DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE - Segunda parte

Jean-Jacques Rousseau

DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE

—Ridendo Castigat Mores—

SEGUNDA PARTE

O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!”. Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa idéia de propriedade, dependendo muito de idéias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais alto, e tratemos de reunir, sob um só ponto-de-vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos na sua ordem mais natural.

O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o seu primeiro cuidado, o de sua conservação. As produções da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto o levou a fazer uso delas. A fome, outros apetites, fazendo-o experimentar, alternativamente, diversas maneiras de existir, houve uma que o convidou a perpetuar a sua espécie; e esse pendor cego, desprovido de todo sentimento de coração, não produzia senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os dois sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada mais representava para a mãe logo que podia passar sem ela.

Tal foi a condição do homem ao nascer; tal foi a vida de um animal, limitada primeiro às puras sensações e aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a natureza, longe de pensar em lhe arrancar alguma coisa. Mas, logo, surgiram dificuldades; foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que também procuravam nutrir-se, a ferocidade dos que queriam a sua própria vida, tudo o obrigou a aplicar-se aos exercícios do corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos das árvores e as pedras, em breve estavam nas suas mãos. Aprendeu a vencer os obstáculos da natureza, a combater quando necessário os outros animais, a disputar sua subsistência aos próprios homens, ou a se compensar do que era preciso ceder ao mais forte.

À medida que o gênero humano se estendia, as penas se multiplicavam com os homens. A diferença dos terrenos, dos climas, das estações, forçou-os a estabelecê-la na maneira de viver. Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova indústria. Ao longo do mar e dos rios, inventaram a linha e o anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas, fizeram arcos e flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nos países frios, cobriram-se de peles de animais por eles mortos. O trovão, um visão, ou qualquer feliz acaso, lhes fez conhecer o fogo, novo recurso contra o rigor do inverno: aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo, e enfim a preparar nele as carnes, que antes devoravam cruas.

Essa aplicação reiterada de seres diversos a si mesmos e de uns aos outros teve, naturalmente, de engendrar, no espírito do homem, as percepções de certas relações. Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno, forte, fraco, depressa, devagar, medroso, ousado, e outras idéias semelhantes, comparadas quando necessário, e quase sem nisso pensar, produziram nele, finalmente, uma espécie de reflexão, ou antes, uma prudência maquinal que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança. As novas luzes que resultaram desse desenvolvimento aumentaram a sua superioridade sobre os outros animais, fazendo-lhe conhecê-la. Exercitou-se em lhes preparar armadilhas, logrou-os de mil maneiras; e, embora muitos o ultrapassassem em força no combate, ou em ligeireza na corrida, daqueles que o podiam servir ou prejudicar, tornou-se com o tempo o senhor de uns e o flagelo de outros. E, assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho; assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua espécie, preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.

Embora os seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós, e embora não tivesse mais comércio com eles do que com os outros animais, não foram esquecidos nas suas observações. As semelhanças que o tempo lhe pode fazer perceber entre eles, sua fêmea é ele mesmo, lhe fizeram julgar das que não percebia; e, vendo que todos se conduziam como teria feito ele próprio em circunstâncias semelhantes, concluiu que a sua maneira de pensar e de sentir era inteiramente conforme à sua. E, essa importante verdade, bem estabelecida em seu espírito, lhe fez seguir, por um pressentimento tão seguro e mais pronto do que a dialética, as melhores regras de conduta que, para sua vantagem e segurança, lhe convinha observar para com eles.

Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas, achou-se em estado de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum lhe devia fazer contar com a assistência dos seus semelhantes, e as mais raras ainda em que a concorrência lhe devia fazer desconfiar deles. No primeiro caso, unia-se a eles em rebanho, ou quando muito por uma espécie de associação livre que não obrigava a ninguém e que só durava enquanto havia a necessidade passageira que a havia formado. No segundo, cada qual procurava tirar suas vantagens, ou pela força aberta, se acreditava poder, ou pela astúcia e sutileza, se se sentia mais fraco.

Eis como os homens puderam, insensivelmente, adquirir uma idéia grosseira dos compromissos mútuos e da vantagem de os cumprir, mas somente na medida em que podia exigi-lo o interesse presente e sensível; porque a previdência nada era para eles; e, longe de se ocuparem com um porvir afastado, nem mesmo pensavam no dia seguinte. Se se tratava de pegar um veado, cada qual sentia bem que, para isso, devia ficar no seu posto; mas, se uma lebre passava ao alcance de algum, é preciso não duvidar de que a perseguia sem escrúpulos e, uma vez alcançada a sua presa, não lhe importava que faltasse a dos companheiros.

É fácil compreender que tal comércio não exigia uma linguagem mais refinada do que a das gralhas ou a dos macacos que se reúnem em bandos mais ou menos semelhantes. Gritos inarticulados, muitos gestos e alguns ruídos imitativos deviam compor, durante muito tempo, a língua universal; acrescentem-se a isso, em cada região, alguns sons articulados e convencionais, cuja instituição, como já disse, não é muito fácil explicar, e temos línguas particulares, mas grosseiras, imperfeitas e mais ou menos como as que ainda hoje têm diversas nações selvagens.

Percorri, como um traço, multidões de séculos, forçado pelo tempo que se escoa, pela abundância das coisas que tenho que dizer e pelo progresso quase insensível dos começos; porque, quanto mais lentos em se suceder eram os acontecimentos, tanto mais estão prontos para serem descritos.

Esses primeiros progressos colocaram, finalmente, o homem ao alcance de os fazer mais rápidos. Quanto mais o espírito se esclarecia, tanto mais a indústria se aperfeiçoava. Logo, deixando de adormecer na primeira árvore, ou de se retirar nas cavernas, encontraram-se certas espécies de machados de pedras duras e afiadas que serviram para cortar a madeira, cavar a terra e fazer cabanas de galhos, que ocorreu, em seguida, endurecer com argila e barro. Foi a época de uma primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, de onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates. Entretanto, como os mais fortes foram, provavelmente, os primeiros a fazer alojamentos que se sentiam capazes de defender, é de se acreditar que os fracos tenham achado mais simples e mais seguro imitá-los do que tentar desalojá-los: e, quanto aos que já tinham cabanas, cada qual pouco procurou apropriar-se da do vizinho, menos porque lhe não pertencia do que lhe era inútil, não podendo apossar-se dela sem se expor a um combate muito vivo com a família que a ocupava.

Os primeiros desenvolvimentos do coração foram o efeito de uma situação nova que reunia em uma habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os filhos. O hábito de viver coletivamente fez nascer os mais doces sentimentos conhecidos dos homens: o amor conjugal e o amor paternal. Cada família se torna uma pequena sociedade tanto mais unida quanto o apego recíproco e a liberdade eram os seus únicos laços; e foi então que se estabeleceu a primeira diferença na maneira de viver dos dois sexos, que, até então só tinham tido uma. As mulheres tornaram-se mais sedentárias e se acostumaram a guardar a cabana e os filhos, enquanto o homem ia procurar a subsistência comum. Os dois sexos começaram também, por uma vida um pouco mais suave, a perder alguma coisa da sua ferocidade e do seu vigor. Mas, se cada um, separadamente, se tornou menos capaz de combater os animais selvagens, em compensação foi mais fácil reunirem-se para lhes resistir em comum.

Nesse novo estado, com uma vida simples e solitária, necessidades muito limitadas e os instrumentos que haviam inventado para as prover, os homens, gozando de bastante lazer, empregaram-no em procurar várias comodidades desconhecidas dos seus pais; e foi o primeiro jugo que se impuseram sem pensar e a primeira fonte de males que prepararam para os seus descendentes; porque, além de continuarem assim a languescer o corpo e o espírito, tendo essas comodidades, com o hábito, perdido quase todo o seu encanto e, ao mesmo tempo, degenerando em verdadeiras necessidades, a privação delas se tornou muito mais cruel do que doce era a sua posse; e, infeliz por tê-las perdido, não se era feliz possuindo-as.

Aqui se pode ver, um pouco melhor, como o uso da palavra se estabeleceu ou se aperfeiçoou insensivelmente no seio de cada família, e pode conjecturar-se ainda como diversas causas particulares puderam desenvolver a linguagem e lhe acelerar o progresso, tornando-a mais necessária. Grandes inundações ou terremotos cercaram de águas ou de precipícios cantões habitados; revoluções do globo desarticularam e cortaram em ilhas porções do continente. Concebe-se que, entre homens assim aproximados e forçados a viver juntos, havia de se formar um idioma comum, antes do que entre os que erravam livremente nas florestas da terra firme. Assim, é muito possível que, após seus primeiros ensaios de navegação, os insulares nos tenham trazido o uso da palavra; e é, pelo menos, muito verossímil que a sociedade e as línguas tenham nascido das ilhas e nelas se aperfeiçoado antes de serem conhecidas no continente. Tudo começa a mudar de face. Os homens, até então errantes nos bosques, tendo agora situação mais fixa, aproximando-se lentamente, reúnem-se em diversos grupos e formam, enfim, em cada região, uma nação particular, unida pelos costumes e pelos caracteres, não pelos regulamentos e pelas leis, mas pelo mesmo gênero de vida e pelos alimentos, e pela influência comum do clima. Uma vizinhança permanente não pode deixar de engendrar, enfim, alguma ligação entre diversas famílias. Jovens de diferentes sexos habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro que a natureza exige logo conduz a outro não menos doce e mais permanente pela mútua frequentação. Adquire-se o hábito de considerar diferentes objetos e compará-los; adquirem-se, insensivelmente, idéias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força de se ver, não se pode mais passar sem se ver ainda. Um sentimento terno e doce se insinua na alma e, pela menor oposição, se transforma em furor impetuoso: o ciúme desperta com o amor, a discórdia triunfa, e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano.

À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o gênero humano continua a se domesticar, as ligações se estendem e os laços se apertam. Adquire-se o hábito de se reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e da ociosidade, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloqüente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência.

Logo que os homens começaram a se apreciar mutuamente, e que a idéia da consideração se formou em seu espírito, cada um pretendeu ter direito a ela, e não foi mais possível faltar com ela impunemente a ninguém. Daí surgiram os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens; e daí, toda falta voluntária tornou-se um ultraje, porque, com o mal que resultava da injúria, o ofendido via nela também o desprezo à sua pessoa, muitas vezes mais insuportável do que o próprio mal. Foi assim que, punindo cada qual o desprezo que se lhe testemunhara de maneira proporcionada ao juízo que de si mesmo fazia, as vinganças se tornaram terríveis, e os homens sanguinários e cruéis. Eis, precisamente, o grau a que tinham chegado a maior parte dos selvagens que nos são conhecidos; e, foi por não terem distinguido suficientemente as idéias e notado como esses povos já estavam longe do primeiro estado de natureza, que muitos se apressaram em concluir que o homem é naturalmente cruel e tem necessidade de polícia para abrandá-lo; ao passo que não há nada tão doce como ele em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a distâncias iguais da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civilizado, e limitado, igualmente, pelo instinto e pela razão, a se preservar do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a quem quer que seja, não sendo por nada levado a isso, mesmo depois de o ter recebido. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, não pode haver injúria onde não há propriedade.

Mas, é preciso notar que a sociedade começada e as relações já estabelecidas entre os homens exigiam neles qualidades diferentes das que tinham em sua constituição primitiva; que a moralidade, começando a se introduzir nas ações humanas, e cada um, antes das leis, sendo único juiz e vingador das ofensas recebidas, a bondade conveniente ao puro estado de natureza não era mais a que convinha à sociedade nascente; que era preciso que as punições se tornassem mais severas à medida que as ocasiões de ofender se tornassem mais freqüentes; e que ao terror das vinganças cabia fazer as vezes do freio das leis. Assim, embora os homens se tivessem tornado menos tolerantes, e a piedade natural já tivesse sofrido certa alteração, esse período do desenvolvimento das faculdades humanas, guardando um justo meio entre a intolerância do estado de natureza e a petulante atividade de nosso amor-próprio, devia ser a época mais feliz e mais durável. Quanto mais se reflete sobre isso, mais se acha que esse estado, era o menos sujeito às revoluções, o melhor para o homem(16), e do qual ele só teve de sair por um funesto acaso, que, para a utilidade comum, nunca teria devido verificar-se, O exemplo dos selvagens, que estiveram quase todos nesse estado, parece confirmar que o gênero humano fora feito para nele ficar sempre; que foi essa a verdadeira juventude do mundo, e que todos os progressos ulteriores foram, aparentemente, outros tantos passos para a perfeição do indivíduo, mas, de fato, para a decrepitude da espécie.

Enquanto os homens se contentaram com as suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas roupas de peles com espinhos ou arestas de pau, a se enfeitarem com plumas e conchas, a pintar o corpo de diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar os seus arcos e flechas, a talhar com pedras cortantes algumas canoas de pesca ou grosseiros instrumentos de música; em uma palavra, enquanto se aplicaram exclusivamente a obras que um só podia fazer, e a artes que não necessitavam o concurso de muitas mãos, viveram livres, sãos, bons e felizes, tanto quanto podiam ser pela sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de uma convivência independente. Mas, desde o instante que um homem teve necessidade do socorro de outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas.

A metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução. Para o poeta, foram o ouro e a prata; mas, para o filósofo, foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano. Tanto um como o outro eram desconhecidos dos selvagens da América, os quais, por isso, sempre ficaram como tais; os outros povos parece mesmo que continuaram bárbaros enquanto praticaram uma dessas artes sem a outra. E uma das melhores razões, talvez, por que a Europa foi, se não mais cedo, pelo menos mais constantemente e melhor policiada de que as outras partes do mundo, é que ela é, ao mesmo tempo, a mais abundante em ferro e a mais fértil em trigo.

É muito difícil conjecturar como os homens chegaram a conhecer e empregar o ferro; porque não é crível que tenham imaginado por si mesmos tirar a matéria da mina e lhe dar as preparações necessárias para a pôr em fusão antes de saber o que disso resultaria. Por outro lado, pode-se tanto menos atribuir essa descoberta a algum incêndio acidental quanto as minas só se formam em lugares áridos e desnudados de árvores e de plantas. Dir-se-ia que a natureza tomara precauções para nos ocultar esse fatal segredo. Não resta, pois, senão a circunstância extraordinária de algum vulcão que, vomitando matérias metálicas em fusão, teria dado aos observadores a idéia de imitar essa operação da natureza; ainda é preciso supor muita coragem e previdência para empreender um trabalho tão penoso, e considerar de tão longe as vantagens que daí podiam tirar; mas, isso só pode acontecer a espíritos que já estiveram mais exercitados do que os que eles deviam ter.

Quanto à agricultura, o seu princípio foi conhecido muito tempo antes da sua prática estabelecida, e não é possível que os homens, sem cessar ocupados em tirar sua subsistência das árvores e das plantas, não tivessem bastante prontamente a idéia dos caminhos que a natureza emprega para a geração dos vegetais. Mas, sua indústria só se voltou, provavelmente, muito tarde para esse lado, ou porque as árvores que, com a caça e a pesca, proviam à sua nutrição, não tinham necessidade dos seus cuidados, ou por não conhecerem o uso do trigo, ou por não terem instrumentos para o cultivar, ou por falta de previdência em relação à necessidade futura, ou, finalmente, por faltarem os meios para impedir os outros de se apropriarem do fruto do seu trabalho. Tornados mais industriosos, pode-se acreditar que, com pedras agudas e paus pontudos, começaram cultivando alguns legumes ou raízes em torno das suas cabanas muito tempo antes de saberem preparar o trigo e de terem instrumentos necessários para a cultura em grande escala: sem contar que, para se entregar a essa ocupação e semear a terra, é preciso se resolver, primeiro, a perder alguma coisa para ganhar muito em seguida: precaução que estava muito distante do expediente do homem selvagem, que, como já disse, tinha muita dificuldade em pensar de manhã nas necessidades da noite,

A invenção das outras artes foi, pois, necessária para forçar o gênero humano a se aplicar à da agricultura. Desde que eram precisos homens para fundir e forjar o ferro, eram necessários outros para nutrir os primeiros. Quanto mais se multiplicava o número de operários, tanto menos eram as mãos encarregadas de prover à subsistência comum, sem que houvesse menos bocas para consumir; e, como uns precisavam de comestíveis em troca do seu ferro, os outros acharam enfim o segredo de empregar o ferro na multiplicação dos comestíveis. Daí nasceram, de um lado, a lavoura e a agricultura, e, de outro, a arte de trabalhar os metais e de muitiplicar-lhe os usos.

