O meu vale
A meu amigo Ovídio João Paulo de Andrade
Inveni portum: sors, et fortuna, valete!...
Ei-lo?... é aqui o vale sossegado,
Em que para meus dias foragidos
Achei sereno asilo,
E nos erradios passos achei pouso
Humilde, mas tranqüilo.
Tu não verás aqui vastas campinas
Se estenderem té onde a vista alcança,
Nem largos horizontes,
Que vão perder-se nos remotos píncaros
Dos azulados montes.
Nem dos topes dos serros alterosos
Turbulentas cascatas se despenham
Em brancas espadanas;
Ou em brilhantes perspectivas surdem
Palácios e choupanas.
Em límpidas lagoas não se espelha
O céu azul, nem nadam níveas garças,
Nem velhos arvoredos
Em aléias se estendem sussurrando
Ao longo dos vargedos.
Por entre o borbotar de frescas fontes
A cada passo aqui não brotam rosas,
Nem lírios e açucenas;
Nem fantásticos pássaros meneiam
As deslumbrantes penas.
Nem pelos vales em festivos dias
Verás gentis pastoras entre os mirtos
Tecendo alegres danças;
Nem pegureiro descantando à sombra
De amor doces lembranças.
Mas neste sossegado, estreito vale
A ventura encontrei, por que minh'alma
Suspira há muito em vão;
Achei minhas perdidas esperanças
E a paz do coração.
Aqui minha alma expande-se tranqüila;
Aqui auras de amor e de ventura
A fronte me bafejam;
E além destes outeiros, que me cercam,
Meus votos não adejam.
Como a andorinha, que seu ninho esconde
Entre os muros da torre derrocada
Na mais oculta fenda,
Assim eu vim, no seio das montanhas
Pousar a minha tenda.
Num canto retraído da valada
Tenho entre verdes moitas sombra amiga
Em chão de fresca relva;
Pela encosta d'além ondeia a coma
De verde-negra selva.
Todas as tardes, na estação de amores,
Um velho sabiá, que é destes sítios
Alado Anacreonte,
Os seus pausados trinos cadenceia
ousado ali defronte.
Além, por essa aberta dos outeiros
Foge-me a vista livre a espairecer-se
Por longes nebulosos,
Onde campeiam d'altas serranias
Os píncaros rugosos.
E quando agosto vem nos horizontes
Desdobrando com mão misteriosa
Diáfanas cortinas,
Velando a luz do sol, que esbate frouxa
Por montes e campinas;
Quando a brisa a ramagem sacudindo
De vicejante arbusto entorna flores
Na desbotada grama,
E um perfume de mágica doçura
Nos ares se derrama;
E o sabiá nestas saudosas tardes
Seus mais sentidos, lânguidos acentos
Modula com ternura,
E mal murmura o córrego do vale
Das sombras na espessura;
Então minha alma cisma docemente;
Então eu cuido ouvir a voz de um anjo
Falar-me ao coração,
E sobre a minha fronte vir baixando
Celeste inspiração.
E do alaúde tenteando as cordas
Foge-me d'alma uma canção singela,
Como ao passar da aragem
Sussurra pela copa do arvoredo
A tremula folhagem.
E alguém me escuta; alguém segue meus passos
Nas sendas solitárias de meu ermo,
Como o anjo de Tobias;
E a meu lado comparte da existência
As dores e alegrias.
Um quieto vale, um horizonte aberto,
Meu amor, minha Ivra, eis os encantos
De minha solidão;
E é quanto basta pra doirar-me a vida,
E encher-me o coração.
Destes vergéis à sombra vim sentar-me,
O cansado bordão de peregrino
Larguei no pó da estrada,
E enxuguei o suor, que me escorria
Da fronte tresvairada.
A vida é curta, é sonho de um momento;
Se é assim, busquemos sonhar sempre
O sonho da ventura,
Pois nem males sonhar nos será dado
Dentro da sepultura.
Adeus, Ovídio; - o dia desfalece,
O sol se atufa entre vermelhas nuvens,
Do ocaso no esplendor.
E o sabiá, que canta ali defronte,
Me faz cismar de amor.
Agosto de 1869.