Causos

Cícero, Ovídio, Virgílio e o caipira

A caminho de Ouro Preto, três estudantes de São Paulo, em férias, pousaram numa paragem de tropeiros no lugar chamado Saramenha, Minas. Eles discutiam o autor de uma frase latina -- dois deles a atribuíam a Cícero e o terceiro a Ovídio.

Um deles, para humilhar seus colegas, disse que até o caipira que ali estava perto sabia quem era o autor da frase.

Num canto da paragem, o capiau, de chapéu de palha, barba desgrenhada, calças arregaçadas até ao meio das canelas, preparando um cigarro de palha disse:

-- Realmente, catatuá que como este que vos fala sabe que esta frase não é nem de Cícero nem de Ovídio, mas de Virgílio, de uma sabidíssima passagem da Eneida, que só os jericos ignoram!

O caipira era Bernardo Guimarães.

As duas melhores obras

Era 1881.

Ouro Preto se engalanou de verde e amarelo. Não era para menos. Sua Majestade Imperial, Pedro II e a imperatriz Teresa Cristina iriam se dignar a visitar a cidade.

À época, Ouro Preto não contava nem com o esplendor do tempo da mineração e nem com o atual charme de cidade histórica. Era tão-somente a acanhada e decadente capital da Província das Minas Gerais.

A visita imperial gerou um clima de efervescência. Ninguém falava em outra coisa. Os políticos se esmeravam em mil e uma formas de agradar o casal imperial. Os homens se preocupavam com protocolo e cerimonial. As mulheres com trajes e penteados.

Avisaram Bernardo Guimarães que ele deveria comparecer. Avesso a pompas e circunstâncias, o escritor alegou que naquela data não estaria na cidade, mas em "Rancharia", propriedade rural da família de seus sogros.

Tarde demais! Informada de antemão que o Imperador manifestara o desejo de receber as obras completas, autografadas por Bernardo, sua esposa, Teresa Gomes Guimarães já tinha aceitado o convite em nome do escritor.

Encomendada uma coleção encadernada de seus livros, do Garnier, no Rio, com urgência, e retirada a casaca do baú, estava Bernardo Guimarães pronto para ter com Pedro II.

No dia 20 de abril de 1881, entraram no salão as duas filhas do escritor, Isabel e Constança. Carregavam em bandejas os livros que o pai mandara buscar no Garnier.

Recebendo os livros das mãos das meninas, o Imperador perguntou-lhe:

-- São essas as suas obras, dr. Bernardo?

-- E mais estas duas, Majestade -- respondeu o escritor, apresentando suas filhas. E por serem as melhores, são as que mais aprecio.

Um barão sem baronato

Em 1881, o Imperador Pedro II comunicou pessoalmente a Bernardo Guimarães a intenção de fazê-lo barão em reconhecimento da importância de seus livros.

Bernardo, de imediato, declinou da honraria.

Ao lado de suas duas filhas -- Isabel e Constança, que vestiam roupa simples, sem nenhuma joia ou fita --, o poeta disse:

-- Majestade, sou um homem pobre. Como é possível um barão sem baronato?

Com casaca e sem chapéu

No dia de 1881 em que apresentou suas obras ao Imperador Pedro II, Bernardo Guimarães ficou muito emocionado e acabou por perder a cartola, complemento indispensável à casaca.

No seu livro "Bernardo Guimarães na intimidade", um grande amigo do escritor, Carlos José dos Santos, reproduz uns versinhos que o poeta teria feito para a ocasião:

Hoje a casaca enverguei

(Coisa que muito me custa)

Para ver a face augusta

Do rei que sempre estimei.

Como aconteceu, não sei,

Pois que, estando em Palácio

Sucedeu-me um labéu:

Julgando ir para o céu,

Fiquei qual um pascácio

De casaca e sem chapéu...

Primeiro de abril

1877.

Primeiro de abril, Dia da Mentira.

Em Ouro Preto, as pessoas que convivem com Bernardo Guimarães preparam-se para um dia de brincadeiras do poeta.

Uma dessas pessoas é o médico e farmacêutico Calixto Arieira, concunhado de BG.

Arieira é uma pessoa séria, sisuda, e, por isso mesmo, alvo predileto das pândegas do poeta.