Da cultura das terras resulta necessariamente a sua partilha, e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça: porque, para dar a cada um o seu, é preciso que cada um possa ter alguma coisa; de resto, como os homens começassem a levar suas vistas para o futuro, vendo todos que tinham alguns bens que perder, não houve nenhum que não receasse para si a represália dos males que pudesse causar a outrem. Essa origem é tanto mais natural quanto é impossível conceber a idéia da propriedade surgindo fora da mão de obra; porque não se vê o que, para se apropriar das coisas que não fez, possa o homem acrescentar-lhe além do seu trabalho. Só o trabalho, dando direito ao cultivador sobre o produto da terra que lavrou, lho dá por conseguinte sobre o fundo, pelo menos até à colheita, e assim todos os anos; e isso, constituindo uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. Quando os antigos, diz Grotius, deram a Ceras o epíteto de legisladora, e a uma festa celebrada em sua honra o nome de tesmofória, fizeram entender, por isso, que a partilha das terras produziu uma nova espécie de direito, isto é, o direito de propriedade, diferente do que resulta da lei natural.

Nesse estado, as coisas poderiam ter ficado iguais, se os talentos fossem iguais, e se, por exemplo, o emprego do ferro e o consumo dos alimentos tivessem feito sempre uma balança exata: mas, a proporção que ninguém mantinha foi logo rompida: o mais forte fazia mais tarefa; o mais destro tirava melhor partido da sua; o mais engenhoso encontrava meios de abreviar o trabalho; o lavrador tinha mais necessidade de ferro, ou o ferreiro mais necessidade de trigo; e, trabalhando igualmente, um ganhava muito, enquanto outro mal podia viver. É assim que a desigualdade natural se desenvolve insensivelmente com a de combinação, e que as diferenças dos homens, desenvolvidas pelas das circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes nos seus efeitos, e começam a influir na mesma proporção sobre a sorte dos particulares.

Tendo as coisas chegado a esse ponto, é fácil imaginar o resto. Não me deterei em descrever a invenção sucessiva das outras artes, o progresso das línguas, a prova e o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas, o uso e o abuso das riquezas, nem todos os detalhes que seguem estes, e que cada um pode facilmente suprir. Limitar-me-ei tão somente a relancear a vista pelo gênero humano colocado nessa nova ordem e coisas.

Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em jogo, o amor-próprio interessado, a razão tornada ativa, e o espírito chegado quase ao termo da perfeição de que é suscetível. Eis todas as qualidades naturais postas em ação, o lugar e a sorte de cada homem estabelecidos, não somente sobre a quantidade dos bens e o poder de servir ou de prejudicar, mas sobre o espírito, a beleza, a força ou a habilidade, sobre o mérito ou os talentos; e, sendo essas qualidades as únicas que podiam atrair a consideração, logo foi preciso tê-las ou afetá-las. Foi preciso, para vantagem própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de fato. Ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e, dessa distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo. Por outro lado, de livre e independente que era o homem outrora, ei-lo, por uma multidão de novas necessidades, submetido, por assim dizer, a toda a natureza e, principalmente, a todos os seus semelhantes, dos quais se torna escravo em certo sentido, mesmo tornando-se seu senhor: rico, tem necessidade dos seus serviços, pobre, tem necessidade de seu auxílio; e a mediocridade não o põe em estado de passar sem eles. É preciso, pois, que procure sem cessar interessá-los por sua sorte, e fazer-lhes encontrar, de fato ou em aparência, o próprio proveito em trabalhar para o dele: isso o torna velhaco e artificioso com uns, imperioso e duro com outros, e o põe na necessidade de abusar de todos aqueles de que precisa, quando não pode se fazer temer, e quando não é do seu interesse servi-los utilmente. Enfim, a ambição devoradora, o ardor de fazer fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra tendência a se prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para dar o golpe com mais segurança, toma muitas vezes a máscara de benevolência; em uma palavra, concorrência e rivalidade de uma parte, e, de outra, oposição de interesses, e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem: todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente.

Antes de terem sido inventados os sinais representativos da riqueza, estas só podiam consistir em terras e em animais, os únicos bens reais que os homens poderiam possuir. Ora, quando as herdades foram crescendo em número e em extensão, a ponto de cobrirem o solo inteiro e se tocarem todas, umas não puderam mais crescer senão à custa de outras, e os extranumerários, que a fraqueza ou a indolência tinham impedido de adquiri-las por sua vez, tornados pobres sem ter perdido nada, porque, tudo mudando em torno deles, só eles não tinham mudado, foram obrigados a receber ou a roubar a subsistência das mãos dos ricos; e, daí, começaram a nascer, segundo os diversos caracteres de uns e de outros, a dominação e a servidão, ou a violência e as rapinas. Os ricos, por seu turno, mal conheceram o prazer de dominar, desdenharam em breve todos os outros, e, servindo-se dos seus antigos escravos para submeter novos, não pensaram senão em subjugar e escravizar os vizinhos, como lobos esfaimados que, tendo experimentado a carne humana, desdenham qualquer outra nutrição e não querem mais devorar senão homens. Foi assim que os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem de outrem, equivalente, segundo eles, ao da propriedade, a igualdade rompida foi seguida da mais horrível desordem; e assim que as usurpações dos ricos, os assaltos dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, sufocando a piedade natural e a voz ainda mais fraca da justiça, tornaram os homens avarentos, ambiciosos e maus. Levantava-se, entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante, um conflito perpétuo que só terminava por meio, de combates e morticínios(17). A sociedade nascente foi praça do mais horrível estado de guerra: o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes aquisições já obtidas, e não trabalhando senão para a sua vergonha pelo abuso das faculdades que o honram, se colocou também na véspera de sua ruína.

Attonitus novitate mali, divesque, miserque,

Effugere optat opes, et quoe modo voverat odit.

Tradução (aproximada) do latim: Esta tradução não está no E-book

Espantado com o novo caminho do mal criando ricos e miseráveis, ele deseja,

Escapar dessa riqueza que, por sinal gera o ódio.

Não é possível que os homens não tenham feito, enfim, reflexões sobre uma situação tão miserável e sobre as calamidades que os afligiam. Os ricos, principalmente, logo deviam sentir como lhes era desvantajosa uma guerra perpétua cujas despesas só eles faziam, e na qual o risco de vida era comum, assim como o dos bens particulares. Aliás, se alguma podiam dar às suas usurpações, sentiam bastante que não eram estabelecidas senão sobre um direito precário e abusivo, e que, só tendo sido adquiridas pela força, a força as podia tirar sem que tivessem razão de se lastimar. Aqueles mesmos que só a indústria havia enriquecido, não podiam fundar sua propriedade sobre melhores títulos. Bem podiam dizer: “Fui, eu quem construiu este muro; ganhei este terreno com o meu trabalho.” — “E quem vos deu o material? — poder-se-ia responder-lhes — e em virtude de que pretendeis ser pagos à nossa custa por um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de vossos irmãos perece ou sofre da necessidade daquilo que tendes demais, e que precisaríeis de um consentimento expresso e unânime do gênero humano para vos apropriardes de tudo que na subsistência comum vai além da vossa?” Destituído de razões válidas para se justificar e de forças suficientes para se defender; esmagando facilmente um particular, mas esmagado ele mesmo por tropas de bandidos; só contra todos, e não podendo, por causa das rivalidades mútuas, unir-se com seus iguais contra inimigos unidos pela esperança comum da pilhagem, o rico, premido pela necessidade, concebeu enfim, o projeto mais refletido que jamais entrara no espírito humano: o de empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, de tornar seus defensores os seus adversários, de lhes inspirar outras máximas e de lhes dar outras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto contrário lhe era o direito natural.

Tendo isso em vista, depois de expor aos seus vizinhos o horror de uma situação que os armava a todos uns contra os outros, que lhes tornava as paixões tão onerosas quanto as suas necessidades, e na qual ninguém se sentia em segurança nem na pobreza nem na riqueza, inventou facilmente razões especiosas para os conduzir ao seu objetivo. “Unamo-nos, — lhes disse, — para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence: instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e que de certo modo reparem os caprichos da, fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Em uma palavra, em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, repila os inimigos comuns e nos mantenha em uma eterna concórdia.”

Foi preciso muito menos que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, que aliás tinham muitos negócios que resolver entre si para poder passar sem árbitros, e muita avareza e ambição para poder passar muito tempo sem senhores. Todos correram para as suas cadeias de ferro, acreditando assegurar a própria liberdade; porque, com bastante razão para sentir as vantagens de um estabelecimento público, não tinham bastante experiência para prever os perigos que daí adviriam: os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente aqueles que contavam tirar partido deles. E os próprios sábios viram que era preciso se resolverem a sacrificar uma parte de sua liberdade para a conservação da outra, como um ferido deixa que lhe cortem um braço para salvar o resto do corpo.

Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico(18), destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se facilmente como o estabelecimento de uma única sociedade tornou indispensável o de todas as outras, e como, para fazer face a forças unidas, foi preciso se unir por sua vez. As sociedades, multiplicando-se ou estendendo-se rapidamente, cobriram logo toda a superfície da terra; e não mais foi possível encontrar um só canto do universo onde a gente pudesse livrar-se do jugo e subtrair a cabeça ao gládio muitas vezes mal conduzido que cada homem vê perpetuamente suspenso sobre a sua. Tendo o direito civil se tornado assim a regra comum dos cidadãos, a lei de natureza não vigorou mais senão entre as diversas sociedades, nas quais sob o nome de direito das gentes, foi moderada por algumas convenções tácitas para tornar o comércio possível e suprir a comiseração natural, que, perdendo de sociedade em sociedade quase toda a força que tinha de homem para homem, não reside mais senão nas grandes almas cosmopolitas que transpõem as barreiras imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do Ser soberano que as criou, abraçam todo o gênero humano na sua benevolência.

Os corpos políticos, ficando assim entre si no estado de natureza, ressentiram-se em breve dos inconvenientes que haviam forçado os particulares a deles saírem; e esse estado torna-se ainda mais funesto entre esses grandes corpos do que o era antes entre os indivíduos de que se compunham. Daí saíram as guerras nacionais, as batalhas, os assassínios, as represálias, que fazem estremecer a natureza e chocam a razão, e todos esses preconceitos horríveis que colocam na categoria das virtudes a honra de derramar o sangue humano. A gente mais honesta aprendeu a contar entre os seus deveres o de cortar o pescoço dos semelhantes: têm-se visto, enfim, os homens se massacrarem aos milhões sem saberem porque; e cometem-se mais assassínios em um só dia de combate e mais horrores na tomada de uma só cidade do que no estado de natureza, durante séculos inteiros, sobre toda a superfície da terra. Tais são os primeiros efeitos entrevistos na divisão do gênero humano em diferentes sociedades. Voltemos à sua instituição.

Sei que alguns deram outras origens às sociedades políticas, como as conquistas do mais poderoso, ou a união dos fracos; e a escolha entre essas causas é indiferente ao que vou estabelecer: entretanto, a que acabo de expor me parece a mais natural pelas razões seguintes:

1.° No primeiro caso, o direito de conquista, não sendo um direito, não pode fundar nenhum outro, os conquistadores e os povos conquistados ficando sempre entre si em estado de guerra, a menos que a nação, restabelecida a sua liberdade, escolha voluntariamente seu vencedor como chefe: até lá, algumas capitulações que tenham sido feitas, como só foram fundadas sobre a violência e, por conseguinte, são nulas por esse mesmo fato, não pode haver, nessa hipótese, nem verdadeira sociedade, nem corpo político, nem outra lei senão a do mais forte.

2.° As palavras forte e fraco são equívocas no segundo caso; no intervalo que se acha entre o estabelecimento do direito de propriedade ou de primeiro ocupante e o dos governos políticos, o sentido desses termos é mais bem traduzido pelas palavras pobre e rico, porque, com efeito, um homem não tinha, antes das leis, outro meio de sujeitar seus iguais senão assaltando seus bens, ou lhe dando uma parte do seu.

3.° Os pobres nada tendo que perder senão a sua liberdade, seria grande loucura que eles deixassem tirar voluntariamente o único bem que lhes restava, para nada ganhar em troca; ao contrário, os ricos, por assim dizer, sensíveis em todas as partes dos seus bens, era muito mais fácil lhes fazer mal; por conseguinte, tinham mais precauções que tomar para se garantirem; e, enfim, é razoável acreditar que uma coisa devia ter sido inventada por aqueles a quem é útil, mais do que por aqueles a quem devia prejudicar.

O governo nascente não teve uma forma constante e regular. A falta de filosofia e de experiência não deixava perceber senão os inconvenientes presentes; e ninguém pensava em remediar os outros senão à medida que se apresentavam. Apesar de todos os trabalhos dos mais sábios legisladores, o estado político conservou-se sempre imperfeito, porque era quase obra do acaso, e porque, mal começado, o tempo, descobrindo os defeitos e sugerindo remédios, jamais pode reparar os vícios da constituição: remendava-se sem cessar, quando teria sido preciso começar por limpar a área e pôr de lado todos os velhos materiais, como fez Licurgo em Esparta, para depois levantar um belo edifício. A sociedade, primeiro, consistia apenas em algumas convenções gerais que todos os particulares se comprometiam a observar, sendo comunidade responsável em relação a cada um deles. Foi preciso que a experiência mostrasse quanto era fraca semelhante constituição e quanto era fácil aos infratores evitar a convicção ou o castigo das faltas de que só o público devia ser testemunha e juiz; foi preciso que a lei tivesse sido frustrada de mil maneiras, que os inconvenientes e as desordens se multiplicassem continuamente, para que se pensasse, enfim, em confiar a particulares o perigoso depósito da autoridade pública, e que se cometesse a magistrados o cuidado de fazer observar as deliberações do povo; porque dizer que os chefes foram escolhidos antes que a confederação fosse feita, e que os ministros das leis existiram antes das próprias leis, é uma suposição que não é permitido combater seriamente.

Não seria mais razoável acreditar que os povos, primeiro, se atiraram nos braços de um senhor absoluto, sem condições e sem remédio, e que o primeiro meio de prover à segurança comum, imaginado por homens altivos e indomáveis, foi precipitar-se na escravidão. Efetivamente, porque deram a si mesmos superiores, se não foi para os defender contra a opressão e proteger os seus bens, as suas liberdades e as suas vidas, que são, por assim dizer, os elementos constitutivos de seu ser? Ora, nas relações de homem para homem, o pior que pode acontecer a um que se vê à discrição do outro não consiste em se colocar contra o bom senso de começar por se despojar, pondo nas mãos de um chefe as únicas coisas para cuja conservação tinham eles necessidade do seu socorro? Que equivalente podia ele oferecer-lhes pela concessão de tão belo direito? e, se ousou exigi-lo, sob o pretexto de o defender, não receberia logo a resposta do apólogo: “Que mais nos fará ainda o inimigo?” É, pois, incontestável, e é a máxima fundamental de todo o direito político, que os povos deram a si mesmos chefes para defender sua liberdade e não para os sujeitar. Se temos um príncipe, — dizia Plínio a Trajano, — é para nos preservar de ter um senhor.

Os políticos fazem sobre o amor à liberdade os mesmos sofismas que os filósofos fizeram sobre o estado de natureza: pelas coisas que vêem, julgam coisas muito diferentes que não viram; e atribuem aos homens uma tendência natural à servidão, pela paciência com a qual aqueles que têm sob os seus olhos suportam a sua; sem pensar que com a liberdade acontece o mesmo que com a inocência e a virtude, cujo preço só se sabe quando as gozamos nós mesmos, e cujo gosto se perde logo que as perdemos. “Conheço as delícias do teu país, dizia Brasidas a um sátrapa que comparava a vida de Esparta à de Persépolis; mas, não podes conhecer os prazeres do meu.”

Como um corcel indômito, que eriça as crinas, escarva o chão, e se debate impetuosamente à simples aproximação do freio, ao passo que um cavalo domesticado sofre pacientemente o chicote e a espora, o homem bárbaro não dobra a cabeça ao jugo que o homem civilizado suporta sem murmurar, e prefere a mais tempestuosa liberdade a uma submissão tranqüila. Assim, pois, não é pelo aviltamento dos povos subjugados que devemos julgar as disposições naturais do homem pró ou contra a servidão, mas pelos prodígios que fizeram todos os povos livres para se livrarem da opressão. Sei que os primeiros não fazem senão gabar sem cessar a paz e o repouso de que gozam nos seus ferros, e que miserrimam servitutem pacem appellant: mas, quando vejo os outros sacrificar os prazeres, o repouso, a riqueza, o poder e a própria vida à conservação do único bem tão desdenhado por aqueles que o perderam; quando vejo animais nascidos livres, e abominando o cativeiro, quebrar a cabeça contra as grades da prisão; quando vejo multidões de selvagens completamente nus desprezar as voluptuosidades européias, e arrostar a fome, o fogo, o ferro e a morte, para não conservar senão a sua independência, sinto que não compete a escravos raciocinar sobre a liberdade.

