Ao meu aniversário (15 de agosto)

Eis-te de novo às portas do Oriente,

Fatal dia de agosto,

Que cada vez mais feio e mais tristonho

Vais me mostrando o rosto.

Já me achas mais velho, e mais disposto

A debicar contigo,

Do que a te saudar com aqueles hinos

De meu bom tempo antigo.

Por que razão tão cedo cá vieste

De novo aparecer-me?

Não sabes que o teu rosto já tão visto

Só pode aborrecer-me?

Que me trazes de mimo? - mais um ano,

Mais uma ruga à fronte,

E a campa, que lá surge mais distinta

Nas brumas do horizonte!

Que tens de me contar de interessante?

Que um ano mais de idade

Conto além de outros muitos que me deste?!

Oh! grande novidade!

Já lá vão lustros seis, e mais dous anos,

Que encontras-me na vida,

Cada vez mais moído e atrapalhado

Nesta enfadonha lida!

Até quando pretendes oprimir-me

Com o tremendo fardo

De anos e anos, com que os ombros vergas

Do teu infeliz bardo?

Anos, - e nada mais - eis o que trazes

A quem viste nascer:

E queres que com brindes te festeje,

Com hinos de prazer?

Ai! que nem tardo a ver-te do Oriente

Nas púrpuras louçãs,

Trazendo-me de envolta as senis rugas,

E um punhado de cãs.

Depois - virás ainda derramando

Dos raios teus o brilho,

E na face da terra entre os viventes

Não mais verás teu filho!

Mas... que te importará mais essa gota

Que se secou nos mares?

Mais essa folha que caiu da coma

Das selvas seculares?

Passarás, - e teus ledos esplendores

Virão pousar risonhos

No leito em que eu estiver dormindo o eterno

Sono que não tem sonhos.

E nem palpitará aos teus sorrisos

Mirrado o coração,

E nem se aquecerão meus frios ossos

Na gélida mansão.

Estou certo que quando sobre a terra

Achares-me de menos,

Luto não trajarás, e nem teus raios

Serão menos serenos.

Nem pretendo que ao veres meu sepulcro

De horror voltes a cara;

Antes desejo que o inundes sempre

De luz serena e clara.

Podes sorrir, cantar sobre meu túmulo,

Que não darei cavaco;

Nem pode a tua luz turbar-me o sono

Lá no meu antro opaco.

Mas se acaso doer-te a inglória sorte

Do mísero poeta,

Que como sombra vá sem ser sentido

Tocou a fatal meta,

Dirás aos que algum dia procurarem

Saber quem ele fora:

"Eu vi nascer aquele que tranqüilo

"Aqui repousa agora.

"Foi um desses que passam sobre a terra

"Em êxtases profundos,

"Escutando as canções que a seus ouvidos

"Ecoavam de outros mundos.

"Agitava-lhe a alma de contínuo

"Um surdo furacão;

"Tinha no seio o fel das amarguras,

"No cérebro um vulcão.

"Andava só; - espessa cabeleira

"Como nuvem sombria,

"Negra, em desordem flutuando ao vento,

"A fronte lhe cobria.

"E no vago do olhar turvado e triste

"Uma alma ressumbrava,

"Que um pego de amargura e desalento

"No seio concentrava.

"Cansado de vagar por este mundo

"Sonhando um paraíso,

"De atroz sarcasmo às vezes pelos lábios

"Lhe doudejava um riso.

"Longo tempo, em vãos sonhos embalado

"Viveu só de esperanças;

"Mas depois... só nutria o pensamento

"Do fel de agras lembranças.

"Não foi o fado que o tornou tão triste;

"A própria natureza

"Já desde o berço lhe entornara n'alma

"O gérmen da tristeza.

"E nos lábios dos outros muitas vezes

"Risos brotar fazia

"De prazer jovial, que dentro d'alma

"O triste não sentia.

"Morreu, coitado! - este sepulcro humilde

"Lhe serve de jazida;

"Dai-lhe agora na morte, oh! dai-lhe as flores

"Que não colheu na vida."

E esta?! - comecei sobre este assunto

Um canto joco-sério:

Eis senão quando vejo-me envolvido

No pó do cemitério!...

És tu, dia fatal, és tu culpado

Deste funéreo sonho,

Que já por morto, e hóspede me dava

Do túmulo medonho.

É tu que assim me trazes à lembrança

Um triste cenotáfio,

E na campa me pões, lavrando eu mesmo

O meu próprio epitáfio!

Se lembravas-me outrora a luz primeira,

Sorrindo-me ao nascer,

Hoje lembras-me só que se avizinha

O tempo de morrer.

Vai-te, ó dia importuno - vai-te azinha

Ó tu, que em meu costado

Inda mais um janeiro sem remédio

Deixaste-me pregado

Vai-te depressa, - mas em tua volta

Não venhas a correr,

Pois quanto a mim, nenhuma pressa tenho

De cá tornar-te a ver.

E para que não veja-te na vida

Raiando tantas vezes,

De hoje em diante comporei meus anos

De vinte e quatro meses.

Vai-te, ó dia importuno - vai-te azinha,

Ó tu, que em meu costado

Inda mais um janeiro sem remédio

Deixaste-me pregado.

Vai-te depressa, - mas em tua volta

Não venhas a correr,

Pois quanto a mim, nenhuma pressa tenho

De cá tornar-te a ver.

E para que não veja-te na vida

Raiando tantas vezes,

De hoje em diante comporei meus anos

De vinte e quatro meses.

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1859

O nascimento de Bernardo Guimarães