Cenas do sertão

Fragmentos de uma epístola dirigida a um amigo da província de Goiás

CAÇADA DE VEADOS

COMBATE DE TOUROS

Nessas remotas solidões que habitas,

Entre essas broncas, virginais florestas,

Onde se ouve o rugir das cataratas,

Que em catadupas furiosas roncam,

Ou da tormenta o sopro impetuoso,

Que a grenha açouta aos seculares troncos,

Ou do selvagem caçador a grita,

Que as matilhas açula atrás da onça,

Do mateiro veloz, da anta membruda,

Nesses ermos saudosos, que contigo

Tantas vezes, amigo, hei percorrido,

Vai hoje visitar-te a minha musa.

Vai ela só... E pena que eu não possa

No aprazível passeio acompanhá-la;

Eu de bom grado aos ermos a seguira.

Mas não sei que destino aqui me prende

Entre um montão de lúgubres papéis,

Que como enxame de importunas vespas

Em torno me esvoaçam de contínuo,

Folhas chamadas, não as verdes folhas,

Que a fronte adornam das viçosas selvas,

E vertendo ao cansado viandante

Com brando rumorejo alma frescura

Dão vida ao coração, repouso à mente.

São folhas secas, áridas, tristonhas,

Que por todos os cantos me farfalham,

Como baratas chocalhando as asas

Entre as fendas de velho pardieiro.

Dizem no entanto os homens entendidos

Que essas tristes folhas são as asas

Com que voa o progresso pelo mundo...

Vivo portanto aqui imóvel, quedo,

Como droga, embrulhado em papelada.

Vai pois a pobre musa, e vai sozinha

Por essas feias matas, sem ter medo

De onças, sucuris ou jararacas,

No teu fundo retiro procurar-te.

Não vai c'roada de apolíneo louro,

Nem cinge aos pés o clássico coturno,

E nem tão pouco empunha ebúrnea lira

De cordas de ouro e ornada de guirlandas.

Vai, coitadinha! de chapéu de palha,

De xale sobraçado; os pés lhe amparam

Sandálias de romeira, - aos ombros leva

Um velho violão, e nos cabelos

Singelas flores, que apanhou no campo.

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E tu, a quem a pródiga natura

Criou para cantar as maravilhas

Desse torrão feliz em que nasceste,

A quem o sol esplêndido dos trópicos

N'alma ateou da inspiração a chama,

Que fazes nesses teus ignotos ermos,

Que o sonoroso canto não desprendes

Celebrando os encantos e as riquezas

Que a mãe de Deus com profusão criara

Nesses donosos páramos infindos?...

Do lar paterno nos umbrais sentado

Contemplas mudo os vastos horizontes,

As cenas grandiosas, os prodígios,

Que em torno a natureza te desdobra,

As estranhas usanças, os costumes

Semi-selvagens desse povo inculto,

Que vagueia nas ribas nemorosas

Do Parnaíba undoso e turbulento,

E de tua alma nem um eco escapa,

Nem um só canto casas aos rumores

De teus palmares, ao murmúrio eterno,

Com que te embalam selvas seculares?...

Eia, amigo, desprende a lira tua

Do ramo em que ociosa balanceia

Das solidões, ao vento reboando,

E canta-nos da terra, em que nasceste,

O puro céu de nuvens esmaltado,

Que em graciosos flocos se enovelam

De cambiantes cores irisadas;

Os cristalinos córregos saltando

Pelo vargedo entre floridas moutas,

Dos campos seus o eterno e vivo esmalte,

As selvas majestosas, as torrentes,

Que nas profundas furnas despenhadas

O leito cavam por penedos broncos,

Os ondulosos plainos de verdura,

Onde dispersas vagam as manadas

De truculentos bois, nédias novilhas,

De variadas cores marchetando

A viçosa esmeralda das campinas.

Conta-nos como o caçador valente

No fragueiro exercício endurecido

Lança no mato as trelas adestradas

Dos raivosos lebréus impacientes,

Que de um salto se atiram pelas brenhas,

Latindo, uivando, a demandar a pista

Da descuidada vítima inocente.

Ergue as orelhas o veloz mateiro,

Que na oculta guarida estremecendo

Escuta ao longe o rábido alarido

De seus infatigáveis inimigos.

Veloz como o tufão, ei-lo que aos saltos

Rompe do bosque a emaranhada grenha,

Furnas transpõe, valados e tranqueiras

De tombados madeiros; - como a péla,

Que cada vez mais alto salta e voa,

A pulos vence os alcantis agudos,

Galga barrancos, sotopõe fraguedos,

Até que de fadiga extenuado

Pelas narinas, pela aberta boca

Os ardentes arquejos exalando

Os fumegantes flancos lhe latejam...