Quanto à autoridade paternal, de que muitos fizeram derivar o governo absoluto e toda a sociedade, sem recorrer às provas contrárias de Locke e de Sidney, basta notar que nada no mundo está mais afastado do espírito feroz do despotismo do que a doçura dessa autoridade, que considera mais a vantagem daquele que obedece do que a utilidade do que comanda; que, pela lei de natureza, o pai não é o senhor do filho senão enquanto o seu auxilio lhe é necessário; que, passando esse termo, tornam-se iguais, e, então, o filho, perfeitamente independente do pai, só lhe deve respeito e não obediência. Porque o reconhecimento é bem um dever que é preciso cumprir, mas não um direito que se possa exigir. Em vez de dizer que a sociedade civil deriva do poder paternal, é preciso dizer, ao contrário, que é dela que esse poder tira a sua principa1 força. Um indivíduo não foi reconhecido pelo pai de muitos senão quando permaneceram reunidos em torno dele. Os bens do pai, dos quais é verdadeiramente o senhor, são os laços que retêm os filhos na sua dependência, e ele pode não lhes dar parte na sucessão senão à proporção que dele merecerem por uma contínua deferência às suas vontades. Ora, longe dos súditos esperarem qualquer favor semelhante do seu déspota, como lhe pertencem, eles e tudo quanto possuem, ou pelo menos assim ele o pretende, são reduzidos a receber como favor o que lhes deixa do seu próprio bem: faz justiça quando os despoja, e mercê quando os deixa viver.

Continuando a examinar assim os fatos pelo direito, não se encontraria mais solidez do que verdade no estabelecimento voluntário da tirania, e seria difícil mostrar a validade de um contrato que não obrigasse senão uma das partes, onde tudo fosse posto de um lado e nada do outro, e que não se transformasse em prejuízo daquele que se obriga. Esse sistema odioso está bem longe, de ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons monarcas, e principalmente dos reis de França, como se pode ver em diversos parágrafos de seus editos e, em particular, na passagem seguinte de um escrito célebre publicado em 1667, em nome e por ordem de Luiz XIV: “Que não se diga que o soberano não está sujeito às leis do seu Estado, pois que a proposição contrária é uma verdade do direito das gentes, que a lisonja algumas vezes atacou, porém que os bons príncipes sempre defenderam como uma divindade tutelar dos seus Estados. Como é mais legítimo dizer, com o sábio Platão, que a perfeita felicidade de um reino consiste em que um príncipe seja obedecido por seus súditos, que o príncipe obedeça à lei, e que a lei seja reta e sempre dirigida para o bem público!” Não me deterei a investigar se, sendo a liberdade a mais nobre das faculdades do homem, não é degradar a sua natureza, pôr-se ao nível dos animais escravos do instinto e ofender mesmo o autor do seu ser, renunciar sem reserva ao mais precioso de todos os seus dons, submeter-se a cometer todos os crimes que nos são proibidos por ele, para comprazer a um senhor feroz ou insensato, e se esse operário sublime deve ficar mais irritado de ver destruir do que desonrar a sua mais bela obra. Esquecerei mesmo, se se quiser, a autoridade de Barbeyrac, que declara nitidamente, conforme Locke, que ninguém pode vender sua liberdade até se submeter a um poder arbitrário que o trate segundo a sua fantasia: Porque, acrescenta ele, seria vender a própria vida, da qual não se é o dono. Perguntarei somente com que direito aqueles que não temem aviltar-se a tal ponto podem submeter sua posteridade à mesma ignomínia e renunciar por ela a bens que não dependem da sua liberalidade, e sem os quais a vida mesma é onerosa para todos os que dela são dignos.

Pufendorff diz que, da mesma maneira por que se transferem seus bens a outrem por meio de convenções e contratos, pode-se também se despojar de sua liberdade em favor de alguém. Aí está, me parece, um péssimo raciocínio: porque, primeiramente, o bem que alieno torna-se-me coisa inteiramente estranha, e cujo abuso me é indiferente; mas, importa a mim que não se abuse da minha liberdade, e não posso, sem me tornar culpado do mal que me forçarem a fazer, expor-me a me tornar instrumento do crime. De resto, não passando o direito de propriedade de convenção e instituição humana, todo homem pode à vontade dispor do que possui: mas não acontece o mesmo com os dons essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade, que é permitido a cada um gozar e que pelo menos é duvidoso que se tenha o direito de se despojar: perdendo-se uma, degrada-se o ser; perdendo-se a outra, aniquila-se tanto quanto existe em si: e, como nenhum bem temporário pode compensar uma e outra, seria ofender ao mesmo tempo a natureza e a razão renunciar a isso, por qualquer preço que fosse. Mas, mesmo que pudéssemos alienar nossos bens e nossa liberdade, a diferença seria muito grande para os filhos, que não gozassem dos bens do pai senão pela transmissão do seu direito. Sendo a liberdade, ao contrário, um dom que recebem da natureza na qualidade de homens, seus pais nenhum direito têm de os despojar. De sorte que, como para estabelecer a escravidão foi preciso fazer violência à natureza, também foi preciso mudá-la para perpetuar esse direito: e os jurisconsultos que pronunciaram gravemente que o filho de um escravo nasceria escravo decidiram, em outros termos, que um homem não nasceria homem.,

Parece-me certo, pois, que não somente os governos não começaram pelo poder arbitrário, que não é senão a sua corrupção, o termo extremo, e que finalmente os conduz exclusivamente à lei do mais forte, de que foram, primeiro, o remédio; mas ainda que, mesmo que tivessem começado por aí, esse poder, sendo por natureza ilegítimo, não pode servir de fundamento aos direitos da sociedade e nem, por conseguinte, à desigualdade de instituição.

Sem entrar, hoje, nas pesquisas que ainda estão por fazer, sobre a natureza do pacto fundamental de todo governo, limito-me, seguindo a opinião comum, a considerar aqui o estabelecimento do corpo político como um verdadeiro contrato entre o povo e os chefes que ele escolhe; contrato pelo qual as duas partes se obrigam à observância das leis nele estipuladas e que formam os laços da sua união. Tendo o povo, relativamente às relações sociais, reunido todas as suas vontades em uma só, todos os artigos sobre os quais essa vontade se explica se tornam outras tantas leis fundamentais que obrigam todos os membros do Estado sem exceção, e uma das quais regula e escolhe o poder dos magistrados encarregados de velar pela execução das outras. Esse poder se estende a tudo o que pode manter a constituição, sem ir ao ponto de mudá-la. Acrescentam-se a isso honras que tornam respeitáveis as leis e os seus ministros, e, para estes pessoalmente, prerrogativas que os compensam dos penosos trabalhos. que custa uma boa administração. O magistrado de seu lado, se obriga a não usar do poder que lhe é confiado senão segundo a intenção dos comitentes, a manter cada um no gozo pacífico do que lhe pertence, e a preferir em toda ocasião a utilidade pública ao seu interesse próprio.

Antes que a experiência mostrasse, ou que o conhecimento do coração humano tivesse feito prever os abusos inevitáveis de uma tal constituição, ela devia parecer tanto melhor quanto dos que estavam encarregados de velar pela sua conservação eram eles próprios os mais interessados: porque a magistratura e seus direitos, não sendo estabelecidos senão sobre as leis fundamentais, logo que fossem destruídas, os magistrados cessariam de ser legítimos, o povo não estaria mais obrigado a lhes obedecer; e, como não teria sido o magistrado, mas a lei, que teria constituído a essência do Estado, cada um entraria novamente de direito na sua liberdade natural.

Por pouco que se tenha refletido atentamente, isso se confirmaria por novas razões; e, pela natureza do contrato, se veria que não poderia ser irrevogável; porque, se não havia poder superior que pudesse ser fiador da fidelidade dos contratantes, nem forçá-los a cumprir seus compromissos recíprocos, as partes seriam os únicos juizes na sua própria causa, e cada uma teria sempre o direito de renunciar ao contrato logo que percebesse que o outro transgredia as condições, ou quando essas condições cessassem de lhe convir. É sobre esse princípio que parece que o direito de abdicar pode ser fundado. Ora, a não considerar, como fazemos, senão a instituição humana, se o magistrado, que tem todo o poder nas mãos e que se apropria de todas as vantagens do contrato, tivesse contudo o direito de renunciar à autoridade, com mais forte razão o povo, que paga todos os erros dos chefes, deveria ter o direito de renunciar à dependência. Mas, as dissenções horríveis, as desordens infinitas, que necessariamente acarretaria esse perigoso poder, mostram, mais do que qualquer outra coisa, como os governos humanos tinham necessidade de uma base mais sólida do que a simples razão, e como era necessário ao repouso público que a vontade divina interviesse para dar à autoridade soberana um caráter sagrado e inviolável, que tirasse aos súditos o funesto direito de dispor dela. Quando a religião só tivesse feito esse bem aos homens, seria isso o bastante para que todos a quisessem e adotassem, mesmo com seus abusos, pois que ela poupa ainda mais sangue do que o fanatismo o faz correr. Mas, sigamos o fio de nossa hipótese.

As diversas formas de governo tiram a sua origem das diferenças mais ou menos grandes que se encontraram entre os particulares no momento da instituição. Um homem era eminente em poder, em virtude, em riqueza, em crédito; só ele foi eleito magistrado, e o Estado se torna monárquico. Se muitos, mais ou menos iguais entre si, superavam todos os outros, eram eleitos conjuntamente, e se teve uma aristocracia. Aqueles cuja fortuna ou talentos eram menos desproporcionados, e que menos se tinham afastado do estado de natureza, guardaram em comum a administração suprema, e formaram uma democracia. O tempo verificou qual dessas formas era mais vantajosa para os homens. Uns ficaram unicamente submetidos às leis, os outros logo obedeceram a senhores. Os cidadãos quiseram conservar sua liberdade; os súditos não pensaram senão em tirá-la dos vizinhos, não podendo suportar que outros gozassem de um bem de que eles próprios não gozavam. Em uma palavra, de um lado foram as riquezas e as conquistas, e do outro, a felicidade e a virtude.

Nesses diversos governos, todas as magistraturas foram primeiro eletivas; e, quando a riqueza não prevalecia, a preferência era concedida ao mérito que dá um ascendente natural, e à unidade, que dá a experiência nos negócios e o sangue-frio nas deliberações. Os antigos dos hebreus, os gerontes de Esparta, o senado de Roma, e a própria etimologia da nossa palavra senhor, mostram como outrora a velhice era respeitada. Quanto mais as eleições recaíam sobre homens avançados em idade, tanto mais se tornavam freqüentes e mais os seus embaraços se faziam sentir: as intrigas se introduziram, as facções se formaram, os partidos se acirraram, as guerras civis se atiçaram, enfim o sangue dos cidadãos foi sacrificado à pretensa felicidade do Estado, e esteve-se a ponto de cair na desordem dos tempos anteriores. A ambição dos principais aproveitou-se das circunstâncias para perpetuar seus cargos nas suas famílias; o povo, já acostumado à dependência, ao repouso, e às comodidades da vida, e já incapaz de poder quebrar os ferros, consentiu em deixar aumentar sua servidão para firmar sua tranqüilidade: e foi assim que os chefes, tornados hereditários, acostumaram-se a olhar sua magistratura como um bem de família; a se olharem eles mesmos como os proprietários do Estado, do qual, a princípio, eram apenas oficiais; a considerar seus concidadãos como seus escravos; a contá-los, como gado, no número das coisas que lhes pertenciam; e a se considerarem eles próprios iguais aos deuses e reis dos reis.

Se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, veremos que o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. De sorte que a condição de rico e de pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e de fraco pela segunda, e pela terceira a de senhor e de escravo, que é o último grau de desigualdade, o termo ao qual chegam finalmente todos os outros, até que novas revoluções dissolvem completamente o governo, ou o aproximam da instituição legítima.

Para compreender a necessidade desse progresso, é preciso considerar menos os motivos do estabelecimento do corpo político do que a forma que toma na sua execução e os inconvenientes que acarreta; porque os vícios que tornam necessárias as instituições sociais são os mesmos que tornam o seu abuso inevitável: e como, excetuada unicamente Esparta, em que a lei velava principalmente pela educação das crianças e em que Licurgo estabeleceu costumes que o dispensavam quase de lhes acrescentar leis, as leis, em geral menos fortes do que as paixões, contêm os homens sem os mudar, seria fácil provar que todo governo que, sem se corromper nem se alterar, marchasse sempre exatamente segundo o fim de sua instituição, teria sido instituído sem necessidade, e que um país no qual ninguém frustrasse as leis e não abusasse da magistratura não teria necessidade nem de magistrados nem de leis.

As distinções políticas conduzem necessariamente às distinções civis. A desigualdade crescente entre o povo e seus chefes fez-se logo sentir entre os particulares, entre eles se modificando de mil maneiras, segundo as paixões, os talentos e as ocorrências. O magistrado não poderia usurpar um poder ilegítimo sem o auxílio de criaturas às quais é forçado a ceder alguma parte. Aliás, os cidadãos só se deixam oprimir na medida em que são arrastados por uma cega ambição e, olhando mais abaixo do que acima deles, a dominação torna-se-lhes mais cara do que a independência, e em que consentem em carregar cadeias para poder distribuí-las por sua vez. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura mandar, e o político mais hábil não conseguiria sujeitar homens que só quisessem ser livres, Mas, a desigualdade se estende sem dificuldade entre as almas ambiciosas e covardes, sempre prontas a correr os riscos da fortuna e a dominar ou servir quase indiferentemente, conforme ela se lhes torne favorável ou contrária. É assim que deve ter havido um tempo em que os olhos do povo foram fascinados a tal ponto que os seus condutores só tinham que dizer ao mais pequeno dos homens: “Sê grande, tu e toda a tua raça”. E logo ele parecia grande a toda a gente como aos seus próprios olhos, e os seus descendentes se elevavam ainda à medida que dele se afastavam: quanto mais remota e incerta era a causa, tanto mais aumentava o efeito; quanto mais se podiam contar os vadios em uma família, tanto mais se tornava, ilustre.

Se aqui coubessem detalhes, eu explicaria facilmente como, mesmo que o governo não se envolva nisso, a desigualdade de crédito e de autoridade se torna inevitável entre os particulares(19), logo que, reunidos em uma mesma sociedade, são forçados a se comparar entre si e a ter em conta as diferenças encontradas no uso contínuo que fazem uns dos outros. Essas diferenças são de muitas espécies. Mas, em geral, a riqueza, a nobreza ou a posição, o poder e o mérito pessoal, sendo as principais distinções pelas quais as pessoas se medem nas sociedades, eu provaria que o acordo ou o conflito dessas forças diversas é a indicação mais segura de um Estado bem ou mal constituído: faria ver que, entre essas quatro espécies de desigualdade, sendo as qualidades pessoais a origem de todas as outras, a riqueza é a última à qual se reduzem por fim, porque, sendo a mais imediatamente útil ao bem estar e a mais fácil de comunicar, dela se servem fácilmente para comprar todo o resto. Essa observação pode fazer julgar bastante exatamente da medida da qual cada povo se afastou de sua instituição primitiva e do caminho que fez para o termo extremo da corrupção. Observaria quanto esse desejo universal de reputação, de honras e de preferências que a todos nos devora, exerce e compara os talentos e as forças; quanto excita e multiplica as paixões; e quanto, tornando todos os homens concorrentes, rivais, ou antes, inimigos, causa diariamente reveses, sucessos e catástrofes de toda espécie, fazendo tantos pretendentes correr a mesma liça. Mostraria que é a esse ardor de fazer falar de si, a esse furor de se distinguir que nos coloca quase sempre fora de nós mesmos, que devemos o que há de melhor e de pior entre os homens, as nossas virtudes e os nossos vícios, as nossas ciências e nossos erros, os nossos conquistadores e os nossos filósofos, isto é, uma multidão de más coisas sobre um pequeno número de boas. Provaria, finalmente, que, se vemos um punhado de poderosos e de ricos no pináculo das grandezas e da fortuna, enquanto a multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque os primeiros só estimam as coisas de que gozam na medida em que os outros delas são privados, porque, sem mudar de estado, cessariam de ser felizes se o povo cessasse de ser miserável.

