Invocação

Ó tu, que ora nos tergos da montanha

Nas asas do Aquilão passas rugindo,

E pelos céus entre bulcõe sombrios

Da tempestade o plúmbeo carro guias,

Ora suspiras na mudez das sombras

Manso agitando as invisíveis plumas,

E ora reclinado em nuvem rósea,

Que a brisa embala no ouro do horizonte,

Expandes no éter vagas harmonias,

Voz do deserto, espírito melódico

Que as cordas vibras dessa lira imensa,

Onde ressoam místicos hosanas,

Que inteira a criação a Deus exalça;

Salve, ó anjo! – minha alma te saúda,

Minha alma que, a teu sopro despertada,

Murmura, qual vergel harmonioso

Pelas brisas celestes embalado.....

Salve, ó gênio dos desertos,

Grande voz da solidão,

Salve, ó tu, que aos céus exalças

0 hino da criação!

Sobre nuvem de perfumes

Te deslizas sonoroso,

E o rumor de tuas asas

É hino melodioso.

Que celeste querubim

Te deu essa harpa sublime,

Que em variados acentos

As dúlias dos céus exprime?

Harpa imensa de mil cordas

Donde em caudal, pura enchente,

Estão suaves harmonias

Transbordando eternamente?!

De uma corda a prece humilde

Como um perfume se exala

Entoando o sacro hosana,

Que do Eterno ao trono se ala;

Outra como que pranteia

Com voz fúnebre e dorida

O fatal poder da morte

E as amarguras da vida;

Nesta brando amor suspira,

E lamenta-se a saudade;

Nest’outra ruidosa e férrea

Troa a voz da tempestade.

Carpe as mágoas do infortúnio

De uma a voz triste e chorosa,

E só geme sob o manto

Da noite silenciosa.

Outra o hino dos prazeres

Entoa lêda e sonora,

E com cânticos festivos

Saúda nos céus a aurora.

Salve, ó gênio dos desertos,

Grande voz da solidão,

Salve, ó tu, que aos céus exalças

O hino da criação!

Sem ti o mundo jazera

Inda em lúgubre tristeza,

E o horror do caos reinara

Sobre toda a natureza;

Pela face do universo

Funérea paz se estendera,

E o mundo em mudez perene

Como um túmulo jazera;

Sobre ele então pousaria

Silêncio torvo e sombrio,

Como um sudário cobrindo

Um cadáver quedo e frio.

De que servira essa luz

Que abrilhanta o azul dos céus,

E essas cores tão mimosas

Que tingem da aurora os véus?

Essa risonha verdura,

esses bosques, rios, montes,

Campinas, flores, perfumes,

Sombrias grutas e fontes?

De que servira essa gala,

Que te enfeita, ó natureza,

Se adormecida jazeras

Em estúpida tristeza?

Se não houvesse uma voz,

Que erguesse um hino de amor,

Uma voz que a Deus dissesse

– Eu vos bendigo, ó Senhor!

Do firmamento nos cerúleos páramos

Sobre o dorso das nuvens balouçado,

Os olhos arroubados espraiando

Nos longes vaporosos

Dos bosques, das remotas serranias,

E dos mares na túrbida planície,

Cheio de amor contemplas

De Deus a obra tão formosa e grande,

E em melódico adejo então pairando

À face dos desertos,

De caudal harmonia as fontes abres;

Como na lira que pendente oscila

No ramo do arvoredo,

Roçadas pelas auras do deserto,

As cordas todas sussurrando ecoam,

Assim ao sopro teu, gênio canoro,

De júbilo palpita a natureza,

E as vozes mil desprende

De seus eternos, místicos cantares:

E dos horrendos brados do oceano,

Do rouco ribombar das cachoeiras,

Do rugir das florestas seculares,

Do quérulo murmúrio dos ribeiros,

Do frêmito amoroso da folhagem,

Do canto da ave, do gemer da fonte,

Dos sons, rumores, maviosas queixas,

Que povoam as sombras namoradas,

Um hino teces majestoso, imenso,

Que na amplidão do espaço murmurando

Vai unir-se aos concertos inefáveis

Que na límpida esfera vão guiando

O giro infindo, e místicas coréias

Dos rutilantes orbes;

Flor, que se enlaça na eternal grinalda

Be celeste harmonia, que incessante

Se expande aos pés do Eterno!...

