A poesia

[Resposta ao poema A Bernardo Guimarães

de Pedro Fernandes]

Ce n'est plus la main du barde même,

qu'on entend sur la harpe; c'est ce frémissement

des cordes produit par le toucher d'une ombre.

(Chateaubriand)

Contam, que o albatroz, ave peregrina,

Equilibrada nas possantes asas,

Em sidéreos adejos desparece

Na profundez dos páramos etéreos,

E dias passa, e noites em repouso

Solitária dormindo sobre as nuvens.

Assim pairando andava em outros tempos

Por outros mundos minha mente errante,

Qual abelha entre flores volteando,

De orbe em orbe vagueando incerta,

Colhendo pelo espaço as vagas notas

Do hino imenso, que o universo entoa

E deles repetindo sobre a lira

Em débeis ecos pálido transunto.

Poeta, os sonhos meus se esvaeceram

Co'as róseas névoas da manhã da vida;

Lá me ficou entre os vergéis floridos

Da fresca juventude a lira de oiro,

Que eu afinava ao som de eólias notas

Da mata entre os rumores, e ao marulho

Da fonte soluçosa, que borbota

Dentre penedos em musgosa gruta,

No doce enlevo de um cismar infindo.

Fulge-me ao longe essa formosa quadra

Do passado nas brumas quase oculta,

Bem como ilha encantada, onde algum tempo

Entre cantos e aromas embalei-me

Em mole berço de verdura e flores.

Mas ei-la, que entre as vagas azuladas

No doirado horizonte vai sumindo,

Como a dizer-me o derradeiro adeus,

Enquanto o meu batei, - mísero esquife

Já de longos errores fatigado,

- Aos tufões do destino abandonando

As estragadas velas triste singra

Para as praias do ocaso, onde só vejo

Bruxuleando lívidos fulgores

De agoureiro presságio entre as geleiras

De merencório inverno.

Ah! quem me dera

Agora reviver-te, ó quadra amena!...

Quem me dera poder neste momento

Revocar-vos das sombras do passado,

Êxtases puros, inefáveis sonhos,

Que a mente outrora ao céu me arrebatáveis,

De ideais emoções toda ofegante,

Pelas do espaço solidões infindas!

Então sim, eu pudera acompanhar-te

Em teus valentes, arrojados vôos,

E varando de novo a imensidade

Ir devassar harmônicos segredos,

Fulgurantes visões de ignotos mundos.

Então da lira as cordas afinando

Da solidão aos místicos rumores

De novo a voz dos ecos acordara

Na bronca penedia adormecidos,

E um canto ainda, embora fôsse apenas

Descorada lembrança de outras eras,

Unira aos hinos teus, cantor suave,

Que ao som cadente de gentis endeixas

Encantas hoje as margens deleitosas

Do opulento, caudal Jequitinhonha,

Margens felizes, que inda com saudades

Repetem hoje os mágicos acentos

De dous queridos filhos da Harmonia,

De Lessa e de Queiroga. Ah! que bem cedo

Eles se foram para além voando

Os dous ilustres sonorosos cisnes;

Há muito no horizonte se sumiram,

E ainda freme o ar aos sons vibrados

Por essas liras de imortal renome.

Segue-os agora tu com vôo ardido

No esteiro glorioso; expande as asas,

Cisne novel, ao furacão ardente

De audaz inspiração, que te arrebata;

Engolfa-te no azul do firmamento

Por abismos de luz e de harmonia,

E da poesia nas divinas fontes

Afoito voa a saciar tua alma

De luz, de amor, de êxtase. Contempla

De nossa terra, as solidões formosas.

Que esplêndidos painéis!. . . ah quanta vida,

Quanta harmonia e cor, luz e beleza

Tu não vês derramada pela face

Dos infindos sertões! as fundas selvas,

De estranhos rumorejos povoadas,

Essas montanhas, que dos crespos tergos

Em catadupas pelo vale entornam

Caudais ribeiros, que no leito rolam

Rubins, safiras, ouro e diamantes,

Essas colinas e tranqüilos vales,

Essas profundas sombras, grutas, veigas,

Solitários palácios do silêncio,

Que mistérios de ignota melodia

Não guardam para a mente do inspirado,

Que os interroga por serenas tardes,

Entregue a fronte aos tépidos bafejos

Da inspiradora viração dos ermos.

Canta, ó poeta. - Os horizontes d'ouro

Verter-te-ão na mente os seus fulgores;

Do manso arroio o tímido murmúrio

Virá gemer nas cordas de tua harpa;

E a viração macia. que esvoaça

Beijando as flores na virente encosta

Te ensinará seus frêmitos suaves

Para cantar as festns e os amores,

As meigas tardes, e as manhãs formosas.

O furacão, que ruge fustigando

De selva intonsa a grenha arripiada,

A catarata, que entre penhas ronca

Das solidões atordoando os ecos,

E da borrasca o temeroso estrondo

Dos elementos concitando as fúrias,

A voz te prestarão solene e forte,

E as sombras carregadas, com que pintes

A majestade, as cenas grandiosas,

O bronco aspecto, as convulsões medonhas,

Da virgem natureza americana,

Que no deserto as iras apregoam

Do Rei da criação. Canta, ó poeta,

A natureza, e as solidões formosas

Desta querida abençoada pátria.

E lá, que a inspiração nos arrebata

Nas diáfanas asas fulgurantes,

Como o carro de fogo de profeta,

Nos fazendo esquecer no pó da terra

Dos cuidados da vida o manto incomodo,

E nos arrouba à transcendente esfera,

Onde ressoam divinais concentos

De nunca ouvidos, inefáveis cantos.