Mas, esses detalhes constituiriam, por si, matéria de uma obra considerável, na qual se pesariam as vantagens e os inconvenientes de todo governo, relativamente aos direitos do estado de natureza, e na qual se desvendariam todas as faces diferentes sob as quais a desigualdade se mostrou até ao dia de hoje e poderá mostrar, nos séculos futuros, segundo a natureza desses governos e as revoluções que o tempo trará necessariamente. Ver-se-ia a multidão oprimida, internamente, em virtude das próprias precauções tomadas contra o que a ameaçava no exterior; ver-se-ia a opressão crescer continuamente, sem que os oprimidos pudessem jamais saber que termo teria, nem que meios legítimos lhes restariam para contê-la; ver-se-iam os direitos dos cidadãos e as liberdades nacionais se extinguirem pouco a pouco, e as reclamações dos fracos serem consideradas como murmúrios sediciosos; ver-se-ia a política restringir a uma porção mercenária do povo a honra de defender a causa comum; ver-se-ia surgir daí a necessidade dos impostos, o lavrador desanimado abandonar o campo, mesmo durante a paz, e deixar a charrua para cingir a espada; ver-se-iam os defensores da pátria cedo ou tarde tornarem-se seus inimigos, segurando sem cessar o punhal levantado contra os seus concidadãos; e viria um tempo em que os ouviríamos dizer ao opressor de seu país:

Pectore si fratris gladium jugloque parentis

Condere me jubeas, gravidoeque in viscera partu

Conjugis, invita peragam tamen omnia dextra.

Lucan, lib. I, V. 376.

Tradução (aproximada) do latim - Esta tradução não está no E-book

Quem é um pai, se seu irmão julga com a espada no peito

Eu encontrei enquanto estava grávida de órgãos iguais de nascimento

O parceiro que, apesar de tudo, porém, eu executo com a mão direita.

Da extrema desigualdade das condições e das fortunas, da diversidade das paixões e dos talentos, das artes inúteis, das artes perniciosas, das ciências frívolas, saíram multidões de preconceitos igualmente contrários à razão, à felicidade e à virtude: ver-se-ia fomentar pelos chefes tudo o que pode enfraquecer homens reunidos desunindo-os, tudo o que pode dar à sociedade um ar de concórdia aparente e nela semear um germe de divisão real, tudo o que pode inspirar às diferentes ordens uma desconfiança e um ódio mútuo pela oposição dos seus direitos e dos seus interesses, e fortificar, por conseguinte, o poder que os contém a todos. É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, levantando gradativamente a cabeça hedionda, e devorando tudo o que teria percebido de bom e de são em todas as partes do Estado, conseguiria finalmente calcar aos pés as leis e o povo, e se estabelecer sobre as ruínas da república. Os tempos que precederiam essa última mudança seriam tempos de perturbações e calamidades; mas, por fim, tudo seria engolido pelo monstro, e os povos não teriam mais chefes nem leis, porém tiranos exclusivamente. Desde esse instante, também não se trataria de costumes e virtudes: porquanto por toda parte onde reina, cui ex honesto nulla est spes, o despotismo não suporta nenhum outro senhor; desde que ele fala, não há probidade nem dever que consultar, e a mais cega obediência é a única virtude que resta aos escravos.

Aqui está o último termo da desigualdade, e o ponto extremo que fecha o círculo e toca no ponto de onde partimos; é aqui que todos os particulares voltam a ser iguais, porque nada são, e os súditos não tendo mais outra lei senão a vontade do senhor, nem o senhor outra regra senão as suas paixões, as noções do bem e os princípios da justiça desaparecem de ora em diante; é aqui que tudo conduz exclusivamente à lei do mais forte, e, por conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele pelo qual começamos, sendo que um era o estado de natureza na sua pureza, e este último é o fruto de um excesso de corrupção. Há tão pouca diferença, aliás, entre esses dois estados, e o contrato de governo é de tal modo dissolvido pelo despotismo, que o déspota não é senhor senão durante o tempo em que é o mais forte; e, logo que o podem expulsar, não tem que reclamar contra a violência. A sublevação que acaba por estrangular ou destronar um sultão é um ato tão jurídico como aqueles pelos quais ele dispunha, na véspera, das vidas e dos bens dos súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas as coisas se passam assim, segundo a ordem natural; e, qualquer que possa ser o advento dessas curtas e freqüentes revoluções, ninguém se pode queixar das injustiças de outrem, mas somente da sua própria imprudência ou da sua desgraça.

Descobrindo e seguindo assim as estradas esquecidas e perdidas que do estado natural deviam ter conduzido o homem ao estado civil; restabelecendo, com as posições intermediárias que acabo de notar, as que o tempo limitado me faz suprimir, ou que a imaginação me não sugeriu, todo leitor atento deverá ficar impressionado com a distância imensa que separa esses dois estados. É nessa lenta sucessão das coisas que verá a solução de uma infinidade de problemas de moral e de política que os filósofos não podem resolver. Sentirá que o gênero humano de uma idade, não sendo o gênero humano de outra idade, a razão por que Diógenes não encontrava um homem, é que ele procurava entre os seus contemporâneos o homem de um tempo que não existia mais. Catão, dirá ele, pereceu com Roma e a liberdade porque esteve deslocado no seu século, e o maior dos homens não fez senão assombrar o mundo que ele tivesse governado quinhentos anos mais cedo. Em uma palavra, explicará como a alma e as paixões humanas, alterando-se insensivelmente, mudam por assim dizer de natureza; porque as nossas necessidades e os nossos prazeres mudam de objeto com o tempo; porque, o homem original desvanecendo-se gradativamente, a sociedade não mais oferece aos olhos do sábio senão um ajuntamento de homens artificiais e de paixões factícias que são obra de todas essas novas relações, e não têm nenhum verdadeiro fundamento na natureza. O que a reflexão nos ensina sobre isso, a observação o confirma perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo no fundo do coração e nas inclinações, que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só respira o repouso e a liberdade; só quer viver e ficar ocioso, e a própria ataraxia do estóico não se aproxima da sua indiferença profunda por qualquer outro objeto. Ao contrário, o cidadão, sempre ativo, sua, agita-se, atormenta-se sem cessar para buscar ocupações ainda mais laboriosas; trabalha até à morte, corre mesmo em sua direção para se pôr em estado de viver, ou renuncia à vida para adquirir a imortalidade; faz a corte aos grandes que odeia e aos ricos que despreza; nada poupa para obter a honra de o servir; gaba-se orgulhosamente de sua baixeza e de sua proteção; e, vaidoso de sua escravidão, fala com desdém daqueles que não têm a honra de a partilhar. Que espetáculo para um caraiba os trabalhos penosos e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não prefereria esse selvagem indolente ao horror de vida semelhante, que muitas vezes nem mesmo é compensada pelo prazer de fazer o bem! Mas, para ver o fim de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido em seu espírito; que aprendesse que há uma espécie de homens que contam para alguma coisa com os olhares do resto do universo, que sabem ser felizes e contentes consigo mesmos com o testemunho de outrem mais do que com o seu próprio. Tal é, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, não sabe viver senão na opinião dos outros, e é, por assim dizer, exclusivamente do seu julgamento que tira o sentimento de sua própria existência. Escapa ao meu tema mostrar como de tal disposição nasce tanta indiferença pelo bem e o mal, com tão belos discursos de moral; como, reduzindo-se tudo às aparências, tudo se torna factício e representado, honra, amizade, virtude, e muitas vezes até os próprios vícios, cujo segredo de se glorificar finalmente se encontra; como, em uma palavra, perguntando sempre aos outros o que somos, e não ousando jamais interrogar-nos sobre isso nós mesmos, no meio de tanta filosofia, humanidade, polidez, máximas sublimes, não temos senão um exterior enganador e frívolo, honra, sem virtude, razão sem sabedoria, e prazer sem felicidade. Basta-me ter provado que esse não é o estado original do homem, e que só o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra modificam e alteram, assim, todas as nossas inclinações naturais.

Tratei de expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das sociedades políticas, tanto quanto essas coisas se podem deduzir da natureza do homem pelas luzes exclusivas da razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção do direito divino. Resulta do exposto que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Resulta ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as vezes que não concorre na mesma proporção com a desigualdade física. Essa distinção determina suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei de natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário.

ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

Acrescentei algumas notas a esta obra, segundo o meu costume preguiçoso de trabalhar com interrupções. Essas notas, às vezes, se afastam muito do assunto, para que devam ser lidas com o texto. Transportei-as, pois, para o fim do Discurso, no qual procurei seguir, tanto quanto me foi possível, o caminho mais acertado. Os que tiverem coragem de recomeçar poderão divertir-se novamente embrenhando-se na mata e tentando percorrer as notas: quanto aos outros, pouco mal haverá em que de todo não as leiam.

NOTAS

(1) — Dedicatória. — Conta Heródoto que, após o assassínio do falso Esmerdis, os sete libertadores da Pérsia, estando reunidos para deliberar sobre a forma do governo que dariam ao Estado, Otanés opina fortemente pela república. Essa opinião era tanto mais extraordinária na boca de um sátrapa quanto, além da pretensão que ele podia ter ao império, os grandes temem mais do que a morte uma espécie de governo que os force a respeitar os homens. Otanés, como bem se pode crer, não foi ouvido; e, vendo que se ia proceder à eleição de um monarca, ele, que não queria obedecer nem mandar, cedeu voluntariamente aos outros concorrentes o seu direito à coroa, pedindo como única indenização que fosse livre e independente com sua posteridade, o que lhe foi concedido. Quando Heródoto não nos dissesse qual a restrição feita a esse privilégio, seria necessário supô-la. Do contrário, Otanés não reconhecendo nenhuma espécie de lei e não tendo que prestar contas a ninguém, teria sido poderoso no Estado e mais poderoso do que o próprio rei. Mas, não havia aparência de que um homem capaz de se contentar, em semelhante caso, com tal privilégio, fosse capaz de abusar dele. Com efeito, não se vê que esse direito tenha causado jamais a menor perturbação no reino, nem pelo sábio Otanés, nem por nenhum dos seus descendentes.

(2) — Prefácio. — Desde os meus primeiros passos, eu me apoio, confiante, em uma dessas autoridades respeitáveis para os filósofos, porque elas vêm de uma razão sólida e sublime que só eles sabem encontrar e sentir.

“Algum interesse que tenhamos em nos conhecer a nós mesmos, não sei se não conhecemos melhor tudo o que não somos. Providos pela natureza de órgãos unicamente destinados à nossa conservação, não os empregamos senão para receber as impressões estranhas: não procuramos senão nos expandir e existir fora do nós: demasiado ocupados em multiplicar as funções dos nossos sentidos e em aumentar a extensão exterior de nosso ser, raramente fazemos uso desse sentido interior que nos reduz às nossas verdadeiras dimensões, e que separa de nós tudo quanto não está em nós. Entretanto, desse sentido é que devemos servir-nos se queremos conhecer-nos; é o único pelo qual podemos julgar-nos. Mas, como dar a esse sentido sua atividade e toda a sua extensão? como desprender nossa alma, na qual ele reside, de todas as ilusões do nosso espírito? Perdemos o hábito de empregá-la, ficando ela sem exercício no meio do tumulto das nossas sensações corporais e consumindo-se pelo fogo das nossas paixões. O coração, o espírito, os. sentidos, tudo trabalhou contra ela.” (HIST. NAT., Da Natureza do Homem.)

(3) — Discurso. — As transformações que um longo hábito de caminhar sobre dois pés pode produzir na conformação do homem, as relações que ainda se observam entre os seus braços e as pernas anteriores dos quadrúpedes, e a indução tirada de sua maneira de andar, puderam fazer nascer dúvidas sobre a que nos devia ser mais natural. Todas as crianças começam a andar de quatro pés e têm necessidade do nosso exemplo e das nossas lições para aprender a se manter de pé. Há mesmo nações selvagens, tais como os hotentotes, que descuidam muito das crianças o as deixam caminhar com as mãos tanto tempo que depois têm muita dificuldade em se levantar. Assim também acontece com os filhos dos caraibas, nas Antilhas. Há diversos exemplos de homens quadrúpedes, e eu poderia citar, entre outros, o da criança que foi encontrada em 1344, perto de Hesse, onde havia sido nutrida por lobos, e que dizia depois, na corte do príncipe Henrique, que, se não fosse este, teria preferido voltar para junto deles a viver entre os homens. Adquirira de tal modo o hábito de andar como esses animais que foi preciso lhe amarrarem peças de maneira que a forçassem a se manter de pé e equilibrando-se nos dois pés. Aconteceu o mesmo com a criança que foi encontrada em 1694 nas florestas da Lituânia, e que vivia entre ursos. Não dava, diz Condillac, nenhum sinal de razão, caminhava com pés e mãos, não possuía nenhuma linguagem e formava sons que em nada se assemelhavam aos do homem. O pequeno selvagem de Hanovre, que foi conduzido há muitos anos para a corte da Inglaterra, teve todos os sofrimentos do mundo ao se sujeitar a caminhar sobre os dois pés; e encontraram-se, em 1719, dois outros selvagens nos Pireneus, que corriam pelas montanhas à maneira de quadrúpedes. Quanto ao que se poderia objetar, que é privar-se do uso das mãos do que tiramos tantas vantagens, além do exemplo dos macacos que nos mostra que a mão pode muito bem ser empregada das duas maneiras, isso provaria somente que o homem pode dar a seus membros um destino mais cômodo do que o da natureza, e não que a natureza destinou o homem a andar de modo diferente do que ensina.

Mas, há, ao que me parece, muito melhores razões para sustentar que o homem é um bípede. Primeiramente, quando alguém fizesse ver que ele podia primeiro ser conformado diferentemente do que o vemos e, entretanto, tornar-se finalmente o que é, isso não seria o bastante para se concluir que foi assim, porque, depois de haver mostrado a possibilidade dessas transformações, seria preciso ainda, antes de as admitir, mostrar ao menos a sua verossimilhança. De resto, se os braços do homem parecem ter podido servir-lhe de pernas quando necessário, é a única observação favorável a esse sistema, sobre um grande número de outras que lhe são contrárias. As principais são: que a maneira pela qual a cabeça do homem está ligada ao corpo, em vez de dirigir sua vista horizontalmente, como todos os outros animais e como ele mesmo caminhando de pé, teria, caminhando de quatro pés, os olhos diretamente fixados no chão, situação muito pouco favorável à conservação do indivíduo; que a cauda que lhe falta, e com a qual nada tem que fazer caminhando com dois pés, é útil aos quadrúpedes e nenhum deles é dela privado; que os seios da mulher, muito bem situados para um bípede, que carrega o filho nos braços, ficariam tão mal para um quadrúpede que nenhum os tem colocados dessa maneira; que a parte traseira, sendo de altura excessiva proporcionalmente às pernas da frente, o que faz que, caminhando de quatro pés, nos arrastemos sobre os joelhos, faria um animal mal proporcionado e caminhando pouco comodamente; que, se o homem pousasse os pés inteiramente como as mãos, teria nas pernas posteriores uma articulação menos do que os outros animais, a saber, a que une a cana à tíbia; e que, só pousando a ponta do pé, como sem dúvida seria constrangido a fazer, o tarso, sem falar da pluralidade dos ossos que o compõem, pareceria muito grosso para ficar no lugar da cana, e as suas articulações com o metatarso e a tíbia muito próximas para dar à perna humana, nessa situação, a mesma flexibilidade que têm as dos quadrúpedes. O exemplo das crianças, tomado numa idade em que as forças naturais ainda não estão desenvolvidas, nem os membros consolidados, nada conclui; eu gostaria também de dizer que os cães não estão destinados a caminhar, porque só se arrastam algumas semanas depois do nascimento. Os fatos particulares têm ainda pouca força contra a prática universal de todos os. homens, mesmo das nações que, não tendo tido nenhuma comunicação com as outras, nada tinham podido imitar delas. Uma criança abandonada em uma floresta antes do poder andar, e nutrida por qualquer animal, terá seguido o exemplo de sua nutriz, exercitando-se a caminhar do mesmo modo; o hábito lhe terá podido dar facilidades que não teve da natureza; e, assim como os manetas conseguem, à força de exercício, fazer com os pés tudo quanto fazemos com as mãos, ela conseguirá finalmente empregar as mãos em lugar dos pés.