Tu és do mundo

Alma canora,

E a voz sonora,

Da solidão;

Tu harmonizas

O vasto hino

Almo e divino

Da criação;

És o rugido

D'alva cascata

Que se desata

Da serrania;

Que nas quebradas

Espuma e tomba,

E alto ribomba

Na penedia;

És dos tufões

Rouco zunido,

E o bramido

Da tempestade;

Voz da torrente

Que o monte atroa;

Trovão,que ecoa

Na imensidade.

Suspira a noite

Com teus acentos,

Na voz dos ventos

És tu quem gemes;

À luz da lua

Silenciosa,

Na selva umbrosa

Co'a brisa fremes;

E no oriente

Tua voz sonora

Desperta a aurora

No róseo leito;

E toda a terra

Amor respira:

– De tua lira

Mágico efeito!

E quando a tarde

Meiga e amorosa

Com mão saudosa

Desdobra os véus,

Tua harpa aérea

Doce gemendo

Lhe vai dizendo

Um terno adeus!

Sentado às vezes no alcantil dos montes,

Másculos sons das cordas arrancando

A tempestade invocas,

E à tua voz os aquilões revoltos

A desfilada ruem,

E em seu furor uivando encarniçados

Lutam, forcejam, como se tentassem

Arrancar pelas bases a montanha!

Alarido infernal atroa as selvas,

No monte ronca a turva catadupa,

Que por sombrios antros despenhada

Ruge tremendo no profundo abismo;

Ígneo surco em súbitos lampejos

Fende a lúgubre sombra, – estala o raio,

E os ecos pavorosos ribombando

As celestes abóbadas atroam;

E a tempestade as asas rugidoras

De monte a monte estende,

E do trovão, do raio

A voz ameaçadora,

A fúria atroadora

Dos euros turbulentos,

Das selvas o rugido,

Da catarata o ronco,

O baque de alto tronco,

A luta de mil ventos,

Dos vendavais revoltos

Os pávidos bramidos,

Dos combros aluídos

O hórrido fracasso,

E do bulcão, que abre

A rúbida cratera,

A voz, que estruge fera

Nas solidões do espaço,

Do rábico granizo

O estrondo, que sussurra

Nas broncas serranias,

E o ribombar das vagas

Nas ocas penedias,

E todo esse tumulto,

Que em música horrorosa

Troa, abalando os eixos do universo,

São ecos de tua harpa majestosa!!

Porém silêncio, ó gênio, – não mais vibres

As bronzeas cordas, em que bramam raios,

pregoeiros da cólera celeste:

Mostra-me o céu brilhando azul e calmo

Como a alma do justo, e sobre a terra

Estende o manto amigo do sossego.

Deixa errar tua mão nos áureos fios,

Onde sóis desferir moles cantigas

A cujos sons se embala a natureza

Em êxtase suave adormecida.

E solta a sussurrar por entre as flores

Inquieto bando de lascivos zéfiros:

Que por seu meigo hálito afagada

A selva balanceie harmoniosa

Sua virente cúpula, exalando

Entre perfumes namorados quebros,

E de sinistras névoas destoucando-se

No diáfano azul dos horizontes

Banhados de luz meiga, os montes surdam.

Quando sem nuvens, plácida, festiva,

Tão bela assim, resplende a natureza,

Me parece que Deus do excelso trono

Um sorriso de amor à terra envia,

E corno nesses dias primitivos,

Lá quando ao sopro seu onipotente

Formosa a criação do caos surgia,

Nas obras suas se compraz ainda.

Vem pois, Anjo canoro do deserto,

Desta harpa a Deus fiel roça em teu vôo

As fibras sonorosas,

E delas fuja um hino harmonioso

Digno de unir-se aos místicos concertos,

Que ecoam nas esferas,

Hino banhado nas ardentes ondas

De santo amor, – que com sonoras asas

Em torno a Deus sussurre.

Erga-se a minha voz, inda que débil,

Qual ciciar da cana, que palpita

Ao sopro de uma aragem!...

Queime-se todo o incenso de minh'alma,

E em ondas aromáticas se expanda

Aos pés do Onipotente!...