Canta, que eu já na lira esbambeada

Mal posso recordar uns frouxos ecos

Dessas modulações, que ouviste outrora.

Da fantasia as asas engelhadas

No mal sustido adejo já não ousam

Qual transparente nuvem luminosa

Do horizonte os matizes refletindo

Abalançar-se às regiões etéreas,

E qual rasteira névoa apenas pode

Pelas sombras do vale espreguiçar-se.

II

Morre o poeta, a lira se espedaça

De encontro à pedra da funérea lousa;

Mas não morre a poesia; eterna fênix

Cada vez mais louçã se reanima

Dos cisnes seus nos perenais gorjeios;

De evo em evo novas galas veste,

De estranhas, novas flores se atavia,

E novas cordas ajuntando à lira

De dia em dia mais caudais entorna

Torrentes de mirífica harmonia.

Sim, tu és imortal, virgem celeste,

Santa e nobre poesia !...Embora o carro,

Em que a mão da ciência atrela e doma

Da natureza as mais pujantes forças,

À conquista voando audacioso

De bens terrenos, que a matéria outorga,

Ao fragor do rodar vertiginoso

Busque abafar-te o sonoroso canto:

Embora o fumo da fornalha ardente,

Em que o progresso em afanosa lida

Industriais prodígios elabora,

Tente cobrir de véus caliginosos

O teu rosado, esplêndido horizonte:

Embora tristes agoureiras vozes

Clamem, que está já findo o teu reinado,

E que a história dos tempos, que ora correm

Sob o império do cálculo impassível

Só da fria ciência a mão severa

Pode escrevê-la em lâminas de ferro,

Não, tu não morrerás, virgem celeste.

Enquanto sobre a terra a branda aragem

Ondear à selva a sussurrante coma;

Enquanto os prados desbrocharem flores

Da primavera ao tépido bafejo;

E o manso arroio às árvores frondentes

Da fresca riba murmurar queixumes;

E pelo azul da cúpula celeste

Milhões de estrelas tremulas fulgirem;

Enquanto o astro pálido das noites

Mavioso clarão enviar à terra,

E a rósea aurora de seu coche d'ouro

Nos caminhos do sol entornar flores:

Enquanto o peito humano sobre a terra

Ao fogo se aquecer de emoções puras,

De amor, de fé, de santas esperanças;

Enquanto em cismas de ideais afetos

Embalar-se enlevada a fantasia;

Enquanto um meigo, encantador sorriso

Brincar nos róseos lábios da beleza;

E do pesar as lágrimas doridas

Não se esgotarem nos humanos olhos,

Não, tu não morrerás, virgem celeste.

A lira eólia ao perpassar das auras

Por força há-de gemer sons maviosos;

E a caçoula, a que a mão do artista santo

Tocou fogo do altar, aos céus o incenso

Há de enviar em nuvens redolentes.

A alma do poeta é lira eólia,

Que no centro do harmônico universo

Oscila ao sopro de celestes auras;

Quando da inspiração o bafo ardente

Lhe vem roçar em frêmitos sonoros,

Espontânea derrama sons sublimes

E a turba absorta aos mágicos acordes

Atento ouvido fascinada inclina.

E o coração do bardo é a caçoula

De fragrantes essências saturada;

Cai-lhe no seio divinal centelha,

E dela se erguem místicos aromas

De amor, de fé, de ardente entusiasmo.

Tudo no mundo cisma, geme ou canta;

Tudo em cadência harmônica se move,

Desd'os orbes, que em torno ao rei das luzes

Em giro perenal tecem coréias,

Té o dourado, pequenino inseto,

Que em viçosos vergéis voa zumbindo,

E o seio beija às orvalhadas flores;

Desd'o oceano, que de pólo a pólo

Em vagalhões bramindo se arremessa,

Té o regato humilde, que nas grotas

Por entre sombras trépido se esquiva.

Tudo no mundo é voz, canto, harmonia,

E a natureza inteira é um poema

Por Deus escrito em páginas eternas,

Que estão narrando seu poder imenso.

Sim, tu és imortal, virgem celeste.

Só quando os orbes todos desabando

Desgarrados das órbitas vagarem

Se abalroando pelo horror do espaço;

Só quando a natureza agonizante

Nutando enfim nas contorsões medonhas

De universal, tremendo cataclismo

Sumir-se aniquilada em treva eterna,

E quando o mudo, pavoroso caos

Sentado entre as ruínas do universo

Vier de novo reclamar seu cetro,

Então somente cessarão teus cantos

E desaparecendo entre os escombros

Dos derruídos mundos, que já foram,

Remontarás além dos firmamentos

Tua origem divina procurando,

E ao pé dos tabernáculos do Eterno

Irás achar nunca turbado asilo

Por entre os coros dos celestes bardos,

Que pelos átrios da eternal Solima

De Deus a glória sem cessar proclamam.

III

Canta, ó poeta, enquanto a sacra chama

Te aquece o coração, te alenta os vôos.

E de manhã, que os passarinhos cantam

Seus mais frescos, harmônicos gorjeios.

À tarde geme o sabiá saudoso

No tope excelso de virente cedro;

À noite só ulula em sons carpidos

Entre ruínas agoureiro mocho.

Canta, antes que o inverno congelado

Na urna de teu peito extinga a chama,

Que faz subir aos céus o incenso d'alma>

E da vida nos álgidos caminhos

Venha murchar da fantasia as flores.

Canta; bem-vindo seja esse teu canto,

Que em minha alma acordando ecos de outrora

Abre meu seio aos cânticos e às flores.

Queluz, 1873