(4) — Se, entre os meus leitores houvesse um físico bastante mau para me criar dificuldades sobre a suposição dessa fertilidade natural da terra, eu lhe responderia com a passagem seguinte:

“Como os vegetais tiram para a sua nutrição mais substâncias do ar e da água do que da terra, acontece que, apodrecendo, restituem à terra mais do que dela tiraram; aliás, uma floresta determina as águas da chuva detendo os vapores. Assim, em um bosque conservado muito tempo sem ser tocado, a camada de terra que serve para a vegetação aumentaria consideravelmente; mas, os animais, dando menos à terra do que tiram dela, e os homens, consumindo enorme quantidade de madeira e de plantas para o fogo e outros usos, resulta que a camada de terra vegetal de um país habitado deve sempre diminuir o tornar-se enfim como o terreno da Arábia Pétrea e como o de tantas províncias do Oriente, que é efetivamente o clima mais antigamente habitado, onde só se encontram sal e areia: porque o sal fixo das plantas e dos animais fica, ao passo que todas as outras partes se volatilizam.” (HIST. NAT, Provas da Teoria da Terra, art. 7.).

Pode-se acrescentar a isso a prova de fato pela quantidade de árvores e plantas de toda espécie de que estão cheias quase todas as ilhas desertas, descobertas nestes últimos séculos, e pelo que a história nos ensina das florestas imensas que foi preciso abater em toda a terra à medida que se povoou e foi policiada Sobre isso, farei ainda as três observações seguintes: a primeira é que, se há uma espécie de vegetais que possam compensar o desperdício de matéria vegetal que fazem os animais, segundo o raciocínio de Buffon, são principalmente os bosques, cujas copas e folhas reúnem e possuem mais águas e vapores do que as outras plantas; a segunda é que a destruição do solo, isto é, a perda da substância própria à vegetação, deve acelerar-se à proporção que a terra é mais cultivada, e que os habitantes mais industriosos consomem em maior abundância as suas produções de toda espécie; e a terceira e mais importante observação é que os frutos das árvores fornecem ao animal uma nutrição mais abundante do que os outros vegetais. A experiência foi feita por mim mesmo, ao comparar os produtos de dois terrenos iguais em grandeza e qualidade, um coberto de castanheiros e outro semeado de trigo.

(5) — Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais universais das espécies vorazes se tiram, uma da forma dos dentes; e a outra da conformação dos intestinos. Os animais que vivem exclusivamente de vegetais têm todos os dentes chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro, a lebre; mas, os vorazes os têm pontudos, como o gato, o cão, o lobo, a raposa. E, quanto aos intestinos, os frugívoros têm alguns, assim como o cólon, que não se encontram nos animais vorazes. Parece, pois, que o homem, tendo os dentes e os intestinos como os têm os animais frugívoros, deveria naturalmente ser incluído nessa classe; e não somente as observações anatômicas confirmam essa opinião, mas os monumentos da antigüidade lhe são ainda mais favoráveis. “Dicearco, diz São Jerônimo, refere, nos seus livros das antigüidades gregas, que, sob o reino de Saturno, em que a terra era ainda fértil, por si mesma, nenhum homem comia carne, mas viviam todos de frutas e legumes que cresciam naturalmente.” (Liv. II, adv. Jovinian.) Essa opinião pode apoiar-se ainda nas narrativas de muitos viajantes modernos. François Corréal testemunha, entre outros, que a maior parte dos habitantes das Lucaias, que os espanhóis transportaram para as ilhas de Cuba, de São Domingos e alhures, morreram por haver comido carne. Por aí se pode ver que negligencio muitas vantagens que poderia fazer valer. Porque, sendo a presa quase o único motivo de combate entre os animais carniceiros, e vivendo os frugívoros entre eles em uma paz contínua, se a espécie humana fosse deste último gênero, claro que teria tido muito mais facilidade de subsistir no estado do natureza, e muito menos necessidade e ocasião de sair dele.

(6) — Todos os conhecimentos que pedem reflexão, todos os que só se adquirem com o encadeamento das idéias e só se aperfeiçoam sucessivamente, parecem estar inteiramente fora do alcance do homem selvagem, pela falta de comunicação com os seus semelhantes, isto é, por falta do instrumento que serve para essa comunicação e das necessidades que a tornam necessária. Seu saber e sua indústria se limitam a saltar, correr, bater-se, lançar uma pedra, subir em uma árvore. Mas, se só sabe essas coisas, em compensação as sabe muito melhor do que nós, que não temos a mesma necessidade dela que ele. E, como dependem unicamente do exercício do corpo, não sendo suscetíveis de nenhuma comunicação nem de nenhum progresso de um indivíduo para outro, o primeiro homem pode ser nisso tão hábil quanto os seus descendentes.

As narrativas dos viajantes estão cheias de exemplos da força e do vigor dos homens nas nações bárbaras e selvagens; não gabam menos sua destreza e agilidade; e, como basta ter olhos para observar essas coisas, nada impede que nos mereça fé o que é certificado por testemunhas oculares. Tiro, ao acaso, alguns exemplos dos primeiros livros que me vêm às mãos.

“Os hotentotes, diz Kolben, conhecem melhor a pesca do que os europeus do Cabo. Sua habilidade é igual na rede, no anzol e no dardo, nas enseadas como nos rios. Não apanham menos habilmente o peixe com a mão. São de destreza incomparável para nadar. Sua maneira de nadar tem qualquer coisa de surpreendente e que lhes é totalmente própria. Nadam com o corpo direito e as mãos estendidas para fora d’água, de sorte que parecem andar na terra. Na maior agitação do mar e quando as ondas formam montanhas, eles dançam de certo modo sobre o dorso das vagas, subindo e descendo como um pedaço de cortiça.” “Os hotentotes, diz ainda, o mesmo autor, são de uma destreza surpreendente na caça, e a ligeireza de sua carreira ultrapassa a imaginação.” Admira que não façam mais freqüentemente um mau uso de sua agilidade, o que contudo acontece algumas vezes, como se pode julgar pelo exemplo que dá.

“Um marinheiro holandês, desembarcando no Cabo, encarregou, diz ele, um hotentote de o acompanhar à cidade com um rolo de tabaco de cerca de vinte libras. Quando os dois estavam a alguma distância da multidão, o hotentote perguntou ao marinheiro se ele sabia correr. “Correr? — responde o holandês, — sim, e muito bem..” — “Vejamos”, respondeu o africano, e, fugindo, com o tabaco, desapareceu quase imediatamente. O marinheiro, confundido com essa maravilhosa rapidez, nem pensou em segui-lo, e nunca mais viu o tabaco nem o seu portador.

Têm eles a vista tão pronta e a mão tão certa que os europeus nem se aproximam. A cem passos, acertam, com uma pedrada, num alvo do tamanho de meio soldo. E o que há de mais espantoso é que, em vez de fixar como nós os olhos no alvo, fazem movimentos e contorções contínuas. Parece que sua pedra é arremessada por uma. mão invisível.”

O padre Du Tertre diz, sobre os selvagens das Antilhas, mais ou menos as mesmas coisas que se acabam de ler sobre os hotentotes do Cabo da Boa Esperança. Exalta, sobretudo, a sua precisão em atirar com suas flechas em pássaros voando e em peixes na água, que agarram, em seguida, mergulhando. Os selvagens da América setentrional não são menos célebres pela força e destreza, e eis um exemplo que poderá servir para avaliar a dos índios da América meridional.

No ano de 1746, um índio de Buenos Aires, tendo sido condenado às galés em Cádiz, propôs ao governo resgatar sua liberdade expondo a vida em uma festa pública. Prometeu que atacaria sozinho o mais furioso touro sem outra arma nas mãos além de uma corda, e que o derrubaria, o seguraria com a corda pela parte que fosse indicada, o selaria, por-lhe-ia freio, montaria nele e combateria, montado, dois outros touros dos mais furiosos tirados do touril, matá-los-ia um após outro no instante que isso lhe fosse ordenado e sem o auxílio de ninguém. Foi atendido. O índio cumpriu a palavra e saiu-se bem em tudo quanto havia prometido. sobre a maneira como se portou e detalhes do combate, pode-se consultar o primeiro tomo in-12 das Observações sobre a História Natural, de Gautier, de onde esse fato foi tirado, pag. 262.

(7) — “A duração da vida dos cavalos, diz Buffon, é, como em todas as outras espécies de animais, proporcional à duração do tempo do seu crescimento. O homem, que leva catorze anos a crescer, pode viver seis ou sete vezes esse tempo, isto é, noventa ou cem anos, O cavalo, cujo crescimento se faz em quatro anos, pode viver seis ou sete vezes tanto, isto é, vinte e cinco ou trinta anos. Os exemplos que poderiam ser contrários a essa regra são tão raros que não devem mesmo ser olhados como exceção de onde se possam tirar conclusões; e, como os grandes cavalos crescem mais depressa do que os pequenos, vivem também menos tempo, e ficam velhos com quinze anos.” (HISTÓRIA NATURAL, Do Cavalo.)

(8) — Entre os animais carnívoros e os frugívoros, creio ver outra diferença ainda mais geral do que a que referi na nota 5, pois se estende também aos pássaros. Essa diferença consiste no número dos filhos, que não excede nunca de dois de cada vez para as espécies que não vivem senão de vegetais, e que ordinariamente ultrapassa esse número nos animais vorazes. É fácil conhecer, a esse respeito, o destino da natureza pelo número das maminhas, duas em cada fêmea da primeira espécie, como o jumento, a vaca, a cabra, a corça, a ovelha, etc., e que é sempre de seis ou de oito nas outras fêmeas, como a cadela, a gata, a loba, a onça, etc. A galinha, a gansa, a pata, que são todos animais vorazes, assim como a águia, o gavião, o mocho, põem também e chocam grande número de ovos, o que não acontece jamais com a pomba, a rola, nem com os pássaros que só comem grãos, os quais não põem nem chocam mais de dois ovos de cada vez. A razão que se pode dar a essa diferença é que os animais que só vivem de ervas e plantas estão quase o dia todo pastando, e, sendo forçados a empregar muito tempo a se nutrir, não dariam conta da nutrição dos seus filhotes, ao passo que os vorazes, fazendo seu repasto quase em um instante, podem mais facilmente e mais vezes ver os filhos e ir à caça, e reparar o gasto de uma grande quantidade de leite. A respeito de tudo isso, haveria muitas observações particulares e reflexões que fazer, mas não há aqui lugar para isso e me basta haver mostrado, nesta pequena parte, o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão de tirar o homem da classe dos carnívoros e de o colocar entre as espécies frugívoras.

(9) — Um autor célebre, calculando os bens e os males da vida humana, e comparando as duas somas, achou que a última ultrapassa muito a primeira, e que tomando o conjunto, a vida era para o homem um péssimo presente. Não fiquei surpreendido com a conclusão; ele tirou todos os seus raciocínios da constituição do homem civilizado. Se subisse até ao homem natural, pode-se julgar que encontraria resultados muito diferentes; porque perceberia que o homem só tem os males que se criou para si mesmo, o que à natureza se faria justiça. Não foi fácil chegarmos a ser tão desgraçados. Quando, de um lado, consideramos o imenso trabalho dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas forças empregadas, abismos entulhados, montanhas arrasadas, rochedos quebrados, rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos cavados, pantanais dissecados, construções enormes elevadas sobre a terra, o mar coberto de navios e marinheiros, e quando, olhando do outro lado, procuramos, meditando um pouco as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, só podemos nos impressionar com a espantosa desproporção que reina entre essas coisas, e deplorar a cegueira do homem, que, para nutrir seu orgulho louco, não sei que vã admiração de si mesmo, o faz correr ardorosamente para todas as misérias de que é suscetível e que a benfazeja natureza havia tomado cuidado em afastar dele.

Os homens são maus, uma triste e contínua experiência dispensa a prova; entretanto, o homem é naturalmente bom, creio havê-lo demonstrado. Que será, pois, que o pode ter depravado a esse ponto, senão as mudanças sobrevindas na sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Que se admire quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela conduz necessariamente os homens a se odiar entre si à proporção do crescimento dos seus interesses, a se retribuir mutuamente serviços aparentes, e a se fazer efetivamente todos os males imagináveis. Que se pode pensar de um comércio em que a razão de cada particular lhe dita máximas diretamente contrárias àquelas que a razão pública prega ao corpo da sociedade, e em que cada um tira os seus lucros da desgraça do outro? Não há, talvez, um homem abastado ao qual os seus herdeiros ávidos, e muitas vezes seus próprios filhos, não desejem a morte, secretamente. Não há um navio no mar cujo naufrágio não constituísse uma boa notícia para algum negociante; uma só casa que um devedor de má fé não quisesse ver queimada com todos os documentos; um só povo que não se regozijasse com os desastres dos vizinhos. É assim que tiramos vantagens do prejuízo dos nossos semelhantes, e que a perda de um faz quase sempre a prosperidade do outro. Mas, o que há de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas são a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares: uns querem as moléstias, outros, a mortalidade; outros, a guerra; outros, a fome. Vi homens horrorizados chorando de dor ante as aparências de um ano fértil; e o grande e funesto incêndio de Londres, que custou a vida e os bens a tantos desgraçados, fez a fortuna de mais de dez mil pessoas.

Sei que Montaigne lastima o ateniense Dêmades por ter feito punir um operário que, vendendo muito caro os caixões, ganhava muito com a morte dos cidadãos; mas, sendo a razão que Montaigne alega a de que seria preciso punir toda a gente, é evidente que confirma as minhas. Que se penetre, pois, através de nossas frívolas demonstrações de benevolência, no que se passa no fundo dos corações, e que se reflita no que deve ser um estado de coisas em que todos os homens são forçados a se acariciar e a se destruir mutuamente, e em que nascem inimigos por dever e velhacos por interesse. Se me respondem que a sociedade é assim constituída, que cada homem ganha em servir aos outros, replicarei que isso estaria muito bem se não ganhasse ainda mais para prejudicá-lo. Não há proveito tão legítimo que não seja ultrapassado pelo que se pode fazer ilegítimo, e o mal feito pelo próximo é sempre mais lucrativo que os serviços. Não se trata, pois, senão de achar os meios de assegurar a impunidade, e é para isso que os poderosos empregam todas as suas forças, e os fracos toda a sua astúcia.

O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar seu alimento, não chega nunca ao extremo sem ter antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar sua subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate, ele termina por alguns socos. O vencedor come o vencido vai procurar fortuna noutra parte, e tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente; trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm as delícias, depois as imensas riquezas, e depois súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais original é que, quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades, depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos homens, meu herói acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.

Comparai, sem preconceitos, o estado do homem civilizado com o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como além da sua maldade, suas necessidades e suas misérias, o primeiro abriu novas portas à miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos desolam, os trabalhos excessivos de que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de necessidades e outros de excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua perniciosa condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas, nas velhacarias dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno do vasilhame no qual são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos, nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas de nossas casas para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem precauções, e todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de terra que, consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os habitantes aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas acumulam continuamente sobre nossas cabeças, sentireis como a natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.

Não repetirei aqui o que já disse da guerra em páginas anteriores. Mas, desejaria que as pessoas instruídas quisessem ou ousassem dar em público os detalhes dos horrores cometidos, nos exércitos, pelos empresários dos víveres e dos hospitais: veríamos que suas manobras, não muito secretas, pelas quais os mais brilhantes exércitos se fundem em menos do que nada, fazem morrer mais soldados do que os ceifa o ferro inimigo. E ainda um cálculo não menos espantoso o dos homens que o mar engole todos os anos, pela fome, pelo escorbuto, pelos piratas, pelo fogo, pelos naufrágios. É claro que também é preciso assinalar por conta da propriedade estabelecida, o como conseqüência da sociedade, os assassínios, os envenenamentos, os roubos avultados, as próprias punições desses crimes, punições necessárias para prevenir maiores males, porém que, pelo assassínio do um homem, custando a vida a dois ou mais, não deixam de dobrar realmente a perda da espécie humana. Quantos meios vergonhosos de impedir o nascimento dos homens e de enganar a natureza: ou por esse gosto brutal e depravado que insulta a sua mais encantadora obra, gosto que os selvagens e os animais jamais conheceram, e que só nasce nos países policiados e da imaginação corrompida; ou por meio de abortos secretos, dignos frutos do deboche e da honra viciosa; ou pela exposição ou o assassínio de uma multidão de crianças, vítimas da miséria dos pais, ou. da vergonha bárbara das mães; ou, enfim, pela mutilação desses desgraçados, dos quais uma parte da existência e toda a posteridade são sacrificadas a vãs canções, ou, o que é ainda pior, ao brutal ciúme de alguns homens, mutilação que, neste último caso, ultraja duplamente a natureza, pelo tratamento que recebem aqueles que a suportam e pelo uso a que são destinados!.