Nem bem começa o dia, Calixto recebe um recado urgente de BG para que fosse a sua casa imediatamente porque seu filho primogênito, João Nabor, tinha se envenenado e estava se contorcendo em dor.

Disposto desta vez a não acreditar nas mentiras do poeta, Calixto deduz que o recado é brincadeira de primeiro de abril.

Algum tempo depois, o próprio Bernardo vai à casa de Calixto e leva-o a força para cuidar do menino. Só então Carlixto se dá conta de que o caso é sério.

O médico chega tarde demais.

Após gemidos, Nabor morre. Ele tinha tomado estricnina de um vidrinho que pegara na casa do próprio Calixto.

Bernardo Guimarães cai numa depressão da qual nunca mais saiu.

Dinheiro para o enterro de Álvares de Azevedo

Corria o ano de 1850.

Bernardo Guimarães e seus amigos das Arcadas de São Francisco precisavam de dinheiro para bebidas e mulheres, nessa ordem.

Diante do estudante e poeta Manuel Antônio Álvares de Azevedo, moço pálido e autor da Lembrança de Morrer, Bernardo teve uma idéia.

-- Maneco, tu vais morrer!, disse Bernardo ao poeta

Bernardo, Aureliano José Lessa (1828-1861), Antônio Canedo, José Bonifácio (o moço), Antônio Suplício Sales e outros rapazes colocaram Álvares de Azevedo deitado numa mesa, esticando-o em postura de defunto. Enquanto Maneco protestava em vão, os rapazes amarraram-lhe os sapatos, um ao outro, com fitinha branca. Cruzaram-lhe as mãos, travaram queixo à cabeça com um lenço, e cobriram o corpo coberto com um lençol, sobre o qual foram colocadas flores murchas roubadas de um velório.

Aprontado o "defunto", Bernardo Guimarães e sua turma saíram pelas ruas para espalhar a notícia que deixou muitas pessoas abaladas.

-- Morreu Álvares de Azevedo!

Estudantes, professores e pessoas da sociedade compareceram à República de Álvares de Azevedo para prestar homenagem ao poeta de cuja saúde já se sabia que não era boa. A todos, o grupo de Bernardo pedia dinheiro para o enterro do poeta.

Com os bolsos cheios, os rapazes deixaram a casa do "defunto" e foram se banquetear na Rua das Casinhas e na Rua de Baixo, onde moravam doceiras e assadeiras.

Lá pelas tantas da madruga, aparece um furioso fantasma. Era Álvares de Azevedo.

-- "Eu faço o papel de morto para vocês se banquetearem. Vou também regalar-me!"

Como Álvares de Azevedo não poderia continuar como morto porque morto não pode ir à escola, a farsa foi logo descoberta.

As pessoas que deram dinheiro para o enterro e o jornalista, que publicou a morte de Azevedo, ficaram furiosos com a brincadeira de B.G. e sua turma.

Por precaução, Bernardo Guimarães ficou alguns dias sem sair de casa.

Nota: Álvares de Azevedo morreu de verdade dois anos depois, de tuberculose, em 25 de abril de 1852, aos 21 anos incompletos.

Traga já esse almoço, seu moço!

Em 1881, Bernardo Guimarães estava numa República em Ouro Preto quando o criado perguntou se podia servir o almoço.

O poeta respondeu-lhe com o seguinte poema heptassílabo, com ecos:

Traga já esse almoço,

Moço!

E não faça como a indigente,

Gente,

Que traz, em vez de pipote,

Pote,

E bebe, com grande mágoa,

Água!,

Do que eu gosto é de cerveja,

Veja,

Também tomo, com deleite,

Leite,

E como frutas maduras,

Duras.

Traga, já, qualquer quitanda!

Anda!

Que a gente lambisqueira

Queira

Semelhante gulodice...

Disse.

Bonzos, ratos e Napoleão

Bestialógico significa discurso sem nenhum sentido, de asno, disparatado, despropositado, coisa de maluco.

Bernardo Guimarães foi um dos introdutores no Brasil do bestialógico, em prosa e verso.

Quando estudante em São Paulo, na Faculdade de Direito, B.G. promovia em suaRepública, às quartas-feiras, noitadas de farras onde não faltavam bebidas, mulheres e poesias bestialógicas.

O historiador Basílio de Magalhães (1874-1957) informa que, entre os estudantes, era o próprio Bernardo que se destacava na declamação de poesias bestialógicas (ou pantagruélicas, como eram chamadas naquela época).