Porém julgando já longe o perigo

Estafado e arquejante um pouco pára,

Por um momento inquieto o ouvido aplica

A consultar os ecos da floresta; -

Mas ai! - inda não longe lhe ressoam

Os contínuos latidos da matilha,

Que encarniçada lhe não deixa a pista.

Escuta ainda; - além murmura o rio,

Que o largo veio manso desdobrando

A salvação e a vida lhe oferecem,

Que as selvas suas amparar não podem.

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Nas águas ofegante se arremessa

E afouto fende as ondas alterosas

Em demanda da oposta ribanceira.

Pobre animal! - já na sabida espera

Em ligeira canoa bordejando

O caçador o aguarda apercebido.

Não troa um tiro, que a veloz piroga

Por vigorosos braços impelida

Nas águas resvalando corre ao encalce

Da fatigada vítima indefesa,

Que pelos galhos súbito agarrada

Por mãos possantes, sente nas entranhas

Buído ferro penetrar rangendo,

E da existencia as fontes lacerar-lhe.

Num extremo balido o alento exala,

E com seu quente sangue tinge as águas,

Onde imprudente a salvação buscava.

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Tranqüilo pasce o touro corpulento,

Das manadas senhor, a relva tenra

Dos verdes chapadões. - Sultão temido,

Em meio do cornígero serralho

Ninguém lhe turba a paz, nem contrasta

O poderio que de há largos anos

Ao longe estende nas planícies vastas.

Em mil combates já vitorioso

Para longe espancou rivais temíveis,

Que em campo aberto disputar-lhe ousaram

De sua nédia grei a posse e o mando.

Porém um dia, como o velho chefe

Os flancos molemente reclinando

Em mimoso capim junto da fonte,

Tranqüilamente ruminando as ervas

Ao sol de manhã pura se aquecia

A contemplar a numerosa tribo,

Que em torno vaga, - súbito uns bramidos

Longínquos aos ouvidos descuídosos

Vêm ressoar-lhe. - Por alguns instantes

Atento escuta; - após lesto se erguendo,

E sacudindo os retorcidos cornos,

Ergue a cabeça, e com torvados olhos

Percorre ao largo os chapadões imensos.

É hora de combate. - Muito ao longe

Todo envolvido em turbilhões de terra,

Que com as unhas, com as rijas pontas

Cava no chão, e arroja pelos ares,

Campeia o inimigo, e denodado

Avançando e rugindo, pouco e pouco

Do rival temeroso se avizinha.

De seu acampamento o velho chefe

Não se arreda; porém calado e quedo

Por um momento o seu rival escuta,

E quase acreditar inda não pode,

Que haja em torno atrevido aventureiro

Que se abalance a disputar-lhe a posse

Dos campos seus, de seu gentil rebanho.

Esse inimigo audaz, que o procurava,

E a combate o chamava em campo aberto,

Era um touro novel, guapo novilho,

Que nascera e cresceu no mesmo campo,

E inda há pouco do chefe entre a manada

Pascia os mesmos prados, e bebia

Da mesma fonte. Mas sua presença

Já inquietava ao carrancudo déspota,

Que suspeitoso espreita-lhe as passadas.

Já na beleza e no vigor crescendo

O galhardo novilho se arriscava,

Se bem que a medo, a acompanhar nos bosques,

Amorosos mugidos exalando,

Do rebanho as novilhas mais formosas.

Bem o pressente o ciumento velho,

Que em partilhar de modo algum consente

Com mais ninguém delícias de um serralho,

Que conquistou co'a ponta de seus cornos.

Ardendo em zelos, de furor raivando,

Corre a punir o temerário amante,

Que ousa a seus olhos requestar-lhe as vacas.

Quer este resistir; - mas inda novo,

Inda não traquejado nas pelejas,

Dos campos seus natais afugentado,

Espancado e ferido, foi ao longe

Chorar no seio das profundas brenhas

Seu infortúnio e meditar vingança.

Longo tempo vagou pelas florestas

Errante, sem rebanho e sem amores,

Com bramidos de dor e desespero

Das solidões amedrontando os ecos.

Nos rijos troncos, nos cupins anosos

Exerce e aguça as formidáveis pontas,

E nos alheios campos penetrando

Os cornos cruza em luta encarniçada

Dos arredores com os mais fortes chefes;

A uns soterra, e para longe exila

Dos campos seus vencidos e humilhados;

A outros rasga as tépidas entranhas;

Outros nos tremedais deixa atolados,

Ou precipita em boqueirões profundos,

Aonde encontram morte e sepultura.

Ei-lo já lidador robusto e fero,

De troféus e vitórias carregado,

Terror e assombro em torno derramando,

Para vingar não esquecida afronta

Nas campinas natais ufano surge.