Mas, não há milhares de casos mais freqüentes e mais perigosos ainda, em que os direitos paternos ofendem abertamente a humanidade? Quantos talentos enterrados e inclinações forçadas pelo imprudente constrangimento dos pais! quantos homens ter-se-iam distinguido em um estado apropriado, que morrem desgraçados e desonrados em outro estado para o qual não tinham nenhuma aptidão nem gosto! quantos casamentos felizes, mas desiguais foram rompidos ou perturbados, e quantas esposas castas desonradas, por essa ordem de condições sempre em contradição com a da natureza! quantas outras uniões esquisitas formadas pelo interesse e desaprovadas pelo amor e pela razão! quantos esposos honestos e virtuosos mutuamente se proporcionam suplícios por se terem escolhido mal! Quantas jovens e desgraçadas vítimas da avareza dos pais mergulham no vício ou passam seus tristes dias chorando e gemendo dentro desses laços indissolúveis, que o coração repele e só o ouro formou! Felizes aqueles cuja coragem e virtude os arrebatam à vida, antes que uma violência bárbara os force a passar ao crime ou ao desespero! Perdoai-me, pai e mãe para sempre deploráveis: com pesar aumento vossas dores; mas, possam elas servir de exemplo eterno e terrível a quem quer que ouse, em nome mesmo da natureza, violar o mais sagrado dos seus direitos!

Se não falei senão desses nós mal formados que são a obra da nossa polícia, pensa-se que aqueles a que o amor e a simpatia presidiram estejam isentos de inconvenientes? E se eu empreendesse mostrar a espécie humana atacada na sua própria fonte, e até no mais sagrado de todos os laços, em que não se ousa mais escutar a natureza senão depois de haver ouvido a fortuna, e em que, a desordem civil confundindo as virtudes o os vícios, a continência se torna uma precaução criminosa, e a recusa de dar a vida a seu semelhante um ato de humanidade! Mas, sem despedaçar o véu que cobre tantos horrores, contentemo-nos de indicar o mal ao qual outros devem trazer remédio.

Que se acrescente a tudo isso essa quantidade da ofícios malsãos que abreviam os dias e destroem o temperamento, tais como os trabalhos das minas, as diversas preparações dos metais, dos minerais, principalmente do chumbo, do cobre, do mercúrio, do cobalto, do arsênico, do rosalgar; esses outros ofícios perigosos que todos os dias custam a vida de uma porção de operários, uns entelhadores, outros carpinteiros, outros pedreiros, outros trabalhadores de pedreira; que se reunam, repito, todos esses objetos, e se poderão ver, no estabelecimento e perfeição das sociedades, as razões da diminuição da espécie, observada por mais de um filósofo.

O luxo, impossível de prevenir entre os homens ávidos de suas próprias comodidades e da consideração dos outros, acaba logo o mal que as sociedades começaram; e, sob o pretexto de fazer viver os pobres, o que não era preciso, empobrece todo o resto e despovoa o Estado, cedo ou tarde.

O luxo é um remédio muito pior do que o mal que pretende curar; ou antes, é ele mesmo o pior dos males, em qualquer Estado, grande ou pequeno, e que, para nutrir as multidões de criados e de miseráveis que fez, acabrunha e arruina o trabalhador e o cidadão: como esses ventos escaldantes do sul que, cobrindo as ervas e verduras de insetos devoradores, tiram a subsistência dos animais úteis e levam a fome e a morte a todos os lugares em que se fazem sentir.

Da sociedade e do luxo que ela engendra, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras, e todas essas inutilidades que fazem florescer a indústria, enriquecem e perdem os Estados. A razão desse deperecimento é muito simples. É fácil ver que, pela sua natureza, a agricultura deve ser a menos lucrativa de todas as artes, porque, sendo o seu produto de uso mais indispensável para todos os homens, o preço deve estar proporcionado às faculdades dos mais pobres. Do mesmo princípio pode-se tirar a regra de que, em geral, as artes são lucrativas na razão inversa da sua utilidade, e de que as mais necessárias, finalmente, devem tornar-se as mais negligenciadas. Por ai se vê o que se deve pensar das verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta dos seus progressos. Tais são as causas sensíveis de todas as misérias em que a opulência precipita, finalmente, as nações mais admiradas. À medida que a indústria e as artes se estendem e florescem, o cultivador desprezado, carregado de impostos necessários à manutenção do luxo, e condenado a passar a vida entre o trabalho e a fome, abandona o campo para ir procurar na cidade o pão que devia levar para lá. Quanto mais as capitais impressionam de admiração os olhos estúpidos do povo, tanto mais seria preciso lastimar o abandono dos campos, as terras incultas e as estradas cheias de cidadãos desgraçados transformados em mendigos ou ladrões, e destinados um dia a acabar a sua miséria pelos caminhos ou sobre um monte de esterco. É assim que o Estado se enriquece por um lado, e se enfraquece e se despovoa, por outro, e que as mais poderosas monarquias, após muitos trabalhos para se tornarem opulentas e desertas, acabam por se tornar a presa de nações pobres que sucumbem à funesta tentação de as invadir, e que são invadidas e enfraquecem por sua vez, até que elas mesmas sejam invadidas e destruídas por outras.

Que se dignem explicar-nos o que teria podido produzir essas nuvens de bárbaros que, durante tantos séculos, inundaram a Europa, a Ásia e a África. Seria à industria de suas artes, à excelência do sua polícia, que deviam essa prodigiosa população? Que os nossos sábios nos digam porque, longe de ir a tal ponto, esses homens ferozes, brutais, sem luzes, sem freio, sem educação, não se estrangulavam todos a cada instante, para disputar o alimento ou a caça. Que nos expliquem como esses miseráveis tiveram somente a ousadia de olhar em face tão hábeis pessoas como somos, com tão bela disciplina militar, tão belos códigos e tão sábias leis. Enfim, porque, depois que a sociedade se aperfeiçoou nos países do Norte e se teve tanto trabalho para ensinar aos homens seus deveres mútuos e a arte de viver agradável e pacificamente em conjunto, não se vê mais nada sair de semelhante a essas multidões de homens que produziam outrora. Receio muito que alguém se lembre, por fim, de me responder que todas essas grandes coisas, a saber, as artes, as ciências e as leis, foram muito sabiamente inventadas pelos homens como uma peste salutar para prevenir a excessiva multiplicação da espécie, com medo de que este mundo acabasse se tornando muito pequeno para os seus habitantes.

Pois bem! será preciso destruir as sociedades, aniquilar o teu e o meu, e voltar a viver nas florestas com os ursos? conseqüência à maneira dos meus adversários, que prefiro prevenir a lhes deixar a vergonha de a concluir. Oh vós, para quem a voz celeste não se fez ouvir, e que não reconheceis para vossa espécie outro destino senão o de acabar em paz esta curta vida; vós, que podeis deixar no meio das cidades vossas funestas aquisições, vossos espíritos inquietos, vossos corações corrompidos e vossos desejos desenfreados, retomai, pois que depende de vós, vossa antiga e primeira inocência; ide para os bosques perder a vista e a memória dos crimes dos vossos contemporâneos, e não receeis aviltar vossa espécie renunciando às suas luzes para renunciar aos seus vícios.

Quanto aos homens semelhantes a mim, cujas paixões destruíram para sempre a original simplicidade, que não podem mais nutrir-se de ervas e de sementes, nem passar sem leis e sem chefes; àqueles que foram honrados em seu primeiro pai com lições sobrenaturais; àqueles que hão de ver, na intenção de dar primeiro às ações humanas uma moralidade que não tivessem adquirido de há muito, a razão do um preceito indiferente por si mesmo e inexplicável em qualquer outro sistema; àqueles, eis uma palavra, que estão convencidos de que a voz divina chamou todo o gênero humano para as luzes o para a felicidade das celestes inteligências, — todos esses tratarão de merecer, pelo exercício das virtudes que se obrigar, a praticar aprendendo a conhecê-las, o prêmio eterno que devem esperar; respeitarão os sagrados laços das sociedades, de que são membros; amarão seus semelhantes e os servirão com todo o seu poder; obedecerão escrupulosamente às leis e aos homens, que são os seus autores e ministros; honrarão principalmente os bons e sábios príncipes que saberão prevenir, curar ou fazer desaparecer essa multidão de abusos e de males sempre prestes a nos acabrunhar; animarão o zelo desses chefes dignos, mostrando-lhes sem temor e sem adulação a grandeza de sua tarefa e o rigor do seu dever; mas, não desprezarão menos uma constituição que não se pode manter senão com o auxílio de tanta gente respeitável que em geral se deseja mais do que se obtém, e da qual, apesar de tantos esforços, nascem sempre mais calamidades reais do que vantagens aparentes.

(10) — Entre os homens que conhecemos, ou por nós mesmos, ou pelos historiadores, ou pelos viajantes, uns são negros, outros brancos, outros vermelhos; uns têm cabelos longos, outros apenas uma lã frisada; uns são quase completamente peludos, outros nem mesmo têm barba. Houve, e há ainda, talvez, nações de homens de altura gigantesca; e, pondo do parte a fábula dos pigmeus, que bem pode não passar de exagero, sabe-se que os lapões, e principalmente os groenlandeses, estão muito abaixo do talhe médio dos homens. Pretende-se mesmo que há povos inteiros com caudas, como os quadrúpedes. E, sem acreditar cegamente nas narrativas de Heródoto e de Ctésias, pode-se pelo menos deduzir a opinião muito verossímil de que, se se tivessem podido fazer boas observações nos velhos tempos em que os diversos povos seguiram maneiras de viver mais diferentes entre si do que hoje, ter-se-iam também notado, no rosto e na compleição do corpo, variedades muito mais impressionantes. Todos esses fatos, de que é fácil fornecer provas incontestáveis, só podem surpreender os que estão acostumados a olhar somente os objetos que os rodeiam, ignorando os poderosos efeitos da diversidade dos climas, do ar, dos elementos, da maneira de viver, dos hábitos em geral, e principalmente a força espantosa das mesmas causas, quando atuam continuamente sobre longas séries de gerações. Hoje, que o comércio, as viagens e as conquistas reúnem mais os diversos povos, e que suas maneiras de viver se aproximam sem cessar pela freqüente comunicação, percebe-se que certas diferenças nacionais diminuíram; e, por exemplo, cada qual pode observar que os franceses de hoje não são mais aqueles grandes corpos brancos e louros descritos pelos historiadores latinos, embora o tempo, com a fusão dos francos e normandos, brancos e louros, também devesse restabelecer o que a frequentação dos romanos tivesse podido tirar à influência do clima, na constituição natural e cor dos habitantes. Todas essas observações, sobre as variedades que milhares de causas podem produzir e efetivamente produziram na espécie humana, me fazem duvidar se diversos animais semelhantes aos homens, que os viajantes sem mais exame tomaram como animais, ou por causa de algumas diferenças que haviam notado na conformação exterior, ou somente porque esses animais não falavam, não seriam de fato verdadeiros homens selvagens, cuja raça, dispersa remotamente nos bosques, não tivera ocasião de desenvolver nenhuma de suas faculdades virtuais, nem adquirira nenhum grau de perfeição, achando-se ainda no estado primitivo de natureza. Demos um exemplo do que quero dizer.

“Encontra-se, diz o tradutor da Histórias das Viagens, no vêem-se duas espécies de monstros, sendo os maiores chamados orangotangos nas Índias orientais, que constituem como que o meio termo entre a espécie humana e os babuínos. Battel conta que, nas florestas de Maiomba, no reino de Loango, vêem-se duas espécies de monstros, sendo os maiores chamados pongos e os outros enjocos. Os primeiros assemelham-se exatamente ao homem, mas são muito mais corpulentos e de talhe muito alto. Com rosto humano, têm olhos muito fundos. As mãos, faces e orelhas não têm pêlo, à exceção das sobrancelhas, que a têm muito longas. Embora tenham o resto do corpo muito peludo, o pêlo não é muito espesso, e sua cor é castanha. Enfim, a única parte que os distingue dos homens é a perna, que não tem barriga. Andam direitos, segurando com a mão o pêlo do pescoço; seu esconderijo é nos bosques; dormem acima das árvores e fazem para si uma espécie de teto que os resguarda da chuva. Alimentam-se de frutas e nozes silvestres. Jamais comem carne. Os negros que atravessam as florestas costumam acender fogos durante a noite; notam que de manhã, quando partem, os pongos tomam-lhes o lugar em torno do fogo, só se retirando quando o fogo se extingue; porque, embora tenham muita habilidade, não têm bastante senso para o entreter pondo nele a lenha.

“Andam algumas vezes em rebanho, e matam os negros que atravessam as florestas. Atacam até os elefantes que vão pastar nos lugares por eles habitados, e os maltratam tanto com murros e pauladas que os forçam a fugir soltando gritos. Jamais se pegam pongos vivos, porque são tão robustos que dez homens não seriam bastantes para os segurar: mas, os negros apanham muitos dos mais novos, depois de matar-lhes a mãe, ao corpo da qual o menorzinho se agarra fortemente. Quando um desses animais morre, os outros lhe cobrem o corpo com uma porção do ramos e folhagens. Purchase acrescenta que, conversando com Battel, dele soubera que um pongo lhe roubara um negrinho, o qual passou um mês inteiro na sociedade desses animais; porque não fazem nenhum mal aos homens que surpreendem, pelo menos quando estes não os olham, como o negrinho observou. Battel não descreveu a segunda espécie de monstros.

“Drapper confirma que o reino do Congo está cheio desses animais conhecidos nas Índias pelo nome de orangotangos, isto é, habitantes dos bosques, o que os africanos chamam de quojas morros. Esse animal, diz ele, é tão semelhante ao homem que alguns viajantes se convenceram de que poderia ser filho de uma mulher e de um macaco: quimera que os próprios negros rejeitam. Um desses animais foi transportado do Congo para a Holanda e apresentado ao príncipe de Orange, Frederico Henrique. Era da altura de uma criança de três anos, de gordura medíocre, mas quadrado e bem proporcionado, muito ágil e muito vivo, as pernas carnudas e robustas, toda a frente do corpo sem pêlos, mas com as costas cobertas de pêlos negros. A primeira vista, seu rosto assemelhava-se ao de um homem, mas tinha o nariz chato e recurvado; as orelhas eram também as da espécie humana; o seio, pois era uma fêmea, era carnudo, o umbigo profundo, os ombros bem juntos, as mãos divididas em dedos e com polegar, a barriga da perna e os calcanhares gordos e carnudos. Caminhava, muitas vezes, direito, sobre as pernas, e era capaz de levantar e carregar fardos muito pesados. Quando queria beber, pegava com uma das mãos a tampa do vaso e com a outra o fundo, e em seguida enxugava graciosamente os lábios. Para dormir, deitava a cabeça em um travesseiro, cobrindo-se tão bem que podia ser tomado por um homem no leito. Os negros contam estranhas histórias desse animal: asseguram não somente que ele força as mulheres e as raparigas, mas que ousa atacar homens armados. Em uma palavra, há muita aparência de que seja o sátiro dos antigos. Merolla só faia talvez desses animais quando conta que os negros, nas suas caçadas, pegam algumas vezes homens e mulheres selvagens.” No terceiro tomo da mesma História das Viagens, fala-se ainda dessa espécie de animais antropomorfos, sob o nome de beggos e mandrills: mas, atendo-nos às narrativas precedentes, encontram-se, na descrição desses pretensos monstros, conformidades impressionantes com a espécie humana e diferenças menores do que as que se poderiam assinalar de homem para homem. Não se vêem, nessas passagens, as razões nas, quais os autores se fundam para recusar aos animais em questão o nome de homens selvagens; mas, é fácil conjecturar que é por serem estúpidos e por não falarem; são razões fracas para os que sabem que, embora o órgão da palavra seja natural ao homem, a própria palavra não lhe é contudo natural, e para os que sabem até que ponto sua perfectibilidade pode ter elevado o homem civilizado acima do seu estado original. O pequeno número de linhas que contêm essas descrições nos pode fazer julgar como esses animais foram mal observados e com que preconceitos foram vistos. Por exemplo, são qualificados de monstros, e entretanto, concorda-se que reproduzem. Em um lugar, Battel diz que os pongos matam os negros que atravessam as florestas; em outro, Purchass acrescenta que não fazem nenhum mal, mesmo quando os surpreendem, pelo menos quando os negros não se ponham a olhá-los. Os pongos reúnem-se em torno de fogos acesos pelos negros quando estes se retiram, e se retiram por sua vez quando o fogo se extingue; eis aí o fato; e agora, eis o comentário do observador: porque têm muita habilidade; mas não têm bastante senso para o entreter pondo nele a lenha. Eu desejaria adivinhar como Battel, ou Purchass, seu compilador, pode saber que a retirada dos pongos era um efeito de sua estupidez e não de sua vontade. Em um clima como o de Loango, o fogo não é coisa muito necessária aos animais; e, se os negros o acendem, é menos contra o frio do que para espantar os animais ferozes: é, pois, muito simples que, depois de se divertirem um pouco com as chamas, ou de se aquecerem, os pongos se aborreçam de ficar sempre no mesmo lugar e saiam para pastar, o que exige mais tempo do que se comessem carne. Aliás, sabe-se que a maior parte dos animais, sem excetuar o homem, são naturalmente preguiçosos e se recusam a toda sorte de cuidados que não sejam de absoluta necessidade. Enfim, parece muito estranho que os pongos, cuja habilidade e força se exaltam, os pongos, que sabem enterrar os mortos e fazer tetos de ramagens, não saibam pôr lenha no fogo. Lembro-me de ter visto um macaco fazer essa mesma manobra que se pretende que os pongos não possam fazer: é verdade que, não se tendo minhas idéias voltado para esse lado, cometo também a falta que censuro nos viajantes e me descuidei de examinar se a intenção do macaco era com efeito entreter o fogo, ou simplesmente, como creio, imitar a ação do homem. Seja como for, está bem demonstrado que o macaco não é uma variedade do homem, não somente porque é privado da faculdade de falar, mas principalmente porque é certo que sua espécie não tem a de se aperfeiçoar, que é o caráter específico da espécie do homem: essas experiências parecem não ter sido feitas sobre o pongo e o orangotango com bastante cuidado para se poder tirar a mesma conclusão. Haveria, contudo, um meio pelo qual, se o orangotango ou outros fossem da espécie humana, os observadores mais grosseiros poderiam certificar-se disso, mesmo com demonstração; mas, além de que uma só geração não bastaria para essa experiência, ela deve passar por impraticável, porque seria preciso que aquilo que é apenas uma suposição fosse demonstrado como verdadeiro, antes que a prova que deveria constatar o fato pudesse ser tentada inocentemente.