Numa ocasião, trepado na cadeira, como sempre fazia, "improvisou uma célebre poesia em que vinha toda sorte de extravagância, e que fez tal impressão que tem sido conservada na memória dos estudantes", escreve Magalhães.

A poesia é a seguinte:

Com grandes desgostos dos povos da Arábia,

Vieram os bonzos da parte de além,

Comendo presunto e empadas de trigo,

Sem ter um vintém.

E os ratos vieram, trotando depressa,

De espada na cinta, barrete na mão;

Prostravam-se ante eles fazendo caretas

Com grã devoção

E o filho dos ermos, do monte rolando,

Puxou pela faca, de grande extensão;

Caiu como o cisne, que toca trombeta,

De ventas no chão.

E lá pelos pólos, de gelo abrasados,

Eu vi Napoleão

Puxando as orelhas ao fero Sansão,

É um lindo mancebo de nobre feição

Brincando entre as pernas do rei Salomão

Versos para Honorata

No século passado os jovens galanteavam as mocinhas com juras de amor eterno, comparando-as à beleza do ceú, do mar e das flores. Tudo em trabalhados sonetos.

As moçoilas adoravam.

Numa chuvosa manhã de 1849, a sinhá-moça Honorata Cerqueira de Resende recebeu das mãos de uma mucuma (escrava de serviços caseiros) versos enviados por um presumível e misterioso admirador.

O coração de Honorata palpitou de alegria ao receber o papel perfumado. "Oh!!"

Leu os versos uma vez, duas, três, quarto, cinco e nada entendeu. Ficou decepcionada e perplexa.

Honorata pediu ajuda de amigas mas elas também não entenderam patavina.

Uma cópia dos versos apareceu na Faculdade do Largo de São Francisco e os estudantes, entre gargalhadas, decifraram logo o enigma.

Os versos eram bestialógicos - versos bem feitos, bem metrificados, com boa rima mas sem nenhum sentido, sem pé nem cabeça.

Para os estudantes, o autor dos versos só podia ser Bernardo Guimarães, o Rei do Bestialógico.

Bernardo nunca assumiu a autoria da brincadeira, talvez porque o pai da moça, o coronel João Cerqueira de Resende, não era dado às letras e muito menos à bestialogia. Mas o estilo dos versos é de B.G., conforme se pode verificar abaixo.

Nas tascas imbecis da tesa Grécia,

Perdia-se um baú o rei tetrarca.

E em batéis de elixir metia a Parca

Fingindo amor à póstera Lucrécia.

De que te vale um lírio se, na sécia,

Te deres de deitar o vil monarca

No fundo do barril da Dinamarca

Só p'ra listrar um gato com facécia?

Costurando os espaços do pagode,

Entre as mil sanguessugas perfumadas

Galileu segurava o pé de um bode.

Assim eu ponho o mérito das fadas

Nas casacas tiranas de um bigode

Por não te ver entre as sílfides rimadas.

A mula de Aureliano Lessa

Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa se conheceram na Faculdade de Direito São Francisco e ficaram grandes amigos.

Depois de formados, Lessa de vez em quando visitava B.G. em Ouro Preto.

Uma das vezes, vindo de Diamantina e para ficar alguns dias, Lessa apareceu no sobrado do poeta cavalgando uma mula.

Um dia, num entardecer, um punhado de pessoas se juntou defronte ao sobrado para ver um inusitado: a mula estava na sacada, no andar superior.

Segundo explicações atribuídas a B.G., a mula fora colocada ali para "distrair-se de uma profunda melancolia".

Catita sem braço

Um dia, Bernardo Guimarães encontra a mucama (escrava de serviços caseiros) chorando copiosamente.

Motivo: ela tinha derrubado uma estatueta -um pastor tocando um flauta--, quebrando os braços da peça.

B.G. não se abalou. Em vez de uma reprimenda, ele pegou um pedaço de papel e escreveu este versos:

Aqui, em cima desta mesa,

Eu tinha um belo catita,

Com a carinha tão bonita,

Tocando o seu flautim...

Coitado do meu catita!

Que teve o mais negro fim...

Valei-me Senhor dos Passos!

Meu catita está sem braços,

Não pode a flauta tocar!

Uma tão triste dor

Hei de sempre lamentar...

