Aureliano Lessa

Ei-los, os belos, encantados sítios,

O céu puro e risonho,

Que o viram nascer, e que o embalaram

Em seu primeiro sonho.

Foram estes os campos, que na infância

Os olhos lhe enlevaram;

Estes os céus, que os vividos fulgores

Na mente lhe entornaram.

Aqui nutriu a fantasia ardente

De imagens fulgurantes

Ao murmúrio do córrego, que rola

Rubins e diamantes.

Entre rolos de nuvens refulgentes,

Deslizar eu a vi meio envolvida

Num véu subtil de névoas transparentes.

Na áspera avenida,

Co'a fronte circundada de esplendores

Não parecia andar, porém sustida

Sobre coxim de lúcidos vapores

Parecia ir de leve resvalando

Nas bravas penedias,

Os arrojados píncaros galgando.

Na destra ela sustinha a doce lira,

Por quem o eco destas serranias

Lembrando as glórias dos antigos dias

Inda hoje em vão suspira.

Da bronca serra na empinada crista,

Vizinha à região das tempestades,

Tendo a seus pés quase a perder de vista

Montanhas, rios, selvas e cidades,

Sobre a grimpa altaneira

Alçou-se a ninfa ao mundo sobranceira;

E em torno do vastíssimo horizonte

Pairando um triste e derradeiro olhar

Trava da lira, e assim lá do Itamonte

Começa de cantar:

"Adeus, montanha minha, adeus, ó fonte,

Que eu tanto tenho amado;

Vou deixar-vos;... mas levo de saudades

O peito repassado.

"Fui rainha dos montes da Harmonia;

Brindei com liras de ouro

Poetas imortais, e em nobres frontes

Cingi sagrado louro.

"Mas já se foram tão formosos dias,

E hoje de saudade

Suspiro em vão pelas brilhantes glórias

De tão feliz idade.

"Meus viçosos vergéis emurcheceram,

Não têm folhas, nem flores;

Ai de mim! não me resta um só abrigo

Do sol contra os rigores!

"Estes ecos, que outrora repetiam

Meus cantos maviosos,

Não me ouvem mais, e nas sombrias grutas

Dormem silenciosos.

"Crescem espinhos e bravios matos

Na gruta deleitosa,

Onde outrora morei; dentro se aninha

Serpente venenosa.

"E tu, ó clara fonte, que golfavas

Sonora entre os penedos,

E meiga a meus ouvidos murmuravas

Melódicos segredos.

"Hoje turva, rolando lodo imundo,

Na voragem sombria

Não refletes o céu no azul regaço,

Não tens mais harmonia.

"A garça não vem mais as níveas plumas

Banhar em teu licor,

Nem se ouve o sabiá aos teus murmúrios

Casar hinos de amor.

"Não tem asas a musa; a lira e o louro

Jazem de pó cobertos,

Vãos emblemas de um túmulo esquecido

Em meio dos desertos.

"O canto do inspirado em vão soara

Entre as turbas descridas;

Em vão; no sono vil da indiferença

As acha adormecidas.

"Passara, como a brisa, que nas selvas

Sem rumores soprou

Entre despidos troncos, cuja coma

O incêndio devorou.

"Respiram por aí corrutas auras

De ambição e avareza,

E os monótonos dias conta o vulgo

Imerso em vil tristeza.

"Silêncio pois, ó musa; não profanes!

Da lira o dom sagrado;

Deixa este monte, que empestado sopro

O tem contaminado.

"Adeus, montanha minha, adeus, ó fonte,

Que eu tanto tenho amado;

Eu vos deixo, mas levo de saudades

O peito repassado.

"Eu parto, mas enquanto este penedo

Aqui erguer a fronte.

Há de soar nas cordas desta lira

O nome do Itamonte".

***

Cessou seu canto a virgem da montanha,

E o eco entristecido,

Que das vizinhas grutas a escutava,

Daquele adeus sentido

As derradeiras notas murmurava.

Eis pressuroso pelos ares rompe

De ouro e de nácar plaustro primoroso,

Que na lúcida esfera vem tirando

Um de alvíssimos cisnes par formoso.

Em torno dela o adejo serenando

Ao som de suavíssimos gorjeios

O etéreo carro um círculo descreve,

E em vórtice abatendo os seus rodeios

Aos pés da ninfa vem pousar de leve.

Sobre a concha mimosa

Ela em leito de flores se reclina;

Fulge-lhe a fronte imersa em luz divina

Tão pura e tão formosa,

Que se não fosse então do ocaso a hora,

Cuidáreis ver no monte a linda aurora.

Em tímidos queixumes

Dizem-lhe adeus as fontes suspirosas;

Vertendo mil perfumes

Brandas auras em torno lhe perpassam

Brincando buliçosas

Co'as luzidias tranças, que esvoaçam.

E ela olhos saudosos,

Em que o pranto os fulgores desmaiava,

Pela suprema vez triste pousava

Pelos cerúleos topes alterosos

Desses montes, que as doces melodias

Tinham-lhe ouvido em mais ditosos dias.

Em manso adejo os páramos varando

Da solidão dos ares,

Batem asas os cisnes gorjeando

Dulcíssonos cantares,

E longe, longe, no horizonte infindo

Engolfados no azul se vão sumindo.

[O poeta mineiro Lessa (1828-1861) foi amigo de B.G.

Ambos estudaram na Faculdade de Direito São Francisco.]