Assim César, a quem de Roma arreda

De ambiciosos emulos a inveja,

Depois que longo tempo confinado

Nas Gálias, entre aspérrimos trabalhos

Cem batalhas venceu, domou cem povos,

À Itália volta, o Rubicon transpõe,

O orgulhoso Pompeu enxota e vence,

E toma posse da cidade eterna.

O novel lidador avança intrépido,

Rasgando a terra, os troncos escarchando

Co'as pontas furibundas, e de estragos

Ao largo alastra os sítios em que passa.

Sem do campo arredar-se o chefe o aguarda

Junto a um velho cupim, que impaciente

Qual se fosse o inimigo ataca e rompe,

E em mil pedaços pelos ares lança,

Ou com as unhas cava fundo a terra,

Como quem ao rival, que dá por morto,

De antemão vai abrindo a sepultura.

A terra treme aos urros furibundos

Dos ferozes, cornígeros atletas,

Que com solene lentidão sinistra

Pouco a pouco bramindo se aproximam.

Chegados frente a frente quedos param

Quase sem respirar, e fito a fito,

Mudos, torvados, de revés se encaram.

De horror transida a grei muda contempla

Esse solene e pavoroso instante,

Em que os dous ferozes contendores

Parece que um ao outro se devoram

Com torvo olhar sanguíneo. -

Mas de chofre

Cruzam-se os cornos com fracasso horrendo,

Que pelas brenhas muito ao longe troa.

Está travada a luta; - o chão retreme

Ao tropear das truculentas patas;

As gramas das campinas arrancadas

No revolto brigar aos ares voam,

E em breve o campo ao largo se converte

Em terra nua e solta, qual se enxada

Ali passasse revolvendo o solo.

O rouco som dos cornos, que abalroam,

O estrugido dos cascos, que retumbam

Do solo as profundezas abalando,

E esses surdos gemidos, que se exalam

Da luta ardente no arquejar raivoso,

Medonha orquestra formam, que de susto

Mesmo as panteras recuar fariam.

Consternado o rebanho em torno corre,

Lastimosos bramidos exalando,

E como que com rogos vãos procura

Dos combatentes acalmar a sanha.

O dia inteiro, com bem curtas tréguas

- Só para retomar um pouco o alento -

Na renhida peleja se sustentam

Sem as buídas aspas descruzarem.

Para esgotar de seu contrário as forças,

O novel campeão manhoso e arteiro

Deixa impelir-se, e cede cauteloso

De seu rival aos empurrões tremendos,

Que o leva de rondão pelas campinas,

Num brejo o atola, o esbarra pelos troncos,

E da vitória já quase seguro

De um golpe extremo decidir intenta

A porfiosa, tétrica peleja;

Recua um pouco destravando os cornos,

E as pontas abaixando se arremessa

Ao ventre do inimigo; - mas debalde

No desigual terreno em que lutavam

Por barranceiras ambos se despenham,

E a travar-se de novo se levantam.

Já desce a noite, e as sombras, que descaem,

Estão pedindo ou tréguas ou vitória.

O novel lidador reúne as forças,

Que até então de indústria sopeara,

E com vigor insólito esbarrando

O estafado rival de encontro o leva

A um rijo tronco, e enovelado o tomba.

O caído porém presto levanta-se

E de novo o combate recomeça.

Mas ai! que já suster não pode os ímpetos

Com que o atropela seu rival possante.

Eis que de novo aos recuões levado

Se perde, se embaraça, e ressupino

Aos pés do vencedor de novo rola.

Do irado vencedor as córneas pontas

Ei-lo já sente a retalhar-lhe as carnes;

Então soltando um lúgubre bramido

A custo se ergue, e rápida carreira

Fugindo estende pelos campos vastos.

O vencedor porém vai-lhe no encalce,

E por espaço largo o segue e punge

Até transpor as últimas colinas,

E longe o exila desses campos, onde

Inda há pouco no meio de manadas

Seu poderio alardeava ufano.

Ai do vencido! - pelas fundas brenhas

A mugir e a chorar ei-lo se entranha

Lascando troncos, escarvando a terra,

Como se espedaçar tentasse as armas,

Que não lhe podem mais dar a vitória.

O tempo enfim vem acalmar-lhe a fúria,

E o pobre do animal, tornado eunuco,

De combates e amores esquecido,

Tranqüilamente pasce entre as manadas,

E do bom lavrador jungido ao carro

Mais utilmente sua força emprega,

Até que um dia para sempre larga

Nas mãos do carniceiro o couro e a carne.

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Se lhes mudais os nomes, caro amigo,

Quer já bovinos, quer humanos sejam,

É esta sempre a história dos serralhos.

Rio de Janeiro, 1864.