Faltou papel para escrever

De dado momento, acaba o papel em branco para os manuscritos.

O que fez BG?

Se serviu das margens de jornais velhos, com intenção provavelmente de passar os originais a limpo.

Mas Garnier tinha pressa e reclamou os originais. O escritor enfiou tudo dentro de um saco de aniagem (pano grosseiro) e despachou um imenso volume para o livreiro.

Garnier deve ter levado um susto.

BG precisou de quatro meses para aprontar os originais e por eles recebeu 800$000.

A continuação de "Maurício", "O Bandido do rio das Mortes", ficou inacabada. BG morreu antes de terminá-la. Mas a obra foi finalizada pela viúva do escritor, d. Teresa, que se aproveitou de esboços deixados por BG. Por isso "O Bandido" só foi publicado em 1905 pela imprensa oficial de Minas Gerais.

BG na banca de examinadores

Não se sabe se é mais uma anedota atribuída sem nenhum fundamento à biografia de Bernardo de Guimarães ou se trata-se de um acontecido.

O fato é que o causo está no livro "Memórias de João Barriga", de José Avelino, publicado em 1925.

Conta-se que, na época em que era professor no liceu de Ouro Preto, BG era convocado pela escola com freqüência para ser um integrante de uma banca de professores examinadores aos quais se submeteriam estudantes novatos.

O relato é de Avelino:

"Numa feita, um bicho [estudante calouro] estava tão cru em noções de Cosmografia que a reprovação seria inevitável no exame oral. Dois examinadores deram logo nota má, e Bernardo deu ótima. Perguntou-lhe um colega:

- Por que deu ótima, doutor, a um examinando que não soube o ponto?

-- Porque eu também não sei.”

O encontro do Imperador com Bernardo Guimarães

Dilermando Cruz, em seu livro "Bernardo Guimarães (perfil bio-bliblio-literário)", edição de 1914 de Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, transcreve do jornal "O Oriente" o relato do encontro de Pedro II (traço) e a imperatriz Teresa Cristina com Bernardo Guimarães. O relato do jornal -- da edição do dia 12 de junho de 1881 -- já é, por uma vez, uma transcrição de uma outra publicação, "O Cruzeiro". O texto é uma preciosidade: ressalta a todo instante o estado de penúria em que BG estava, sem "nenhum posição social", apesar de suas poesias que "brilham no céu". Além disso, lá pelas tantas, o autor do texto - cuja nome infelizmente o livro não publica - admitiu que não pôde assistir ao encontro do Imperador com o escritor por que tinha tomado champagne. Leia. "É natural que o Imperador, tencionando visitar esta província [Ouro Preto], se lembrasse de Bernardo Guimarães; e assim parece porque desde Barbacena pedia ele notícias do poeta, cujas poesias brilham no céu da pública celebridade, enquanto ele mesmo vivi em um canto da terra, na mais modesta obscuridade.Em viagem de Barbacena a esta cidade, o Imperador e igualmente a Imperatriz iam recebendo informações mais minuciosas do estado e do viver do ilustre autor dos "Cantos da Solidão".Mas, quando se referiram à Imperatriz que o poeta não tinha social, por pouco elevada que fosse, nem fortuna, que era casado e tinha cinco filhos, que vivia quase só do minguado produto de seus romances; que tinha pretendido a cadeira de latim desta cidade, e se sujeitado a exame, e que esse emprego mesmo não pudera conseguir, aquela nobre senhora, a Imperatriz, não se esqueceu mais de Bernardo Guimarães e o poeta desventurado não lhe saiu mais do pensamento.Sabe-se que Bernardo Guimarães é muito modesto e até tímido, e a tal ponto que nem é ambição da glória que o inspira.Foram alguns seus colegas em S. Paulo que fizeram publicar os "Cantos de Solidão", a muito custo, copiando, coligindo e ajuntando versos dispersos, escritos a lápis pelas paredes e em pedaços de papel e costas de carta.

A parte que teve o poeta nesta publicação foi só o seu sentimento.

Nunca teve consciência do seu gênio; desconfia muito de si, e se o elogiam, em público principalmente, foge e se esconde.