Os julgamentos precipitados, que não são o fruto de uma razão esclarecida, estão sujeitos a cair no exagero. Nossos viajantes fazem, sem cerimônia, animais sob o nome de pongos, mandrills, orangotangos, desses mesmos seres dos quais, sob o nome de sátiros, faunos, silvanos, os antigos faziam divindades. É possível que, depois de muitas pesquisas, se descubra que não são nem animais nem deuses, mas homens. Enquanto se espera, parece-me haver tanta razão em recorrer a Merolla, religioso letrado, testemunha ocular, e que, com toda a sua ingenuidade, não deixava de ser homem de espírito, como ao negociante Battel, a Drapper, a Purchass e aos outros compiladores.

Que juízo se pensa que tenham feito semelhantes observadores sobre a criança encontrada em 1694, de que já falei atrás, que não dava nenhum sinal de razão, caminhava sobre os pés e sobre as mãos, não tinha nenhuma linguagem e formava sons que em nada se pareciam com os de um homem? Levou muito tempo, continua o mesmo filósofo que me fornece este fato, para poder proferir algumas palavras, e ainda assim o fez de maneira bárbara. Logo que pode falar, interrogaram-na sobre o seu primeiro estado; mas, lembrava-se tanto dele quanto nós do que nos aconteceu no berço. Se, desgraçadamente para ela, essa criança caísse nas mãos dos nossos viajantes, não se pode duvidar de que, depois de notar o seu silêncio e a sua estupidez, decidiriam fazê-la voltar para o mato ou encerrá-la em uma jaula; depois, em belas narrativas, falariam dela, sabiamente, como de um animal muito curioso que se parecia com o homem.

Há trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da Europa inundam as outras partes do mundo, e publicam sem cessar novas narrativas de viagens o relatórios, e estou persuadido de que só conhecemos homens europeus; ainda parece, diante dos ridículos preconceitos que não desapareceram mesmo entre os homens letrados, que cada qual, sob o nome pomposo de estudo do homem, faz apenas o dos homens do seu país. Os particulares podem ir e vir, mas parece que a filosofia não viaja, de tal maneira a de cada povo é pouco apropriada para outro. A causa disso é manifesta, pelo menos para as regiões afastadas: só há quatro espécies de homens que fazem viagens de longo curso: os marinheiros, os comerciantes, os soldados e os missionários. Ora, não se pode esperar que as três primeiras forneçam bons observadores; e, quanto aos da quarta, ocupados com a vocação sublime que os chama, quando não estivessem sujeitos a preconceitos de estado como todos os outros, devo-se crer que não se entregariam de boa vontade a pesquisas que parecem de pura curiosidade e que os desviariam dos trabalhos mais importantes aos quais se destinam. Aliás, para pregar utilmente o Evangelho, não é preciso senão zelo, dando Deus o resto; mas, para estudar os homens, é preciso ter talentos que Deus não se compromete a dar a ninguém e que nem sempre confere aos santos. Não se abre um livro de viagens em que não se encontrem descrições de caracteres e de costumes; fica-se, porém, admirado de ver que as pessoas que descrevem tantas coisas só tenham dito o que todos já sabiam, só tenham percebido, no outro extremo do mundo, o que só a elas seria dado notar sem sair da sua rua, e de que esses traços verdadeiros que distinguem as nações, e que impressionam os olhos feitos para ver, tenham quase sempre escapado aos seus. Daí veio o belo adágio de moral, tão repetido pela turba filosófica, de que os homens são os mesmos em toda parte, tendo em toda parte as mesmas paixões e os mesmos vícios, sendo bastante inútil procurar caracterizar os diferentes povos. Ora, isso é raciocinar quase tão bem como se se dissesse que não se poderia distinguir Pedro de Tiago, porque ambos têm nariz, boca e olhos.

Será que não veremos mais renascer esses tempos felizes em que os povos não se metiam a filosofar, mas em que os Platão, os Tales, e os Pitágoras, tomados de um desejo ardente de saber, empreendiam as maiores viagens unicamente para se instruírem, indo sacudir longe o jugo dos preconceitos nacionais, aprender a conhecer os homens pelas suas conformações e pelas suas diferenças, e adquirir esses conhecimentos universais que não são os de um século ou de um país exclusivamente, mas que, sendo de todos os tempos e de todos os lugares, são, por assim dizer, a ciência comum dos sábios?

Admira-se a magnificência de alguns curiosos que fizeram ou mandaram fazer, com grandes despesas, viagens ao Oriente, com sábios e pintores, para aí desenhar pardieiros e decifrar ou copiar inscrições; mas, custa-me conceber como, num século em que todos se jactam de belos conhecimentos, não se encontrem dois homens bem unidos, ricos, um de dinheiro, outro de gênio, ambos amando a glória e aspirando à imortalidade, que sacrifiquem, um vinte mil escudos de sua fortuna, e o outro, dez anos de sua vida, numa célebre viagem ao redor do mundo, para estudar, nem sempre pedras e plantas, mas, por uma vez; os homens e os costumes, e que, depois de tantos séculos empregados em medir e considerar a casa, se lembrem enfim de procurar conhecer os seus habitantes.

Os acadêmicos que percorreram as partes setentrionais da Europa o meridionais da América tinham por objeto visitá-las mais como geômetras do que como filósofos. Entretanto, como ao mesmo tempo eram uma coisa e outra, não se podem olhar como absolutamente desconhecidas as regiões que foram vistas e descritas pelos La Condamine e os Maupertuis. O joalheiro Chardin, que viajou como Platão, nada deixou que dizer sobre a Pérsia. A China parece ter sido bem observada pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia passável do pouco que viu no Japão. Excetuadas essas narrativas, não conhecemos os povos das Índias orientais, freqüentados unicamente por europeus mais curiosos de encher as suas boinas do que as suas cabeças. A África inteira e os seus numerosos habitantes, tão singulares pelo caráter como pela sua cor, estão ainda por examinar; toda a terra está coberta de nações das quais só conhecemos os nomes, e nos metemos a julgar o gênero humano! Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um Duclos, um d’Alembert, um Condillac, ou homens dessa têmpera viajando para instruir seus compatriotas, observando e descrevendo, como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Barbaria, o império de Marrocos, a Guiné, — o país dos cafres, o interior da África e suas costas orientais, os malabares, a Mongólia, as margens do Ganges, os reinos do Sião, de Pegú, e de Ava, a China, a Tartária e, principalmente, o Japão; depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as terras magelânicas, sem esquecer os patagões verdadeiros ou falsos, o Tucumã, o Paraguai, se possível, o Brasil; enfim, os caraibas, a Flórida, e todas as regiões selvagens (seria a mais importante de todas as viagens, e a que deveria ser feita com mais cuidado). Suponhamos que esses novos Hércules, de volta dessas carreiras memoráveis, terminassem em seguida, com vagar, a história natural, moral e política do que tivessem visto; veríamos sair um novo mundo de baixo de sua pena, e aprenderíamos assim a conhecer o nosso. Repito que, quando semelhantes observadores afirmassem que tal animal é um homem e um outro uma besta, seria preciso crer; mas, seria grande ingenuidade proceder do mesmo modo com viajantes grosseiros, sobre os quais se é tentado, às vezes, a colocar a mesma questão que eles se metem a resolver sobre outros animais.

(11) — Isso me parece a última evidência, e eu não poderia conceber de onde os nossos filósofos podem fazer nascer todas as paixões que pretendem no homem natural. Excetuado apenas o necessário físico, que a própria natureza pede, todas as nossas outras necessidades só o são pelo hábito, antes do qual não eram necessidades, ou pelos desejos, e não se deseja o que não se está em estado do conhecer. Daí resulta que, como o homem selvagem só deseja as coisas que conhece e como só conhece aquelas cuja posse está ao seu alcance, ou é fácil adquirir, nada devo ser tão tranqüilo como a sua alma e nada tão limitado como o seu espírito.

(12) Encontro, no Governo Civil, de Locke, uma objeção que me parece muito especiosa para que me seja permitido dissimulá-la. “Como o fim da sociedade entre o macho e a fêmea, diz esse filósofo, não é simplesmente procriar, mas continuar a espécie, essa sociedade deve durar, mesmo após a. procriação, pelo menos tanto tempo quanto é necessário para a nutrição e conservação dos procriados, isto é, até que eles mesmos sejam capazes de prover às suas necessidades. Vemos que essa regra, que a sabedoria infinita do Criador estabeleceu sobre as obras de suas mãos, é constantemente observada e com exatidão pelas criaturas inferiores ao homem. Nos animais que vivem de ervas, a sociedade entre o macho e a fêmea não dura mais tempo do que o ato da copulação, porque, sendo as maminhas da mãe suficientes para nutrir os filhos até que sejam capazes de pastar as ervas, o macho se contenta em gerar e não se preocupa, depois disso, com a fêmea nem com os filhotes, para cuja subsistência em nada pode contribuir. Mas, em relação aos animais de presa, a sociedade dura mais tempo, porque, não podendo a mãe bem prover à sua própria subsistência e ao mesmo tempo nutrir os filhos somente com sua presa, o que é uma maneira de nutrir-se não só mais trabalhosa como mais perigosa do que a de se nutrir de ervas, a assistência do macho é absolutamente necessária para a manutenção de sua família comum, se se pode usar esse termo. Os filhos, enquanto não puderem procurar alguma presa, só podem subsistir pelos cuidados do macho e da fêmea. Nota-se a mesma coisa entre todos os pássaros, salvo alguns pássaros domésticos que se encontram em lugares nos quais a contínua abundância de nutrição isenta o macho de nutrir os filhotes. Vê-se que, enquanto os filhotes, ainda no ninho, têm necessidade de alimento, o macho e fêmea para ai o levam até que possam voar e prover à sua subsistência.

“Nisso, a meu ver, consiste a principal, se não a única razão por que o macho e a fêmea, no gênero humano, são obrigados a uma sociedade mais longa do que a que mantêm as outras criaturas. Essa razão é que a mulher é capaz de conceber e, de ordinário, ficar grávida outra vez e ter um novo filho antes que o precedente esteja em condições de dispensar o auxílio dos pais e prover às suas necessidades. Assim, um pai, sendo obrigado a cuidar durante muito tempo daqueles que gerou, é também obrigado a continuar a viver na sociedade conjugal com a mesma mulher de quem os teve, e a ficar nessa sociedade muito mais tempo do que as outras criaturas, cujos filhos podendo subsistir por si mesmos antes de chegar o tempo de nova procriação, o laço da fêmea e do macho se rompe naturalmente e ambos se encontram em plena liberdade, até que a estação que costuma solicitar os animais a se juntarem os obrigue a escolher novas companhias. E, nisso, nunca admiraríamos bastante a sabedoria do Criador, que, tendo dado ao homem qualidades próprias, para prover tão bem ao futuro quanto presente, quis e fez de maneira que a sociedade do homem durasse muito mais tempo do que a do macho e da fêmea entre as outra criaturas, a fim de que, desse modo, a indústria do homem e da mulher fosse mais excitada e os seus interesses mais unidos, com o objetivo de fazer provisões para os filhos e lhes deixar bens, nada podendo ser mais prejudicial às crianças do que uma conjunção incerta e vaga, ou uma dissolução fácil e freqüente da sociedade conjugal”

O mesmo amor à verdade, que me faz expor sinceramente essa objeção, me leva a acompanhá-la de algumas notas, se não para resolvê-la, ao menos para esclarecê-la.

1. Observei, primeiro, que as provas morais não têm grande força em matéria de física, e que servem antes para explicar fatos existentes do que para constatar a existência real desses fatos. Ora, tal é o gênero de prova que Locke emprega na passagem que acabo de citar; porque, embora possa ser vantajoso para a espécie humana que a união do homem e da mulher seja permanente, não se segue que isso tenha sido estabelecido pela natureza. Do contrário, seria preciso dizer que ela instituiu também a sociedade civil, as artes, o comércio, e tudo que se pretende que seja útil aos homens.

2. Ignoro onde Locke descobriu que entre os animais de presa a sociedade do macho e da fêmea dura mais tempo do que entre os que vivem de ervas, e que um ajuda o outro a nutrir os filhos; com efeito, não se vê o cão, o gato, o urso ou o lobo reconhecerem a fêmea melhor do que o cavalo, o carneiro, o touro, o veado, ou quaisquer outros animais quadrúpedes. Parece, ao contrário, que, se o socorro do macho fosse necessário à fêmea para conservar os filhos, assim o seria sobretudo nas espécies que só vivem de ervas, porque é preciso muito tempo à mãe para pastar, sendo forçada, durante todo esse intervalo, a se descuidar da prole, ao passo que a presa de uma ursa ou de uma loba é devorada em um instante, tendo ela, sem sofrer a fome, mais tempo para amamentar os filhos. Esse raciocínio é confirmado por uma observação sobre o número relativo de mamas e de filhos que distingue as espécies carnívoras, e de que já falei na nota 8. Se essa observação é justa e geral, só tendo a mulher dois seios, e um filho de cada vez, eis mais uma forte razão para duvidar que a espécie humana seja naturalmente carnívora; de sorte que parece que, para tirar a conclusão de Locke, seria necessário raciocinar de modo absolutamente contrário. Não há mais solidez na mesma distinção aplicada às aves. Porque quem poderá se persuadir de que a união do macho e da fêmea seja mais durável entre os abutres e os corvos do que entre as rolas? Temos duas espécies de aves domésticas, o pato e o pombo, que nos fornecem exemplos diretamente contrários ao sistema desse autor. O pombo, que só vive de grãos, fica unido à fêmea, e nutrem os filhos em comum. O pato, cuja voracidade é conhecida, não reconhece nem a fêmea nem os filhos, e em nada auxilia sua subsistência. E, entre as galinhas, espécie que não é menos carnívora, não se vê o galo incomodar-se com a ninhada. Se, em outras espécies, o macho partilha com a fêmea o cuidado de nutrir os filhos, é que as aves, que a princípio não podem voar e a mãe não pode aleitar, estão muito menos em condições de passar sem a assistência do pai do que os quadrúpedes, aos quais basta a maminha da mãe, pelo menos durante algum tempo.

