissão especial não impediu que fosse proposto recurso contra o seu encaminhamento ao Senado, felizmente, com muita mobilização social e de parlamentares comprometidos com a educação, esse recurso foi derrubado e agora, a batalha se dá no Senado, onde a proposta vem sofrendo modificações, sempre pra pior.

Outra proposição que tem levantado polêmicas e manobras é a PEC 18/2011, que autoriza o trabalho sob o regime de tempo parcial a partir dos 14 anos de idade e, atualmente, está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. Em meados de 2011, o relator da proposta, deputado Paulo Maluf (PP-SP), tinha intenção de votar a PEC. Ao chegar ao plenário da CCJ, observou que havia maioria favorável para aprovação à proposta, mas como era o sexto item a ser discutido na pauta do dia, solicitou a inversão de pauta com o objetivo de fazer passar sua proposta.

Sabendo das intenções, outro parlamentar ligado aos movimentos sociais, pediu que um requerimento ligado ao processo fosse analisado antes que a PEC 18/2011 fosse votada. Isso possibilitou que a proposição legislativa não avançasse e, consequentemente, não caminhássemos para o retrocesso social proposto, que implicaria em descumprimento de Acordo Internacional do qual o Brasil é signatário.

Por fim, a Comissão Especial de Medidas Socioeducativas a adolescentes autores de ato infracional, criada em maio deste ano, tem sido palco das mais visíveis manobras. A começar pela apresentação dos projetos de lei. Primeiramente, o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) apresentou o PL 5385/13 a pedido do governador de São Paulo, estado que carece de políticas de enfrentamento da violência crescente. Sendo autor da proposta, o deputado não poderia ser o relator.

Diante disso, retirou sua proposta e sua colega de partido, deputada Andreia Zito (PSDB-RJ), reapresentou a mesma proposição, sendo renomeada como PL 5454/13. Concomitante a isso, antes que a comissão especial fosse criada, o parlamentar deu uma declaração para a revista Veja, na qual já se apresentava como relator das proposições que depois tramitariam nesse colegiado. Já havia um acordo entre o governador de São Paulo e a direção da Câmara de que o PSDB daria as cartas nessa comissão e que Carlos Sampaio seria o relator da proposição, tudo isso antes que houvesse uma informação formal da própria Casa sobre a criação da comissão especial.

Dali em diante, foram realizadas várias audiências nos estados, nas quais especialistas das áreas jurídica, psicossocial e de defesa dos direitos foram unânimes em dizer que as mudanças propostas iriam na direção errada e que é preciso implementar de fato o ordenamento legal e jurídico existente. Acompanhamos essas audiências e percebemos que foram palavras ao vento, pois o relatório deve espelhar a proposta original do governador de São Paulo, incorporando idéias que lhe são favoráveis.

A sinalização mais forte disso foi a presença de Geraldo Alckmin (PSDB) e seus seguidores, no dia 5 de novembro, no Seminário Nacional sobre as Medidas Socioeducativas – ação que encerrava a série de audiências. Foi uma ação teatral, depois de todos os palestrantes falarem, a entrada do governador cercado de holofotes e explicando novamente o que era a proposta dele e seus benefícios pra sociedade, como se tudo que foi dito nas audiências públicas não tivesse existido. Ou seja, a opinião de especialistas nas audiências parece não mover pestanas daqueles que relatam proposições.

Semelhante a isso é o que ocorreu no Senado Federal: mesmo com ampla e grande maioria dos debatedores afirmando que a redução da maioridade penal não resolverá o problema do envolvimento de adolescentes e jovens com drogas e com a violência, o relator da PEC 33/2012, senador Ricardo Ferraço, fez um relatório favorável à redução da inimputabilidade penal para 16 anos de idade e o tema deve avançar naquela Casa.

Como se vê, o jogo de forças é muito grande e, nem sempre, as soluções simplistas vão levar a algum avanço e as perguntas que fazemos são sempre as mesmas para todas essas questões: quem ganha quando se reduz um direito? A quem interessa que não se tenha 10% do PIB para a educação pública? A quem interessa não discutir a ausência de política de educação integral para as crianças e adolescentes das camadas sociais mais vulneráveis? A quem interessa esconder a falta de política de segurança e de enfrentamento à violência nos grandes centros brasileiros? A quem interessa não enxergar que nossas crianças e adolescentes sofrem violência?

O Estado que quer cobrar e punir é o mesmo que não garante os direitos básicos de nossa sociedade. Mas é preciso estar atento e questionar as propostas que, se fossem boas de fato, não precisavam tantas manobras!

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