É em grande parte devido a este seu natural, que ele não tem feito em sua vida particular uma carreira mais brilhante e mais feliz. Bernardo Guimarães nunca teve a menor tenção de de ir à presença do monarca, nem jamais lhe passou pela cabeça; mas alguns parentes e amigos o informaram que o Imperador e a Imperatriz haviam durante a viagem por vezes pronunciado seu nome com muita consideração, e que, não ocultando sua admiração pelo poeta, manifestarão o mais possível seus cuidados e o interesse que tomavam por Bernardo Guimarães.

O poeta sentiu-se comovido e agradecido, e foram esses sentimentos de pura gratidão que o impeliram a cumprimentar S.S. M.M. tão singelamente como o é sua alma, sem orgulhosa altivez, sem lisonjeira humildade. De feito, no dia seguinte ao da chegada do Imperador, à noite Bernardo Guimarães apresentou-se em palácio na intenção de felicitar S.S.M.M. e retirar-se.

Nesta noite, a sala estava cheia e as recepções eram feitas sem a menor etiqueta, confusamente e no meio de algum sussurro. Os desembargadores e uma comissão da assembléia provincial já se tinha apresentado, e o Imperador os tinha recebido e despachado mais familiarmente do que solenemente. Chegou a vez de Bernardo Guimarães. O Imperador o reconheceu logo: apertou-lhe a mão, e após algumas palavras que ninguém ouviu, pois que ninguém prestava atenção, ele disse ao poeta em voz alta: "Quero que me dê suas obras, e todas". O poeta: "Mas eu não tenho nenhuma em casa". O Imperador: "Não importa, eu as quero e me há de sar, e todas..."

Retirando-se o Imperador e sua corte, e só tendo de voltar a esta cidade no dia 18, Bernardo Guimarães pediu ao Garnier [o editor de seus livros] suas obras, que lhe foram remetidas pelo correio; de sorte que no dia 18 achava-se ele habilitado para satisfazer a exigência do rei, mais significativa ainda e honrosa do que se foram um simples pedido.

De posse de suas obras, poesias e romances, Bernardo Guimarães havia resolvido entregá-las ele mesmo ao Imperador: e a ocasião pareceu-lhe a mais própria para apresentar às augustas pessoas imperiais duas filhinhas suas, incluídos no número de suas obras de artes aquele dois frutos da natureza. "Ele me pediu minhas obras todas", dizia Bernardo Guimarães, "e eu lhe apresentarei a Constancinha e a Izabelinha, deixando em casa os três meninos que são muito traquinas. O Imperador tinha de partir no dia 21 às 5 horas de manhã, e Bernardo Guimarães tinha determinado entregar-lhe os livros na noite de 20.

Desde que aqui constou que o Imperador tencionava visita esta província, que começou a pensar-se logo no programa dos festejos e na recepção.

A lembrança de um baile ou de uma representação teatral não foi aceita, assentaram as pessoas encarregadas do programa em oferecer a S.S.M.M. Imperais um concerto musical, que teve lugar na noite em que Bernardo Guimarães pretendia fazer ao Imperador a entrega de seus livros.

O dr. Gorceix havia dias antes proferido um douto e brilhante discurso, que teve por assunto nossas riquezas minerais, e era justo que a província musical também aparecesse em cena. O concerto musical teve lugar na mesma sala em que aquele professor tinha feito a conferência; e os acentos harmoniosos da orquestra ressoaram no mesmo recinto em que, poucos dias antes, haviam brilhado os topázios e os diamantes da Escola de Minas.

A sala é, bem conheces, a das sessões da assembléia provincial, espaçosa e toda branca.

O presidente, ele mesmo tinha convidado por cartas muitas famílias; mas para o resto do povo masculino a entrada era franca e bem vês que não devia eu deixar de aproveitar-me deste indulto. Entrei no corredor e deixei-me ficar junto à primeira porta, que dá entrada para o salão. Logo depois entraram o Imperador e a Imperatriz e seguiram ao longo do corredor ou galeria, e foram ter a uma sala interior, donde fizeram sua entrada no salão por uma porta ao lado direito da mesa do presidente da assembléia. A orquestra executou logo um pot-pourri, no qual brilhavam duas clarinetas concertantes, cujas notas melodiosas transportaram o auditório dos azedumes dos discursos políticos às delícias de um palácio de fadas. Além da execução e timbre puro, e permita-me que o dia, quase celeste das clarinetas, todos os demais instrumentos cantaram cada um o seu solo, ou mostraram-se em relevo nessa miscelânea encantadora.