3. Há muita incerteza sobre o fato principal que serve de base a todo o raciocínio de Locke: porque, para saber, como ele pretende, se, no puro estado de natureza, a mulher fica, de ordinário, grávida outra vez e tem um novo filho muito tempo antes que o precedente possa prover suas necessidades, seriam necessárias experiências que seguramente Locke não fez e que ninguém tem facilidade em fazer. A coabitação contínua do marido e da mulher é uma ocasião tão próxima de se expor ela a uma nova gravidez, que é bem difícil acreditar que o encontro fortuito ou o simples impulso de temperamento produza efeitos tão freqüentes no puro estado de natureza como no da sociedade conjugal. Essa lentidão contribuiria, talvez, para tornar os filhos mais robustos, e poderia, aliás, ser compensada pela faculdade de conceber, prolongada a uma idade mais avançada nas mulheres que não tenham abusado dela na juventude. Em relação às crianças, há muitas razões para crer que as suas forças e os seus órgãos se desenvolvem, entre nós, mais tarde do que no estado primitivo de que falo. A fraqueza original herdada da constituição dos pais, os cuidados tomados para envolver e estorvar todos os seus membros, a moleza na qual são educadas, talvez o uso de outro leite que não o de sua mãe, tudo contraria e retarda nelas os primeiros progressos da natureza. A aplicação que são obrigadas a dar a mil coisas sobre as quais se fixa continuamente sua atenção, ao passo que não só dá nenhum exercício às suas forças corporais, pode ainda causar um desvio considerável no seu crescimento; de sorte que, se, em vez de lhes sobrecarregar e fatigar a princípio o espírito de mil maneiras, se deixasse que exercitassem o corpo nos movimentos contínuos que a natureza parece reclamar, é de se crer que estariam muito mais cedo em condições de andar, de agir e de prover às suas necessidades.

4. Finalmente, Locke prova, quando muito, que poderia bem haver no homem um motivo de ficar ligado à mulher quando ela tem um filho; mas, não prova, de modo algum, que ele lhe deva ficar ligado antes do parto e durante os nove meses de gravidez. Se tal mulher é indiferente ao homem durante esses nove meses, se se torna mesmo desconhecida para ele, porque socorrê-la depois do parto? porque ajudá-la a criar um filho que ele sabe que não pertence somente a ele, e cujo nascimento não resolveu nem previu? Locke supõe, evidentemente, o que está em discussão, porque não se trata de saber a razão pela qual o homem ficará ligado à mulher depois do parto, mas, pela qual se ligará a ela depois da concepção. Satisfeito o apetite, e homem não tem mais necessidade de tal mulher, nem a mulher de tal homem. Este não tem a menor preocupação, nem talvez a menor idéia das conseqüências do sua ação. Um vai para um lado, e o outro para outro, não havendo aparência de que, após nove meses, tenham lembrança de se terem conhecido; porque essa espécie de lembrança, pela qual um indivíduo dá preferência a outro indivíduo para o ato da geração exige, como provo no texto, mais progressos ou corrupção no entendimento humano do que se pode supor existir no estado de animalidade de que tratamos. Uma outra mulher pode, pois, contentar os novos desejos do homem tão comodamente quanto aquela que ele já conheceu, e outro homem contentar do mesmo modo a mulher, supondo-se que ela seja premida pelo mesmo apetite durante o estado de gravidez, do que razoavelmente se pode duvidar. É que se, no estado de natureza, a mulher não sente mais a paixão do amor após a concepção do filho, o obstáculo à sua sociedade com o homem se torna ainda muito maior, pois que então ela não tem mais necessidade nem do homem que a fecundou, nem de nenhum outro. Não há, pois, no homem nenhuma razão para procurar de novo a mesma mulher, nem na mulher nenhuma razão para procurar de novo o mesmo homem. O raciocínio de Locke cai, pois, em ruínas, e toda a dialética desse filósofo não o livrou do erro que Hobbes e outros cometeram. Eles tinham que explicar um fato do estado de natureza, isto é, de um estado em que os homens viviam isolados, e em que um homem não tinha nenhum motivo para permanecer ao lado de outro, nem talvez os homens nenhum motivo para permanecer ao lado uns dos outros, o que é muito pior, e não pensaram em se transportar para além dos séculos de sociedade, isto é, além desses tempos em que os homens têm sempre uma razão para permanecer perto uns dos outros, e em que um homem tem muitas vezes uma razão para ficar ao lado de outro homem ou de outra mulher.

(13) — Terei bem cuidado em me não comprometer nas reflexões filosóficas que seria necessário fazer sobre as vantagens e os inconvenientes dessa instituição das línguas: não é a mim que se permite atacar os erros vulgares, e o povo letrado respeita demais os seus preconceitos para suportar pacientemente os meus pretensos paradoxos. Deixemos, pois, falar as pessoas às quais não imputamos o crime de tomarem algumas vezes o partido da razão contra as opiniões da multidão. Nec quidquam felicitati humani generis decederet, si, pulsa tot linguarum peste et confusione, unam artem callerent mortales, et signis, motibus, gestibusque, licitum foret quidvis explicare. Nunc vero ita comparatum est, ut animalium quoe vulgo bruta creduntur melior longe quam nostra hac in parte videatur conditio, utpote quoe promptius, et forsan felicius, sensus et cogitationes suas sine interprete significent, quam ulli queant mortales, proesertim si peregrino utantur sermone.(Is. Vossius, De Poemat. Cant. et Viribus Rhythmi, pag. 66.)

(14) — Platão, mostrando quanto as idéias da quantidade discreta e de suas relações são necessárias nas menores artes, ridiculariza com razão os autores do seu tempo que pretendiam que Palamedes inventara os números no cerco de Tróia, como se, diz o filósofo, Agamemnon pudesse ignorar, até então, quantas pernas tinha. Efetivamente, sente-se a impossibilidade de que a sociedade e as artes tivessem chegado aonde estavam já no tempo do cerco do Tróia, sem que os homens tivessem usado os números e os cálculos: mas, a necessidade de conhecer os números, antes de adquirir outros conhecimentos, não torna a sua invenção mais fácil de imaginar. Uma vez conhecidos os nomes dos números, é fácil explicar-lhes o sentido e excitar as idéias que esses nomes representam; mas, para os inventar, foi preciso, antes de conceber essas mesmas idéias, estar por assim dizer familiarizado com as meditações filosóficas, exercitado em considerar os seres só por sua essência e independentemente de qualquer outra percepção. Essa abstração é muito penosa, muito metafísica, muito pouco natural, e, no entanto, sem ela, essas idéias nunca teriam podido se transportar de uma espécie ou de um gênero a outro, nem os números tornarem-se universais. Um selvagem podia considerar separadamente sua perna direita e sua perna esquerda, ou as olhar em conjunto sob a idéia indivisível de um par, sem jamais pensar que tivesse duas; porque uma coisa é a idéia representativa que nos pinta um objeto, e outra coisa a idéia numérica que o determina. Menos ainda podia ele calcular até cinco, e, embora aplicando as mãos uma sobre a outra, pudesse notar que os dedos se correspondiam exatamente, estava bem longe de pensar na sua igualdade numérica; não sabia mais a soma dos seus dedos que a dos seus cabelos; e, se, depois de lhe haver feito entender o que são os números, alguém lhe dissesse que ele tinha tantos dedos nos pés quanto nas mãos, talvez tivesse ficado surpreendido, comparando-os, de ver que era verdade.

(15) — É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes por sua natureza e por seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar por sua própria conservação, e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra. Bem entendido isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe; porque, cada homem em particular olhando a si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no universo que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito, não é possível que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é capaz de fazer possa germinar em sua alma. Pela mesma razão, esse homem não poderia ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida. E, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e não o mal, que constitui a ofensa, homens que não sabem se apreciar nem se comparar podem fazer-se muitas violências mútuas para tirar alguma vantagem, sem jamais se ofenderem reciprocamente. Em uma palavra, cada homem, vendo seus semelhantes apenas como veria os animais de outra espécie, pode arrebatar a presa ao mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, sem encarar essas rapinagens senão como acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de despeito, e sem outra paixão que a dor ou a alegria de um bom ou mau sucesso.

(16) — É uma coisa extremamente notável que, após tantos anos que os europeus se atormentam para conduzir os selvagens de diversas regiões do mundo à sua maneira de viver, não tenham podido ainda ganhar um só item mesmo a favor do cristianismo; porque os missionários têm feito algumas vezes cristãos, mas jamais homens civilizados. Nada pode sobrepujar a invencível repugnância que têm eles em tomar os nossos costumes e em viver à nossa maneira. Se esses pobres selvagens são tão desgraçados como se pretende, por que inconcebível depravação de julgamento recusam constantemente policiar-se como nós, ou aprender a viver felizes entre nós, quando se lê, em milhares de passagens, que os franceses e outros europeus se refugiaram voluntariamente nessas nações e nelas passaram a vida inteira sem poder mais deixar tão estranha maneira de viver, e quando se vêem até missionários sensatos ter saudades dos dias calmos e inocentes que passaram entre povos tão desprezados. Se se responde que eles não têm bastantes luzes para julgar de maneira sã o seu estado e o nosso, replicarei que a estima da felicidade é menos negócio da razão que do sentimento. Aliás, essa resposta pede voltar-se contra nós com mais força ainda; porque as nossas idéias estão mais longe da disposição de espírito necessária para conceber o gosto que encontram os selvagens na sua maneira de viver do que as idéias dos selvagens das que lhes podem fazer conceber a nossa. Com efeito, depois de algumas observações, é-lhes fácil ver que todos os nossos trabalhos se dirigem para dois únicos objetivos, a saber: as comodidades da vida para si, e a consideração para os outros. Mas, para nós, qual é o meio de imaginar a espécie de prazer que um selvagem tem em passar a vida só no meio das florestas, ou pescando, ou soprando em uma péssima flauta, sem jamais saber tirar dela um único som e sem se importar de aprendê-lo?

Muitas vezes, têm-se trazido selvagens a Paris, a Londres e a outras cidades, e tido pressa em lhes expor o nosso luxo, as nossas riquezas e todas as nossas artes mais úteis e mais curiosas: tudo isso lhes despertou uma admiração estúpida, sem o menor movimento de cobiça. Lembro-me, entre outras, da história de um chefe de alguns americanos setentrionais levados à corte da Inglaterra, há uns trinta anos: fizeram-lhe passar milhares de coisas diante dos olhos, para lhe fazerem presente do que lhe pudesse agradar, sem que se achasse nada que parecesse impressioná-lo. Nossas armas lhe pareciam pesadas e incômodas, nossos sapatos lhe feriam os pés, nossas roupas o incomodavam, e tudo ele recusava. Finalmente, percebeu-se que, tendo tomado um cobertor de lã, parecia sentir prazer em envolver com ele os ombros. — “Convence-se ao menos, — perguntaram-lhe, — da utilidade disso,” — “Sim, — respondeu, — isso me parece quase tão bom como uma pele de animal”. Mas, nem isso diria se tivesse levado as duas coisas à chuva.

— Dir-me-ão, talvez, que é o hábito que, ligando cada um à sua maneira de viver, impede os selvagens de sentir o que há de bom na nossa: e, sendo assim, deve parecer ao menos bem extraordinário que o hábito tenha mais força para manter os selvagens no gosto de sua miséria do que os europeus no gozo de sua felicidade. Mas, para dar a essa última objeção uma resposta para a qual não haja uma palavra que replicar, sem alegar todos os jovens selvagens que inutilmente se tem procurado civilizar e sem falar dos groenlandeses e dos habitantes da Islândia, que se tentou educar e nutrir na Dinamarca, e que morreram todos de tristeza e desespero, ou por causa do langor, ou no mar, porque tentaram fugir a nado, contentar-me-ei de citar um só exemplo bem atestado, e que dou aos admiradores da polícia européia para examinar.

“Todos os esforços dos missionários holandeses do Cabo da Boa Esperança jamais foram capazes de converter um só hotentote. Van der Stel, governador do Cabo, tendo tomado um desde a infância, fê-lo educar nos princípios da religião cristã, e na prática dos usos da Europa. Vestiram-no ricamente, ensinaram-lhe diversas línguas, e seus progressos corresponderam muito bem aos cuidados tomados com sua educação. O governador, esperando muito de seu espírito, enviou-o às Índias com um comissário geral que o empregou utilmente nos negócios da companhia. Ele voltou ao Cabo depois da morte do comissário. Poucos dias depois da sua volta, em uma visita que fez a uns hotentotes sem parentes, tomou a decisão de se despojar dos seus ornamentos europeus para se vestir com uma pele de carneiro. Voltou ao forte nesses novos trajes, carregando um pacote contendo as suas roupas; e, apresentando-as, ao governador, lhe disse:

Tende a bondade, senhor, de prestar atenção a que renuncio para sempre, a todo esse aparelhamento; renuncio também, para toda a vida, à religião cristã; minha resolução é viver e morrer na religião, maneiras e usos dos meus ancestrais. A graça único que vos peço é deixar-me o colar e o cutelo que trago; eu os guardarei por amor a vós. Logo que acabou de falar, sem esperar a resposta de Van der Stel, saiu em fuga, e jamais foi visto no Cabo.” (História das Viagens, tomo V, pag. 175.)

(17) — Poderiam objetar-me que, em uma semelhante desordem, os homens, em vez de se degolarem mútua e obstinadamente, se dispersariam, se não houvesse limites à sua dispersão; mas, primeiramente, esses limites seriam pelo menos os do mundo; e, se se pensa na excessiva população que resulta do estado de natureza, julgar-se-á que a terra, nesse estado, não tardaria a ser coberta de homens assim forçados a se manter reunidos. Aliás, eles se dispersariam se o mal fosse rápido, e se a mudança fosse feita da noite para o dia: mas, nasciam sob o jugo; tinham o hábito de o conduzir, quando lhe sentiam o peso, e se contentavam em esperar a ocasião de o sacudir. Enfim, já acostumados a mil comodidades que os forçavam a se manter reunidos, a dispersão não era assim tão fácil como nos primeiros tempos, em que, ninguém tendo necessidade senão de si mesmo, cada qual tomava seu partido sem esperar o consentimento do outro.

(18) — O marechal de Villars contava que, em uma de suas campanhas, as excessivas ladroeiras de um comissário de víveres tendo feito sofrer e murmurar o exército, ele o repreendeu rudemente e o ameaçou de mandar enforcá-lo. “Essa ameaça nada tem que ver comigo, — respondeu-lhe ousadamente o velhaco, e me é muito fácil dizer-lhe que não se enforca um homem que dispõe de cem mil escudos.” — “Não sei como foi, — acrescenta ingenuamente o marechal, — mas, com efeito, ele não foi enforcado, embora tivesse merecido cem vezes o castigo.”

(19) — A justiça distributiva se oporia mesmo a essa igualdade rigorosa do estado de natureza, quando fosse praticável na sociedade civil; e, como todos os membros do Estado lhe devem serviços proporcionais aos seus talentos e às suas forças, os cidadãos, por sua vez, devem ser distinguidos e favorecidos à proporção dos seus serviços. É nesse sentido que é preciso compreender uma passagem de Isócrates na qual louva ele os primeiros atenienses por terem sabido bem distinguir qual era a mais vantajosa das duas espécies de igualdade, uma das quais consiste em conceder as mesmas vantagens a todos os cidadãos indiferentemente, e a outra em distribuí-las segundo o mérito de cada um. Esses hábeis políticos, acrescenta o orador, banindo essa injusta igualdade que não estabelece nenhuma diferença entre os maus e os bons, apegaram-se inviolavelmente àquela que recompensa e pune cada um segundo o seu mérito. Mas, primeiramente, jamais existiu sociedade, por maior que tenha sido o grau de corrupção a que tivesse podido chegar, na qual não se fizesse nenhuma diferença entre os maus e os bons; e, em matéria de costumes, em que a lei não pode fixar medida bastante exata para servir de regra ao magistrado, é muito sabiamente que, para não deixar a sorte ou a posição dos cidadãos à sua discrição, ela lhe não permite o julgamento das pessoas, para só lhe deixar o das ações. Não há costumes tão puros, como os dos antigos romanos, que possam suportar censores; e semelhantes tribunais logo teriam transtornado tudo entre nós. Cabe à estima pública estabelecer a diferença entre os maus e os bons. O magistrado só é juiz do direito rigoroso: mas, o povo é o verdadeiro juiz dos costumes, juiz íntegro e mesmo esclarecido sobre esse ponto, do qual se abusa algumas vezes, porém que jamais se consegue corromper. As posições dos cidadãos devem, pois, ser reguladas, não segundo o seu mérito pessoal, o que seria deixar ao magistrado o meio de fazer uma aplicação quase arbitrária da lei, mas segundo os serviços reais que prestam ao Estado, e que são suscetíveis de uma estimação mais exata.

<< Voltar para PRIMEIRA PARTE >>

©2001 — Ridendo Castigat Mores

Versão para eBook

eBooksBrasil.org

__________________

Julho 2001

Proibido todo e qualquer uso comercial.

Se você pagou por esse livro

VOCÊ FOI ROUBADO!

Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS

direto na fonte:

www.eBooksBrasil.org