A Camões
em árduo empenho tomo sobre os ombros!...
Posso eu cantar a glória
Do vate, que causou ao mundo assombros
Celebrando a memória
Dos feitos de um heróico e nobre povo?
Eu, bardo obscuro deste mundo novo?!
Devo eu, do seio destas tristes brenhas
Soltar nota perdida,
Que irá por certo em vibrações rouguenhas
Perder-se esvaecida
Na orquestra universal, que hoje proclama
Do lusitano bardo o nome e a fama?..
Da glória de seus feitos, de seus hinos,
Dos tristes devaneios
De seu amor, seus ásperos destinos
Três séculos vão cheios.
Três séculos há que surge essa figura,
De ano em ano mais brilhante e pura.
Porém que importa?... A tímida homenagem
De meu fervente culto
Nada amesquinha à gigantesca imagem
Do nobre, heróico vulto;
Tosca pedra que encosto ao pedestal
De uma estátua soberba e colossal.
Quando da aurora no horizonte assoma
Do sol o disco ardente,
A verde selva meneando a coma,
O zéfiro fremente,
O arroio, a fonte alegres rumorejam,
E o céu e a terra e as águas o cortejam.
Ante o foco da luz e da beleza,
Em êxtase suspenso
O mundo inteiro canta; - a natureza
Desprende um hino imenso
De multiforme, esplêndida harmonia,
Em que exalta e saúda o rei do dia.
Mas no meio da orquestra retumbante,
Que entoa a criação,
Ouve-se lá na encosta verdejante
A tímida canção,
Que entre moitas de murta e rosmaninho
Gorjeia a medo ignoto passarinho.
Assim do gênio ante o fulgor sagrado
Se expande a mente humana;
E, se entoar poema não lhe é dado
Em sonoroso hosana,
Sagra-lhe ao menos do íntimo do peito
Em verso humilde respeitoso preito.
Perdoa, pois, ó sombra venerada
Do bardo lusitano,
Perdoa, se co'a mente arrebatada
Por um arrojo insano
No monumento teu depor eu venho
Pálida flor de meu escasso engenho.
Tríplice louro te circunda a fronte
Majestosa e sublime;
Poesia, amor, patriotismo ardente
Eis o que ele exprime.
São três fanais, em que tu te inspiraste,
Na epopéia, que aos séculos legaste.
Oh! que vasto horizonte de harmonias
Já ledas e risonhas,
Já tristes, já terríveis e sombrias,
Já rudes e medonhas,
Abres nesse imortal, divo poema,
Que há de tocar do tempo à meta extrema!...
Aí do luso nauta está gravada
A imagem sobranceira
Em pedestal eterno sublimada;
Ai resplende inteira
A glória de uma altiva geração;
De um povo heróico aí bate o coração.
Quão tristemente Inês aí suspira
Seu lashmoso amor!...
Que terríveis vinganças não respira
O torvo Adamastor,
Ao nauta afouto anunciando os duros,
Cruéis desastres, que contou futuros.
Do oceano imenso aos bravos domadores
Teces formosa c'roa,
E a despeito da inveja e seus furores
Teu nome inda hoje soa,
Nobre pregão do ninho teu paterno;
E e este o prêmio teu, sublime, eterno.
E é esse só; cruel sorte te aguarda
Nos teus extremos dias;
A indiferença, a inveja lá te esguarda
Com suas garras frias;
E o mais alto cantor da altiva Ibéria
Morre à mingua no leito da miséria.
Dos sofrimentos tens a triste história,
Teus ásperos labores,
Tanto infortúnio junto a tanta glória,
Teus trágicos amores,
Diga-os a India e a gruta de Macau,
Diga Lisboa, diga o fiel Jau.
Desdobremos, porém, sobre tais cenas
Do olvido o espesso véu,
Esqueçam-se hoje cousas tão pequenas.
Esqueça-se o labéu
Dessa mesquinha geração ingrata,
Que um tão nobre filho assim maltrata.
Mas basta!... eis já cumprido o santo voto!...
Oh, imortal Camões,
Aceita os hinos do cantor ignoto;
São fracas oblações
De quem arrasta míseros andrajos
Aos pés de quem vestiu sublimes trajos.
E que importa ao fulgor de tua glória
A pálida lucerna,
Que apenas bruzuleia merencória
Em lôbrega caverna?!
Apague-se uma vez; quebre-se a lira,
Que a celebrar tu nome em vão aspira.
Poema escrito por Bernardo Guimarães em 1880,
a pedido da Revista Brasileira, em comemoração do
terceiro centenário da morte de Camões.