Logo que as últimas notas expiraram, eu esta fora de mim em uma espécie de êxtase ideal, que eu mesmo não sei definir. Executada esta abertura da festa musical, uma pianista executou com suma perfeição uma peça que muito agradou; mas tinha apenas se levantado do piano sobe uma chuva de aplausos, que eu senti uma mão apertar-me o braço, e voltando a cara reconheci o engenheiro Francisco Lemos. "Quer ir beber um copinho de champagne muito bom?", disse-me ele. "Mas eu não quero perder minha música. É longe? Não senhor Timon, é perto, seis minutos. Chegamos à porta de uma casa, entramos em um corredor, uma sala deserta e só povoada a mesa, de algumas garrafas de vinho e de um prato de biscoitos. Sentamo-nos. Mal tínhamos nós sentado, entraram Bernardo Guimarães, um doutor em medicina e um tenente-coronel, ao todo cinco convivas.

Bebidos alguns tragos de champagne, Bernardo Guimarães começou a nos comunicar os apertos em que se via naquele momento, na impossibilidade de poder ele mesmo entregar as suas obras às mãos do Imperador.

Não tinha podido falar-lhe às 7 horas; não podia se lhe apresentar na sala, onde se dava o concerto, ele desejava o menor número de testemunhas possível no ato da entrega de suas livros. Depois do concerto seria imprudência tentar reter o Imperador no salão, entretanto que ele se retirava no dia seguinte às 5 horas da manhã. Tout est perdu, disse o aflito poeta, bebendo um copo de champagne. Após alguma discussão entre os cinco membros do Conselho, o caso ia ser julgado desesperado, quando o dr. Lemos levanta-se, toma a Bernardo Guimarães pelo braço e lhe diz: "Vamos, sr. Bernardo, eu arranho tudo, hoje mesmo há de falar ao homem e entregar-lhe suas obras. Desceram as escadas rapidamente, e pareceu-me, a nós que ficamos, que o poeta ia arrastado pelo engenheiro.

Nós ficamos aguardando que o poeta e o engenheiro voltasse para junto do champagne a nos darem parte do êxito da empresa. Passada boa meia hora, retirei-me e, achando-me na rua, dirigi meus passos para a sala do concerto, refletindo com pesar na bela música que o champagne fizera perder, e ansioso por saber se Bernardo Guimarães havido sido bem ou mal sucedido.

Logo ao entrar na galeria li em todos os semblantes o contentamento e júbilo que respiravam, e ouvi de muitas bocas expressões entusiásticas pela cena séria, tocante e sublime em que figuraram principalmente o Imperador e o príncipe dos poetas mineiros. É o que passo a referir-te, com bastante pesar de não ter sido testemunha de vista. Bernardo Guimarães fez sua entrada no salão pela porta que já te falei, à direita da mesa do presidente da assembléia, tendo antes se preparado e tomado ânimo em uma sala menor, da qual se saí por esta porta para entra no salão. O poeta conduzia pelas mãos as duas meninas, uma de um lado outra do outro, e alguém trazia uma bandeja contendo os livros, que deveriam ser entregues por uma delas. O imperador, em pequena distância da porta, avistou logo a Bernardo Guimarães, as minas e os livros; e mesmo sem estar prevenido adivinhou o que o poeta dele pretendia; e levantou-se e marchou para o lado da porta. Todos supuseram a princípio que o Imperador ia retirar-se e toda aquela assembléia se pôs de pé. Mas quando o poeta aos primeiros passos apareceu, notou-se um sussurro que denotava a impressão que ele causara em todos que ali se achavam.

Ele estava todo trajado de preto e as meninas traziam vestidos brancos curtos. Nem uma condecoração se via em seu peito, nem uma flor no cabelo das meninas, nem uma fita em sues vestidinhos.

Como marchassem um para o outro, o Imperador tomou com as suas as mãos do poeta e apertou-as com força e visível efusão. Todos ficaram comovidos e muita gente derramou lágrimas. O Imperador conversou alguns instantes com Bernardo Guimarães, tomou as meninas pelas mãos e as apresentou à Imperatriz, que também se tinha levantado.

Depois o Imperador e a Imperatriz acariciou as meninas pelas quais tanto se tinha interessado antes de as ter visto, e o Imperador mandou que se tomasse nota de seus nomes.

