Horácio da Silva Guimarães (1870-1959), filho

Impossível, tantos anos lá se vão, dar impressões muito nítidas a respeito de meu pai. Só posso dizer que era um homem fundamentalmente bom.À fazenda onde nasci, propriedade de minha avó materna, vinham ter então, pela sua situação especial à beira da estrada que ligava a ex-capital da Província à Corte, com era conhecida a capital do Império, senadores, deputados, prelados (lembro-me que o santo bispo D. Viçoso lá se hospedou várias vezes), cometas, estudantes, enfim viajores de todas as classes. A primeira pessoa por quem perguntavam invariavelmente esses hóspedes, de todas as categorias, era por meu pai.

Simples e bonachão, não denunciava, pelos trajes, a sua qualidade, o que deu origem a qüiproquós engraçados, acontecendo perguntarem muitas vezes por ele próprio, tomando-o por empregado da fazenda. Certa ocasião, mesmo, um viajante ilustre, a julgar pela luzida comitiva e pelos ares de importância que se dava, vendo-o a divagar pelas imediações, a ele dirigiu-se, indagando:

- O Bernardo Guimarães está?

E à resposta afirmativa, entregou-lhe o seu cartão, acrescentando:

- Pois diga-lhe que está aqui alguém que deseja muito conhecê-lo.

Vinte minutos depois, se tanto, meu pai, envergando solene sobrecasaca, de gravata branca e não sei se também de luvas, fazia sua entrada na sala. Pode-se imaginar a cara desse figurão, ao reconhecer nele o mesmo indivíduo a que momentos antes se dirigia, de modo arrogante e impertinente.

Um dia chegou à fazenda um imenso canudo de folha, enviado de Goiás. Vinha todo coberto de ferrugem, e não sem alguma dificuldade que se conseguiu arrancar-lhe a tampa, extraindo-se-lhe um pergaminho amarelado, de que pendia uma fita vermelha e grossa medalha de prata. Era a sua carta de bacharel, que meu pai esquecera em Catalão, e que mão amiga lhe remetia pelo Correio, na ingênua persuasão de que ele ainda viesse dela a precisar. Isto, porém, não se deu, não sei se feliz ou infelizmente para a magistratura, com a qual não tardou muito a se incompatibilizar: - tinha coração demais para que pudesse ser juiz.

O que dele se diz, a propósito da soltura dos presos da cadeia de Catalão, não deixa de ter seu fundo de verdade, mas não se passou como contam. Tratava-se de uma cadeia úmida, sem as necessárias condições de higiene. Basta dizer que nela nunca entrara o sol. Os infelizes que lá se achavam, estavam atacados de beribéri, uns, tuberculosos, outros. Pelo que são ainda hoje os presídios do interior de Estados, mesmo os de mais recursos, pode-se calcular o que seria nessa época longínqua a cadeia de Catalão. Compadecido da sorte dos reclusos, meu pai (e que, em seu lugar, tendo um pouco de coração, não faria o mesmo?) deu-lhes licença para tomarem um pouco de ar, sob condição, porém, de regressarem à cadeia. Em se vendo soltos, aqueles detentos não cumpriram a palavra, o que, por ser humano não se lhes deve exprobar, embora comprometessem com isso o juiz.

Foi um chefe de família exemplar e carinhoso, não só para os seus, como para os que com ele conviviam, inclusive os próprios escravos da fazenda. Minha avó materna, Felicidade Gomes de Lima - fato quase virgem em sogras - tinha por ele uma verdadeira adoração, e ele, correspondendo à afeição da boa velhinha, costumava dizer, pilheriando, que era o homem mais feliz do mundo:

- Pois não era genro da Felicidade?!

Em S. Paulo, para onde foi com uma mesada de 20$000, e um negro para servi-lo (esse moleque cavava, não como servo, mas como companheiro), deixou ele, com Aureliano Lessa e Álvares de Azevedo, a tradição de suas magníficas boêmias.

Certa vez, de "pindaíba franciscana", encontraram um meio de arranjar dinheiro, estendendo na sala, cujas janelas enlutadas escancararam para a rua, o corpo esquálido e pálido do genial Álvares de Azevedo. Um dos jornais noticiou, em sentida nênia a morte prematura do bardo, terminando com o pedido de um óbolo que permitisse fazer-lhe um enterro condigno. Todo mundo queria ver o rosto do morto, cuja cabeça mergulhava, muito de propósito, numa penumbra que tornava a palidez do moço poeta mais lívida e fantástica. Diante de toda a Academia, caloiros e veteranos, que tinham corrido a ver os despojos mortais do autor da Noite da Taverna, Bernardo Guimarães passeava impressionado, mudo, do quarto para a sala, e Aureliano Lessa declamava, não se conformando com a fatalidade. A coleta foi magnífica, dando para um funeral ou antes, bródio macabro, nos fundos esfumaçados dagarconnière dos boêmios. Na longa mesa improvisada, da qual Bernardo Guimarães ocupava o pé, a cabeceira estava vaga. Era o lugar vago e insubstituível de Álvares de Azevedo.

Com estas, contam-se inúmeras anedotas de meu pai, autênticas algumas, inverossímeis outras.

Dele só sei dizer que era um bom e um desambicioso. Tendo concorrido para enriquecer o seu editor, morreu, entretanto, paupérrimo. Residiu algum tempo em Queluz de Minas, como professor de latim, contando-se entre seus alunos o Vidigal famoso, que hoje contribui por aí à justiça como juiz de direito ou municipal. Transferindo-se para Ouro Preto, sua popularidade aí era espantosa. A ex-capital era por essa época uma vasta e bulhenta confederação de repúblicas de estudantes, e à convivência destes, entregava-se meu pai - examinador perpétuo de preparatórios no Liceu Mineiro - preferindo-a dos políticos, que evitava sempre que podia. Os estudantes adoravam-no, disputavam-no, e não só os estudantes como o povo, grandes e pequenos. Quando morreu, em um afastado arrabalde, e o seu funeral foi uma apoteose.

Era tão bom, tão bom que, segundo um contemporâneo que o biografou, levou para o túmulo o segredo de ter vivido 59 anos sem ter feito um só inimigo.

Belo Horizonte, 12-8-1925 - Horácio Guimarães

(Esse depoimento foi publicado no Correio da Manhã)