Em seguida, teve lugar a entrega dos livros.

Talvez me tenham escapado algumas pequenas insignificantes inexatidão, como é natural em atos que se passam rapidamente, o que pouco importa, mas o quadro, o essencial, ficou gravado na memória de todos. Como já te disse, eu nada vi, assim como perdi muita música, tudo por causa do champagne.

O que me consola é que, se não fosse esse champagne que reuniu os cincos bebedores que mencionei, esta cena memorável não se teria dado; e Bernardo Guimarães teria de remeter seus livros ao Imperador, no Rio de Janeiro, e isto bem prosaicamente, o que ele detestava de todo o coração. Vou te citar mas palavras de Plutarco, escrevendo a vida de Sertório, para aplicá-las, fazendo-lhes pequena violência, ao ato da entrega dos livros pelos nossos poetas, que tão imperfeitamente te hei descrito.

"Não é talvez surpreendente que, no curso infinito dos séculos, a fortuna sendo sempre inconstante e indeterminada, o acaso traga muitas vezes no mundo os mesmos acidentes. Há gente que tem gosto em fazer coleções de tudo o que eles têm lido ou tem ouvido dizer, dessas aventuras que a fortuna traz sobre este grande teatro do mundo, e que são tão semelhantes que elas aparecem obras da razão e da Providência."

Quando comissões e mais comissões discutiam a questão séria dos festejos que se deviam fazer por ocasião da visita das pessoas imperiais a esta cidade, aquelas doutas cabeças nem por sombra se lembraram de Bernardo Guimarães, nem tão pouco de sua musa.

Para o concerto, meu amigo, aposto que nem foi ele convidado: e já te disse que se o Imperador e a Imperatriz não se tivessem lembrado deles, e como que o chamado, não teria ele aparecido neste teatro do mundo, nem como ator nem como espectador.

Mas um concurso fortuito de circunstâncias, como se dispostas pela fortuna, o acaso, o destino se coligaram e convergiram de tal modo que Bernardo Guimarães figurasse em relevo nestes festejos, que esse ato da apresentação de suas obras ao Imperador, tão solene, parece obra da razão e da Providência.

Bem conheces aquele ditado: o homem propõe e Deus dispõe. O imperador se propôs a visitar esta província e, sem saber e sem querer, veio a Minas coroar a Bernardo Guimarães, e a coroação teve lugar, simbólica, na noite de 20 de abril para sempre memorável. O poeta apresentou suas obras, seus títulos à imortalidade, ao monarca, tendo por testemunha uma assembléia numerosa, em uma sala luminosa, onde ainda ressoavam os acordes de uma orquestra condigna do Imperador e da Imperatriz e do poeta insigne, que a mão do destino ali trouxera para ser coroado de louros.

Alguns, que testemunharam esta cena de coroação, dizem que foi o povo, que se achava na sala, que primeiro se levantou quando Bernardo Guimarães apareceu, e por um impulso instintivo de respeito e de admiração; mas, como quer que seja, o Imperador, como que descendo de seu trono, marchou e veio ao encontro do poeta. Maior prova de consideração não era possível, e um rei nunca se abate quando curva a cabeça coroada à deusa da ciência, às musas, aos talentos, ao mérito, ao gênio.

Petrarca recebeu em um mesmo dia carta do Senado de Roma, do reio de Nápoles e do chanceler da Universidade de Paris, nas quais se o convidava a vir receber a coroa de Poeta sobre estes dois teatros do mundo.

Petrarca foi coroado de louros em Roma, no ano de 4344, por um senador, no Capitólio. O Tasso foi chamado a Roma pelo papa Clemente VIII. Levado a audiência do papa este lhe disse: "Desejo que honreis a coroa de louros que tem honrado até hoje todos que a têm trazido. Tasso morreu na véspera do dia destinado à cerimônia da coroação.

Bernardo Guimarães ressuscitou, na noite em que ele foi laureado, do esquecimento em que estava envolvido o seu nome. "No curso infinito dos séculos a fortuna é sempre inconstante, não é para admirar que o acaso traga muitas vezes no mundo os mesmos acidentes.

O fato da coroação de Bernardo Guimarães, de Petrarca, de Tasso, é o mesmo; as circunstâncias preparadas pela sorte, os tempos é que são diversos."